UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM DIREITO POLÍTICO E ECONÔMICO THAÍS DUARTE ZAPPELINI SOBRE IDEIAS E LUGARES: UMA DISCUSSÃO ACERCA DO LIBERALISMO JURÍDICO NO BRASIL São Paulo 2022 THAÍS DUARTE ZAPPELINI SOBRE IDEIAS E LUGARES: uma discussão acerca do liberalismo jurídico no brasil Tese apresentada ao Programa de Pós- Graduação Stricto Sensu em Direito Político e Econômico da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie, na linha de pesquisa “A Cidadania Modelando o Estado”, como requisito parcial à obtenção do título de Doutora em Direito Político e Econômico. ORIENTADOR: Prof. Dr. Silvio Luiz de Almeida São Paulo 2022 Elaborado pelo Sistema de Geração Automática de Ficha Catalográfica da Mackenzie com os dados fornecidos pelo(a) autor(a) Z035s Zappelini, Thais Duarte Sobre Ideias e Lugares: uma discussão acerca do liberalismo jurídico no Brasil. [recurso eletrônico] / Thais Duarte - Zappelini. 1761 KB ; Tese (Doutorado em Direito Político e Econômico) - Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2022. Orientador(a): Prof(a). Dr(a). Silvio luiz de Almeida Referências Bibliográficas: f. 273 -300 1. Liberalismo. 2. Pensamento Jurídico. 3. Escravidão. 4. Ideias fora do Lugar.. I. Almeida, Silvio luiz de, orientador(a).II. Título. Bibliotecário Responsável: Aline Amarante Pereira - CRB 8/9549 Folha de Identificação da Agência de Financiamento Autor: Thaís Duarte Zappelini Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito Político e Econômico Título do Trabalho: SOBRE IDEIAS E LUGARES: UMA DISCUSSÃO ACERCA DO LIBERALISMO JURÍDICO NO BRASIL O presente trabalho foi realizado com o apoio de 1: CAPES - Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior CNPq - Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico FAPESP - Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo Instituto Presbiteriano Mackenzie/Isenção integral de Mensalidades e Taxas MACKPESQUISA - Fundo Mackenzie de Pesquisa Empresa/Indústria: Outro: 1 Observação: caso tenha usufruído mais de um apoio ou benefício, selecione-os. Ao Izac. (in memoriam) AGRADECIMENTOS Este trabalho jamais teria sido possível sem o auxílio de pessoas queridas que acompanharam todo o seu processo de elaboração de perto. Ao meu estimado orientador, Prof. Dr. Silvio Luiz de Almeida, faltam palavras suficientes para apreciar o seu apoio contínuo, desde meus estudos no âmbito do Mestrado em Direito Político e Econômico na Universidade Presbiteriana Mackenzie. Lá começou a nossa jornada, que perpassou o caminho de ingresso no Doutorado e a construção de novas perspectivas sobre o pensamento jurídico brasileiro, através das nossas conversas, trabalhos conjuntos e reuniões com o grupo de pesquisa. Sou muito grata por todo o aprendizado, e as tantas lições que continuam a reverberar. Expresso, assim, o profundo sentimento de orgulho e gratidão pela oportunidade de estudar com uma grande autoridade no tema que esta tese propõe e um dos maiores intelectuais dos nossos tempos. Não poderia faltar uma honrosa e especial menção ao Prof. Dr. John D. French, da Universidade de Duke. Nosso primeiro contato foi através de um projeto conjunto com o Prof. Dr. Silvio Luiz de Almeida, por meio da Iniciativa Duke-Brasil e do Grupo de Pesquisa Estado e Pensamento Social Brasileiro. Dessa intersecção surgiu um rico artigo sobre ação afirmativa e um laço entre todas e todos que se dedicaram fortemente ao seu desenvolvimento, incluindo o querido colega Travis Knoll e a minha amiga Waleska Miguel Batista. Ao Prof. Dr. John D. French agradeço a receptividade, as imensuráveis trocas e, evidentemente, os numerosos apontamentos que culminaram na reestruturação deste trabalho. O resultado aqui apresentado não seria o mesmo sem as contribuições do Prof. Dr. John. D. French. Agradeço imensamente pelo suporte incondicional do meu esposo, Lucas Pessô Feniman, em todas as horas. Não foram poucas as dificuldades que nos assolaram nos últimos anos e este trabalho precisou ser escrito mediante a sua superação. Além de seu apoio afetivo, sou grata pelas inúmeras discussões que travamos sobre o tema, pelas suas incontáveis ponderações para melhoria do texto e pela minuciosa revisão e formatação desta tese. Aos meus pais, Tania A. Duarte Zapelini e Douglas Rogério Zappelini, obrigada por acreditarem no meu potencial e na importância desta trajetória, tanto no espectro profissional, quanto como mulher. Sem ajuda de vocês, essa porta simplesmente não existiria. Ao meu irmão, Ricardo Duarte Zappelini e ao pequeno Enrico Souza Zappelini por seu amor e carinho. Também agradeço à Letícia Pesso Feniman de Oliveira, ao Josué De Oliveira Souza, ao pequeno Samuel Feniman de Oliveira, à Regina Célia Pessô Feniman e ao amado Izac Feniman, que me acolheram como parte de sua linda família e estiveram junto comigo, conferindo-me incansável assistência. Às minhas amigas para a vida toda Ana Luiza Quilici, Diana Tancetti e Bárbara Vaz Leite Alves, que foram infatigáveis nos conselhos e na certeza sobre a importância deste estudo e sua conclusão. À Márcia Marisa Duarte e à Danielle Painski por estarem comigo em todos os momentos importantes da minha vida. À Waleska Miguel Batista agradeço por compartilhar sua pesquisa, seus pontos de vista e sugestões, além da amizade construída. À Caroline Lopes Placca, minha grande parceira da vida acadêmica, pelo companheirismo, amizade e pelas incontáveis conversas sobre as dificuldades enfrentadas nesse meio. À Mariana Chaimovich e ao Victor Nóbrega Luccas, por todas as recomendações, pelo aprendizado acadêmico e profissional e pela estimada amizade. Ao Prof. Dr. Julio Cesar de Oliveira Vellozo, sou grata por dividir o seu conhecimento, bem como por estar sempre aberto ao debate. Também pelas suas sugestões metodológicas e preciosíssimas indicações bibliográficas. Ao Prof. Dr. José de Resende Júnior, por ter me mostrado que este caminho era possível e pelo contínuo estímulo à sua continuidade e aperfeiçoamento. À Prof.ª Dr.ª Susana Mesquita Barbosa, que com sua generosidade, tanto me ajudou desde os tempos de bacharelado, e por quem eu tenho grande admiração. Ao Instituto Mackenzie, pela possibilidade de fruir de bolsa integral através do processo seletivo do Programa, sem a qual não seria viável acessar este curso. Ao corpo de funcionários do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito Político e Econômico, em especial, à Cristiane Alves, à Daniela Miranda, ao Lucas Henrique, ao Lucas Barros e à Ana Paula Bianco por todo o auxílio nesse processo. RESUMO O liberalismo foi objeto de abordagens transversais na cultura e realidade social brasileiras na década de 1970. Dentre as perspectivas de maior repercussão, o ensaio de Roberto Schwarz As ideias fora do lugar (1977) procurou criticar a importação de ideias europeias no país. Alvo de inúmeras respostas e reinterpretações, o texto apresentou como grande contribuição um olhar sobre o sentimento de desconforto causado pela absorção dessas ideias, sem suposta capacidade de descreverem a realidade nacional. Partindo da postura de Schwarz, a presente tese tem como objetivo colocar uma pergunta, aparentemente simples: por que o liberalismo é diferente no Brasil? Para investigar essa problemática, propõe-se uma análise crítica e dedutiva, nas lentes da Filosofia do Direito, partindo do eixo liberalismo, Direito e escravidão. As hipóteses colocadas são: (i) que as características sui generis do liberalismo brasileiro não derivam de uma forma espontânea e naturalmente constituída, mas são resultado de uma materialidade histórica diversa, relacionando-se à maneira como o capitalismo se instaura no Brasil, afastado do cenário europeu. Também, (ii) que o Direito é fundamental para compreender como se deu a metabolização entre liberalismo e escravidão no Brasil, de modo que a resposta à pergunta levantada não está na ideologia, mas na própria realidade brasileira. Quanto à segunda afirmação, exploramos como desdobramento a perspectiva de Vellozo e Almeida, que sugerem a construção de um pacto de todos contra os escravos no Brasil Imperial (2019). Como principais conclusões, indicamos que o Direito brasileiro nasceu vinculado com o liberalismo, ideologia que melhor trabalhou as contradições do capitalismo. A especificidade brasileira não está na convivência entre liberalismo e escravidão, mas em como essa relação foi introjetada pelo Direito, por meio do máximo aproveitamento da força retórica do ideário liberal, utilizada particularmente em nossa realidade nacional como fonte de aliciamento, inclusive dos libertos brasileiros. Nesse sentido, teremos no Brasil um Direito que nasceu de bases profundamente excludentes e que incorporou em sua superestrutura jurídico-política as ideias liberais e escravistas. Palavras-chave: Liberalismo. Pensamento jurídico. Escravidão. Ideias fora do lugar. ABSTRACT Liberalism was the object of transversal approaches in Brazilian culture and social reality in the 1970s. Among the perspectives of greatest repercussion, Roberto Schwarz's essay The Misplaced Ideas (1977) sought to criticize the importation of European ideas into the country. Target of numerous responses and reinterpretations, the text presented as a great contribution a look at the feeling of discomfort caused by the absorption of these ideas, without supposed ability to describe the national reality. Starting from Schwarz's position, this thesis aims to pose an apparently simple question: why is liberalism different in Brazil? To investigate this problem, a critical and deductive analysis is proposed, in the lens of the Philosophy of Law, starting from the axis liberalism, law and slavery. The hypotheses raised are: (i) that the sui generis characteristics of Brazilian liberalism do not derive from a spontaneous and naturally constituted form, but are the result of a diverse historical materiality, relating to the way in which capitalism is established in Brazil, away from the European scenario. Also, (ii) that the Law is fundamental to understand how the metabolization between liberalism and slavery took place in Brazil, so that the answer to the question raised is not in the ideology, but in the Brazilian reality itself. As for the second statement, we explore as an unfolding the perspective of Vellozo and Almeida, who suggest the construction of a pact of all against slaves in Imperial Brazil (2019). As main conclusions, we indicate that Brazilian Law was born linked to liberalism, an ideology that best dealt with the contradictions of capitalism. The Brazilian specificity is not in the coexistence between liberalism and slavery, but in how this relationship was introjected by Law, through the maximum use of the rhetorical force of liberal ideas, used particularly in our national reality as a source of enticement, including for Brazilian freedmen. In this sense, we have in Brazil a Law that was born from profoundly excluding bases and that incorporated liberal and slave-holding ideas into its legal-political superstructure. Keywords: Liberalism. Legal thought. Slavery. Misplaced ideas. RIASSUNTO Il liberalismo è stato oggetto di approcci trasversali alla cultura e alla realtà sociale brasiliana negli anni '70. Tra le prospettive di maggiore ripercussione, il saggio di Roberto Schwarz Le Idee Fuori Luogo (1977) ha cercato di criticare l'importazione di idee europee nel paese. Bersaglio di numerose risposte e rivisitazioni, il testo ha presentato come un grande contributo uno sguardo sul senso di disagio causato dall'assorbimento di queste idee, senza presunta capacità di descrivere la realtà nazionale. Partendo dalla posizione di Schwarz, questa tesi si propone di porre una domanda apparentemente semplice: perché il liberalismo è diverso in Brasile? Per indagare questo problema si propone un'analisi critica e deduttiva, nell'ottica della Filosofia del Diritto, a partire dall'asse liberalismo, Diritto e schiavitù. Le ipotesi avanzate sono: (i) che i caratteri sui generis del liberalismo brasiliano non derivino da una forma spontanea e naturalmente costituita, ma siano il risultato di una diversa materialità storica, relativa al modo in cui il capitalismo si è affermato in Brasile, lontano dallo scenario europeo. Inoltre, (ii) che il Diritto è fondamentale per capire come è avvenuta in Brasile la metabolizzazione tra liberalismo e schiavitù, in modo che la risposta alla domanda sollevata non sia nell'ideologia, ma nella stessa realtà brasiliana. Per quanto riguarda la seconda affermazione, esploriamo come un dispiegarsi la prospettiva di Vellozo e Almeida, che suggeriscono la costruzione di un patto di tutti contro gli schiavi nel Brasile Imperiale (2019). Come conclusioni principali, indichiamo che il Diritto brasiliano è nato legato al liberalismo, un'ideologia un'ideologia che ha funzionato al meglio con le contraddizioni del capitalismo. La specificità brasiliana non sta nella convivenza tra liberalismo e schiavitù, ma nel modo in cui questo rapporto è stato introiettato dal Diritto, attraverso il massimo uso della forza retorica delle idee liberali, utilizzate particolarmente nella nostra realtà nazionale come fonte di lusinga, anche per i brasiliani liberti. In questo senso avremo in Brasile un Diritto che è nato da basi di esclusione profonda e che ha incorporato le idee liberali e schiaviste nella sua sovrastruttura giuridico-politica. Parole chiave: Liberalismo. Pensiero giuridico. Schiavitù. Idee fuori luogo. SUMÁRIO INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 12 1. LIBERALISMO E BRASIL: POR QUE DISCUTIR O LUGAR DAS IDEIAS LIBERAIS? ................................................................................................................... 21 1.1 A REVOLUÇÃO BURGUESA DE FLORESTAN FERNANDES: INDEPENDÊNCIA, LIBERALISMO E A SOCIEDADE DE CLASSES .................... 30 1.2 SCHWARZ E AS IDEIAS FORA DO LUGAR ...................................................... 37 1.3 A RÉPLICA DE CARVALHO FRANCO A SCHWARZ: AS IDEIAS ESTÃO EM SEU LUGAR .................................................................................................................. 43 1.4 AS BASES E CARACTERÍSTICAS PECULIARES DO LIBERALISMO BRASILEIRO EM EMÍLIA VIOTTI DA COSTA ....................................................... 52 1.5 DIÁLOGOS ENTRE SCHWARZ, ALFREDO BOSI E CARLOS NELSON COUTINHO .................................................................................................................. 57 2. ABSORÇÃO DAS IDEIAS LIBERAIS E NASCIMENTO DE UM DIREITO EXCLUDENTE: HEROÍSMO FRUSTRADO E A CONSOLIDAÇÃO DO PACTO CONTRA OS ESCRAVOS ........................................................................... 68 2.1 O LIBERALISMO “HEROICO” DA INDEPENDÊNCIA ..................................... 72 2.2 SIGNIFICADOS POR TRÁS DA ASSEMBLEIA GERAL CONSTITUINTE DE 1823 E SUA DISSOLUÇÃO ......................................................................................... 83 2.2.1 Composição da Constituinte e discurso senhorial ............................................ 85 2.2.2 Controvérsias sobre o poder do monarca e limites da Constituinte: qual liberalismo venceu? ...................................................................................................... 89 2.2.3 O desenvolvimento do conceito de cidadania .................................................... 99 2.2.4 Consequências do fim da Constituinte: quais os rumos da nova ordem jurídica? ....................................................................................................................... 113 2.3 DOIS PASSOS A FRENTE E UM PASSO ATRÁS: ARBITRARIEDADE, AUTORITARISMO E IDEIAS LIBERAIS NA CONSTITUIÇÃO OUTORGADA DE 1824 .............................................................................................................................. 118 2.4 UM POR TODOS E TODOS CONTRA OS ESCRAVOS ................................... 126 2.5 A RECEPÇÃO DO LIBERALISMO E A CORRENTE DOUTRINÁRIA .......... 135 2.6 UM BALANÇO DAS TRANSFORMAÇÕES NO LIBERALISMO BRASILEIRO PÓS-INDEPENDÊNCIA ............................................................................................. 141 3. LIBERALISMO DO SILENCIAMENTO: MANUTENÇÃO E REFORMA DA ORDEM JURÍDICA .................................................................................................. 145 3.1 LEGALIDADE E REACIONARISMO: PODEMOS FALAR EM UM LIBERALISMO CONSERVADOR? ............................................................................ 153 3.2 PROPRIEDADE E LIBERDADE: CONCENTRAÇÃO DE LATIFÚNDIO E REAFIRMAÇÃO DO ISOLAMENTO JURÍDICO-ECONÔMICO DOS EX- ESCRAVOS NA LEI DE TERRAS DE 1850 ............................................................. 162 3.3 O BRASIL ERA FATALMENTE UMA DEMOCRACIA? GERAÇÃO DE 1870 E A CRÍTICA DA ESCOLA DE RECIFE ...................................................................... 173 4. CAMINHOS PARA O LIBERALISMO DO FIM DO IMPÉRIO: ERA DA REFORMA E O PROBLEMA JURÍDICO DA ESCRAVIDÃO .......................... 187 4.1 SERIA ESTE O FIM? IMPLICAÇÕES DO CICLO DE LEIS EMANCIPATÓRIAS PARA O LIBERALISMO IMPERIAL E A SITUAÇÃO JURÍDICA DOS ESCRAVOS E EX-ESCRAVOS ....................................................................................................... 190 4.2 REFLEXÕES SOBRE O LIBERALISMO DO SEGUNDO REINADO .............. 210 4.3 EM DIREÇÃO À REPÚBLICA: DESCENTRALIZAÇÃO, SISTEMA POLÍTICO OLIGÁRQUICO E DOMINAÇÃO DA ELITE AGRÁRIA ....................................... 215 5. UMA PROPOSTA INTERPRETATIVA SOBRE O LIBERALISMO JURÍDICO NO BRASIL ........................................................................................... 222 5.1 LIBERALISMO, DIREITO CIVIL E ESCRAVIDÃO NO ENLACE DA MODERNIDADE E SUAS CONSEQUÊNCIAS PARA SE PENSAR O CONCEITO JURÍDICO DE PROPRIEDADE ................................................................................. 225 5.2 DIREITO CIVIL E ESCRAVIDÃO NO BRASIL: LIBERDADE PRIVADA E INSEGURANÇA JURÍDICA ...................................................................................... 235 5.3 LIBERTOS E OS MECANISMOS JURÍDICOS DE COOPTAÇÃO DA ESCRAVIDÃO NO BRASIL OITOCENTISTA......................................................... 249 5.4 DE VOLTA AO DEBATE DAS IDEIAS FORA DO LUGAR: O BRASIL PELAS LENTES DO LIBERALISMO JURÍDICO ................................................................. 256 CONCLUSÕES ........................................................................................................... 264 REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 273 12 INTRODUÇÃO Partimos da observação comum, quase uma sensação, de que no Brasil as idéias estavam fora de centro, em relação ao seu uso europeu. [...] O tic-tac das conversões e reconversões de liberalismo e favor é o efeito local e opaco de um mecanismo planetário.1 No polêmico ensaio As ideias fora do lugar, introdutório à obra Ao vencedor as batatas (1977), Roberto Schwarz propõe que o liberalismo no Brasil parecia não descrever, nem ao menos minimamente, a realidade nacional. Essas ideias seriam, segundo essa visão, objeto de um “deslocamento interno”, visto que utilizadas de maneira “imprópria”, causando um profundo sentimento de desconforto. Afirma Schwarz que a escravidão seria responsável por impugnar a todo o instante a ideologia liberal e que em nosso país houve certa “originalidade” na utilização dessas ideias, como por exemplo a sua combinação com a prática geral do favor.2 O ensaio foi elaborado como um referencial de estudos literários. A sua forte repercussão, contudo, foi muito além dos estudos de Schwarz sobre Machado de Assis, gerando uma série de reinterpretações e críticas acirradas. Ele permanece colocando alguns importantes questionamentos sobre o pensamento social brasileiro, o papel do liberalismo no país e como este último tópico nos auxilia a interpretar o Brasil, a partir dele próprio, abrangendo as suas tantas especificidades. A presente tese toma como ponto de partida a perspectiva de Schwarz para colocar uma pergunta, aparentemente simples: por que o liberalismo é diferente no Brasil? Apesar de ter ocorrido uma crítica transversal do liberalismo na cultura, na realidade social e em diversos segmentos intelectuais com notória intensidade na década de 1970 no Brasil — quando um balanço da herança colonial e da carga da escravidão estavam sendo ponderados —, apresenta-se aqui um recorte diverso, sob a ótica da Filosofia do Direito. Nessa esteira, tem-se a relevância e justificativa de se cuidar dessa temática, que não teve os seus efeitos suficientemente explorados.3 O choque entre a singularidade brasileira e a importação de elementos estrangeiros remete ao combate de noções reducionistas de que o liberalismo no Brasil seria simples e inacabado, fruto de uma suposta incapacidade de se implementar os valores liberais no país. Há uma sociedade 1 SCHWARZ, Roberto [org.]. Ao vencedor as batatas. São Paulo: Duas Cidades, 2000 [1992], p. 30. 2 Ibid., p. 16. 3 Ibid., p. 13. 13 brasileira, que possui identidade própria, distinta das sociedades europeias,4 mas que, nem por isso, escapa da inevitabilidade da presença do raciocínio burguês.5 Ignorar uma discussão ainda tão presente entre nós quanto à “importação” de ideias e sua corriqueira incompreensão tornaria a abordagem pretendida — tratar do liberalismo brasileiro em um viés jurídico-filosófico — insatisfatória e incompleta. Por isso, escolheu-se introduzir o tema dessa maneira, aproveitando pontos de toque desse debate para frisar a relevância do passado colonial e escravocrata do país e as influências disso na formação do nosso pensamento jurídico. Destacamos que a abordagem se ateve, temporalmente, ao Brasil oitocentista, momento em que as ideias liberais vão aqui surgir e no qual o Direito brasileiro será construído. Assim, desenvolvendo a premissa de que o liberalismo no Brasil apresenta peculiaridades que nos ajudam a entender o contexto interno, colocamos as hipóteses de que: (i) essas características sui generis não derivam simplesmente de uma forma espontânea e naturalmente constituída, mas são o resultado de uma materialidade histórica diversa, estando relacionadas à maneira como o capitalismo se instaura no Brasil, afastado do cenário europeu. Também levantamos a possibilidade de que (ii) o Direito é fundamental para compreender como se deu a metabolização entre liberalismo e escravidão no Brasil, de modo que a resposta à pergunta colocada não está na ideologia, mas na própria realidade brasileira. Relativamente aos desdobramentos da segunda hipótese, tomamos como base a argumentação de Vellozo e Almeida em seu artigo O pacto de todos contra os escravos no Brasil Imperial (2019), no qual os autores defendem que “A condição comum de proprietários do mais importante bem existente naquela sociedade, os cativos, gerou um consenso forte, uma pactuação de fundo entre gente de riqueza e posição social muito diversa”.6 Corroboramos com a visão dos autores de que o arcabouço normativo que vai se erigir, em especial com a Constituição de 1824 e depois através dos primeiros códigos, com características liberais para os padrões da época, contou com essa associação de pequenos, médios e grandes proprietários de escravos. 4 NEVES, Marcelo. Ideias em outro lugar? Constituição liberal e codificação do direito privado na virada do século XIX para o século XX no Brasil. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 30, n. 88, p. 5-27, jun. 2015. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102- 69092015000200005&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 1 jan. 2020, p. 13-14. 5 SCHWARZ, Roberto [org.]. Ao vencedor as batatas. São Paulo: Duas Cidades, 2000 [1992], p. 13-14. 6 VELLOZO, Júlio César de Oliveira; ALMEIDA, Silvio Luiz de. O pacto de todos contra os escravos no Brasil Imperial. Revista Direito e Práxis [online], v. 10, n. 3, p. 2137-2160, jul./set. 2019. Disponível em: https://doi.org/10.1590/2179-8966/2019/40640. Acesso em: 16 set. 2021, p. 2140. 14 Sugerimos então que o Direito brasileiro vai nascer a partir de bases excludentes, contando com o aliciamento de amplos setores sociais em contraposição aos escravos, incluindo os libertos. Nesse sentido, buscamos apreciar o tema a partir do eixo liberalismo, Direito e escravidão. Para enaltecer o enfoque da interpretação jurídico- filosófica a ser realizada, bem como da centralidade do Direito como ferramenta de análise do liberalismo brasileiro e seu vínculo com a escravidão, falamos em liberalismo jurídico, assumindo que o ideário demonstrou, e continua a reverberar, manifestações e propósitos específicos na esfera jurídica. Quanto à metodologia adotada, a temática é abordada a partir dos métodos hipotético-dedutivo (construção de uma proposição discursiva concreta a partir de uma proposição abstrata) e crítico-analítico (problematização aprofundada sobre a temática por meio de juízos de valor fundamentados e análise de seus componentes). Além disso, conta-se com técnicas de pesquisa consistes em: a) levantamento bibliográfico do tema; b) investigação histórica; e c) técnica conceitual (tratamento do fenômeno discutido a partir de um referencial teórico, construindo logicidade interna e desenvolvimento conceitual adequados). São assumidos alguns pressupostos pelo trabalho: primeiro, que o paradoxo entre liberdade e escravidão é um aspecto presente na ascensão e afirmação do liberalismo. Também, recorre-se à premissa de que há um entrelaçamento necessário, no ideário liberal, entre liberdade e propriedade. Veja-se que o pensamento político moderno vai ocupar-se da definição do indivíduo, de tal sorte que as origens do liberalismo remontam a mudanças nos modos de apropriação e exploração da propriedade.7 No mais, é necessário ter em vista que, diferentemente da escravidão antiga, a escravidão do novo mundo vai se ocupar de uma forte delimitação racial, expressando-se de maneira mais violenta do que a primeira. Como objetivos específicos, procurou-se: (i) retomar o debate acerca das ideias fora do lugar, introduzindo outros(as) autores(as) que não costumam ser contemplados nesse âmbito (como Florestan Fernandes e Emília Viotti da Costa), relacionando o mesmo com o eixo liberalismo, Direito e escravidão; (ii) ilustrar como a absorção das ideias liberais está conectada com a formação de um direito excludente e a ideia de um pacto contra os escravos, com ênfase no processo de Independência no Brasil; (iii) explicar 7 AMADEO, Javier. As raízes do liberalismo: liberdade e propriedade no pensamento político do século XVII. Perspectivas, São Paulo, v. 46, p. 9-36, jul./dez. 2015. Disponível em: https://periodicos.fclar.unesp.br/perspectivas/article/view/10052. Acesso em: 1 jan. 2021, p. 10. 15 como as ideias liberais foram apropriadas e interpretadas em um sentido próprio, principalmente no Segundo Reinado, e quais mudanças propiciaram novas formas de abordagem; (iv) delinear quais caminhos foram seguidos no fim do Império e como o pensamento jurídico brasileiro lidou com isso, em particular para a sobrevivência do liberalismo; e (v) sugerir um sistema interpretativo sobre o liberalismo jurídico brasileiro, em detrimento de uma mera rotulagem de tendências, de modo a explicitar as razões por trás de suas particularidades por meio da materialidade histórica do Brasil. Tais objetivos foram espelhados nos capítulos elaborados, de modo que o primeiro capítulo deste trabalho é dedicado a reconstruir o debate sobre As ideias fora do lugar. De inúmeras perspectivas possíveis para se refletir o liberalismo, optou-se por tomar a de Schwarz como ponto de partida, visto que a sua proposta recebeu inúmeras respostas e merece ser revisitada para se alcançar os desdobramentos pertinentes acerca do assunto. O grande valor da acepção de Schwarz está no fato de que o autor vai chamar a atenção para a “origem do nó”, buscando analisar o sentimento de despropósito causado pela presença das ideias liberais no ambiente brasileiro.8 São introduzidos lateralmente outros autores e autoras que contribuíram a esse diálogo, como Alfredo Bosi, Carlos Nelson Coutinho e Maria Sylvia de Carvalho Franco. Contextualizado o tema, passa-se a analisar, no segundo capítulo, como diversos segmentos sociais foram unidos em torno do objetivo da Independência, tendo como pano de fundo as ideias liberais. Defende-se que foi constituído um liberalismo “heroico” — para usar o termo de Viotti — ou “revolucionário”, que logo se dissiparia. Meandros de um profundo autoritarismo marcaram a dissolução da Assembleia Constituinte de 1823 e o acordo realizado pelas elites proprietárias que, com o aliciamento de demais setores, culminou na institucionalização do pacto contra os escravos. Trabalhamos a ideia de cidadania como um conceito central para esse processo, contando com a incorporação, mas não efetiva inclusão, dos libertos brasileiros na qualidade de cidadãos. Falamos também de como o liberalismo foi recepcionado em suas bases doutrinárias e quais transformações ocorreram no ideário no pós-Independência. Na sequência, cuida-se no capítulo terceiro de como o liberalismo funcionou para justificar reformas à manutenção da “ordem”, assim entendida como a hierarquia social pré-estabelecida e chancelada pelo Direito. Apreciamos então a relevância do conceito de 8 RICUPERO, Bernardo. Da formação à forma: ainda as “idéias fora do lugar”. Lua Nova, São Paulo, n. 73, p. 59-69, 2008. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102- 64452008000100003&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 16 dez. 2020, p. 59. 16 legalidade e o relacionamento entre as tendências autodenominadas liberais e conservadoras no Segundo Reinado. Pontuamos como a Lei de Terras de 1850 serviu para consolidar e normatizar o conceito moderno de propriedade no Brasil, mantendo os ex- escravos afastados do acesso à terra, legalizando a concentração de latifúndio. Terminamos o capítulo trazendo vislumbres sobre a onda de mudanças da década de 1870, com proeminência da Escola de Recife e seu caráter contestatório ao liberalismo estamental sedimentado no período. Insistindo na ideia de que o liberalismo operou como ferramenta ideológica para a permanência da escravidão, o capítulo quarto engloba o que acontece com essa relação quando as elites imperiais anteveem o fim iminente do instituto e buscam soluções, pela via legal, para a manutenção de seus interesses e ampliação de seu poderio. Subsequentemente, refletimos sobre as implicações dessa busca para a ruptura que ocorre no fim do século — com a enfim emancipação dos escravos e o advento da República — , com foco nas suas repercussões para o liberalismo brasileiro. Percorrido esse trajeto, procura-se, no quinto e último capítulo, iluminar os principais aspectos da proposta interpretativa sedimentada ao longo do trabalho, lançando prospecções sobre o liberalismo jurídico no Brasil e afirmando posicionamentos a respeito das hipóteses inicialmente alavancadas. Para isso, fala-se do enlace entre liberalismo, Direito Civil e escravidão na modernidade e suas consequências para a apreensão do conceito de propriedade no Brasil. Ademais, coloca-se como a escravidão foi tratada como assunto de direito privado, repercutindo significante insegurança jurídica. Passamos então a descrever o que identificamos como mecanismos de cooptação da escravidão no Brasil, partindo das visões de Vellozo e Almeida, bem como de Rafael Marquese (2006) no artigo A dinâmica da escravidão no Brasil: resistência, tráfico negreiro e alforrias, séculos XVII a XIX.9 De volta às ideias fora do lugar, lançamos algumas reflexões sobre como o esquema teórico proposto pode ser instrumentalizado, sob ótica do pensamento jurídico, para se pensar o Brasil. O tema possui relação estreita com a linha de pesquisa Cidadania Modelando o Estado, do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito Político e Econômico da Universidade Presbiteriana Mackenzie, na qual este trabalho se enquadra. Isso pode ser observado na medida em que problematiza os padrões hegemônicos provenientes do 9 MARQUESE, Rafael de Bivar. A dinâmica da escravidão no Brasil: resistência, tráfico negreiro e alforrias, séculos XVII a XIX. Novos estudos CEBRAP, São Paulo, n. 74, p. 107-123, mar. 2006. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S0101-33002006000100007. Acesso em: 1 jan. 2019. 17 ideário em pauta, inclusive seus reflexos na chamada cidadania liberal, contemplando a questão do reconhecimento e afirmação de direitos. Em especial, a ideia de cidadania é delimitada como um dos alicerces da análise, apreciada em mais detalhes no capítulo segundo ao tratarmos de como esse conceito é desenvolvido nos debates da Constituinte de 1823 e depois institucionalizado pela nova ordem constitucional. Em adição, vislumbramos como a concessão de cidadania funcionou como mecanismo de cooptação da escravidão, no que tange aos libertos brasileiros. O período que sucede as revoluções do Atlântico foi decisivo para o triunfo ideológico do liberalismo, trazendo a sua predominância na filosofia política anglófona. A acepção teórica sobre a liberdade que estava presente nas obras de Hobbes e Locke tinha como âmago a relação entre o poder do Estado10 e a liberdade individual. Ser livre, nesse sentido, era ocupar a posição de membro de uma associação civil, apto a exercer as suas capacidades para os fins desejados — isto é, para as trocas mercantis.11 O Estado, em contraparte, tinha o dever de impedir a ação de alguns cidadãos sobre os outros, impondo força coercitiva sobre eles — cidadãos igualmente “livres”. Onde termina a lei, principia a liberdade.12 A própria noção de cidadania foi se aproximando cada vez mais do ius soli (relacionado ao “solo”) e, com seu recorte racial, separou os cidadãos, livres e donos de suas próprias capacidades, daqueles que não as possuíam. Dessa forma, a liberdade passou a ser concebida como essencialmente negativa, marcada pela mera ausência de 10 Faz-se necessário breve esclarecimento acerca da nossa compreensão de Estado. Sobre o conceito de Estado, Camilo Onoda Caldas sublinha a teoria da derivação, relacionada ao pensamento de Marx e Engels, examinando as relações entre Estado, política, economia e, em alguns casos, o Direito. A teoria procura demonstrar como o Estado deriva do capitalismo, não sendo mero resultado da vontade da classe dominante e sim de um certo modo de produção e das relações sociais a ele inerentes. In: CALDAS, Camilo Onoda Luiz. A Teoria da Derivação do Estado e do Direito. 2013. 214 f. Tese (Doutorado em Filosofia e Teoria Geral do Direito). Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013. Disponível em: https://teses.usp.br/teses/disponiveis/2/2139/tde-02092014- 163137/publico/Doutorado_CamiloOnodaCaldas_Completa.pdf. Acesso em 13 jun. 2022. Alysson Mascaro fala do avanço na compreensão do Estado e da política na atualidade, que implica, necessariamente, superar mistificações teóricas que se limitem a definições estritamente jurídicas ou metafísicas de que o Estado é bem comum ou legítimo. A compreensão do Estado deve tomar como fundamento a crítica da economia capitalista, com base na totalidade social e não na ideologia do bem comum ou do louvor dado, mas no seio das explorações, dominações e crises da reprodução do capital. Mascaro também ressalta o Estado como uma forma política vista a partir da manifestação moderna, capitalista. In: MASCARO, Alysson Leandro. Estado e forma política. São Paulo: Boitempo Editorial, 2015. E-book Amazon, posição 13-17. 11 AMADEO, Javier. As raízes do liberalismo: liberdade e propriedade no pensamento político do século XVII. Perspectivas, São Paulo, v. 46, p. 9-36, jul./dez. 2015. Disponível em: https://periodicos.fclar.unesp.br/perspectivas/article/view/10052. Acesso em: 1 jan. 2021, p. 10-18. 12 Ibid., p. 18. 18 outra coisa, especificamente, de elementos de restrição, inibidores da capacidade do agente de seguir em busca de seus objetivos escolhidos e da proteção de seus bens.13 Sobre a história do pensamento político moderno, afirma Pocock que a palavra bourgeoise passou a ser utilizada para conotar uma cidadania negativa, incidindo na posse e transferência de coisas submetidas à lei e à autoridade soberana. O cidadão adquiriu, para a lei, papel na posse, transferência e administração das coisas. Em vista disso, um individualismo possessivo foi desenvolvido na consolidação do Direito Civil, em uma forma antecedente ao capitalismo moderno, que “oferece uma antiga forma de separação e recombinação entre autoridade e liberdade que os teóricos políticos chamam de liberalismo”.14 Liberdade e escravidão passaram, dessa forma, a definir-se mutuamente, entrelaçando-se de diversas maneiras ao longo da história. Conforme mencionado anteriormente, a liberdade legítima era a do cidadão, livre de restrições aos seus bens e capacidades, enquanto a escravidão se demonstrava como valor positivo, “inquestionado”, ordenando o mundo das relações sociais.15 Diante disso, pode-se inferir que a afirmação da ideologia liberal significaria, no plano teórico-normativo, também a proeminência de um conceito de liberdade. Nessa relação, tal conceito seria vinculado pelos seus cunhadores, e pela tradição que daí seguiria, à proteção da propriedade do indivíduo em face do Estado, remetendo à não intervenção na vida privada. Faz-se necessário sublinhar que o trabalho não possui o intuito de oferecer uma digressão histórica contemplativa ou mesmo detalhada dos acontecimentos gerais de um período, de modo que sua centralidade está em como o liberalismo foi aqui forjado e como se deu o seu encadeamento a partir do Direito, procurando elementos que explicitem as suas particularidades nesse sentido, possibilitando envergar conclusões úteis para o entendimento do liberalismo brasileiro. Em adição, enfatiza-se que é afastada qualquer ideia de um andamento linear da História ou vinculada aos conceitos de “progresso” ou “evolução”. Não pretendemos também exaurir a discussão sobre as ideias 13 SKINNER, Quentin. Liberdade antes do Liberalismo. Tradução: Raul Fiker. São Paulo: Editora UNESP (UNESP/Cambridge), 1999, p. 227. 14 POCOCK, John Greville Agard. Linguagens do Ideário Político. Tradução: Fábio Fernandez. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2013, p. 92. 15 LARA, Silvia Hunold. O espírito das leis: tradições legais sobre a escravidão e a liberdade no Brasil escravista. Africana Studia, n. 14, edição do Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto, p. 73-92, 2010. Disponível em: https://ojs.letras.up.pt/index.php/1_Africana_2/article/view/7319. Acesso em: 15 fev. 2021, p. 77-78. 19 fora do lugar. Antes de tudo, este trabalho é um convite para se pensar, a partir de outra perspectiva, o liberalismo no Brasil. Recorremos à literatura de referência, ao exemplo dos autores e autoras utilizadas no capítulo primeiro. Todavia, notamos não haver pesquisa volumosa no campo do Direito sobre o tema aqui especificamente tratado, em comparação a abordagens literárias, sociológicas e historiográficas. De maneira a suprir essa dificuldade, contamos com algumas fontes primárias para consubstanciação dos argumentos apresentados, por exemplo a consulta a atas dos debates parlamentares e da Constituinte de 1823. Outra questão com a qual nos deparamos foi a impossibilidade de separação entre os grupos de intelectuais e os ocupantes de cargos políticos no Brasil oitocentista, que funcionava tal como uma carreira pública única. Por mais óbvio que isso possa aparentar, ou seja, que era a elite intelectual que ocupava as posições de poder e de decisão no governo, há consequências práticas desse cenário. Dentre elas, o vínculo entre a ação política e a produção doutrinária. Esse vínculo foi a razão pela qual, ainda que nosso enfoque fossem as ideias, trouxemos documentos como os mencionados anais do Império, manifestos de partidos políticos, falas do trono, entre outros em nossa bibliografia. No mais, o Direito em formação não tinha as mesmas características do Direito contemporâneo, em sua especificidade como campo científico e como técnica, o que contribuía para acentuar a sua intimidade com a ação política. Os representantes do liberalismo da época se ocuparam, em um primeiro momento, em transmitir essas ideias, tendo a Europa como referência e partindo das obras europeias como argumentos de autoridade, ainda mais considerando que era lá onde ocorria a formação das elites. Um processo específico de apropriação aconteceu no Segundo Reinado, já contando com a atividade de universidades brasileiras, com destaque para Recife. Cabem alguns breves esclarecimentos de natureza estilística. Optamos por utilizar a primeira pessoa do plural na escrita, fazendo alusão ao trabalho da autora significativamente influenciado pelo processo de orientação, e procurando nos desvencilhar do formalismo excessivo, próprio do Direito, que muitas vezes dificulta a leitura de textos acadêmicos e inclusive é algo criticado por esta pesquisa. Uma outra escolha que realizamos foi não modificar a redação de textos originais para facilitar a apreensão de seu sentido (como dos anais parlamentares e os do próprio Schwarz que remontam de período anterior à reforma ortográfica no Brasil). Considerando o perigo de realização de modificações que influenciassem no 20 entendimento das obras ou ocasionasse perda de pontos essenciais, optamos por não fazer alterações. O desenvolvimento do tema contou com a sua apreciação em algumas etapas. A primeira delas foi justamente constatar seu estado da arte, reconstruindo o debate em torno das ideias fora do lugar e comtemplando a proposição de Schwarz e seus críticos, para então poder tratar do eixo analítico liberalismo, Direito e escravidão nesse escopo. Uma segunda etapa consistiu em recobrar e aprofundar a afirmativa de que o liberalismo brasileiro é diferente, o que pode ser explicado a partir da metabolização entre liberalismo e escravidão no Brasil pelas lentes do Direito. Passamos, assim, a investigar a absorção das ideias liberais no Brasil e colacionar suas particularidades, especialmente no âmbito jurídico. Para que isso fosse possível — compreender a materialidade histórica que culminou nessas peculiaridades — foi necessária uma intersecção com a História do Direito, ainda que tenhamos focado no pensamento jurídico em torno das ideias liberais. Essa segunda etapa de apropriação da realidade nacional abarcou os capítulos 2 (dois) a 4 (quatro). A terceira etapa centrou-se em recuperar o conceito de ideias fora do lugar para melhor definir o que chamamos de liberalismo jurídico e como essa noção pode ser utilizada como uma ferramenta para se compreender o Brasil. Isso para dizer que adotamos uma abordagem parabólica, de modo que se aproximam, em termos de estilo e instrumentos utilizados, os capítulos primeiro e quinto, que apresentam uma preocupação maior em relacionar conceitualmente o debate das ideias fora do lugar com a proposta acerca do liberalismo jurídico. E os capítulos segundo a quarto, direcionados a reunir elementos para comprovar a hipótese de que a metabolização entre liberalismo e escravidão, entendida a partir do Direito, é central para se conhecer o papel do liberalismo brasileiro. Essa etapa final consistiu, portanto, em proporcionar uma visão sistemática dos principais argumentos direcionados ao problema de pesquisa, fazendo uso da técnica conceitual, com o viés de consolidar a proposta, não de modo a repetir o que foi exposto, mas para trazer organização e clareza, sinalizando o ineditismo e avanço no conhecimento para a área pesquisada, como requisito da pesquisa doutoral. 21 1. LIBERALISMO E BRASIL: POR QUE DISCUTIR O LUGAR DAS IDEIAS LIBERAIS? A “importação cultural” ou “imposição externa” no Brasil de formas institucionais, ideológicas, políticas, dentre outras, sob uma perspectiva histórica, é problemática tanto no pensamento conservador quanto progressista, frente às suas matrizes que ultrapassam o cerne estritamente nacional. Esta “sensação” crônica de dissonância entre a prática interna e a norma externa é quase onipresente no pensamento brasileiro, e tem sido objeto de debate desde a Independência.16 Na primeira metade do século XX, o país enfrentava a herança colonial que havia sobrevivido ao Império e ao advento da República. Contava-se com um número significativo de pessoas vivendo nas áreas rurais e afastadas dos direitos de cidadania, somado a um expressivo contingente populacional que sofria as consequências da abolição tardia da escravidão, efetivada um ano antes da Proclamação da República.17 O debate sobre a introdução de ideias jurídico-políticas liberais no Brasil concentra-se na discordância entre duas percepções básicas. Uma delas parte da noção de que ocorria um distanciamento da autenticidade cultural do país através da importação de elementos estrangeiros, negadores da identidade e singularidade do Brasil — ou da “nação” brasileira.18 A discussão sobre o liberalismo brasileiro também passa pela busca por uma explicação da peculiaridade e autenticidade do Brasil, sua cultura e identidade, distintas das sociedades europeias.19 Uma segunda acepção sugere uma espécie de falta ou defeito na recepção das ideias estrangeiras, isto é, assume que há uma incapacidade de implementação dos valores liberais, considerados “superiores” em termos civilizatórios e adotados como modelos. 16 SILVA, Júlio Cezar Bastoni da. O lugar das ideias: panorama de um debate. Em Tese, Belo Horizonte, v. 21 n. 1, p. 42-59, jan./abr. 2015. Disponível em: http://www.periodicos.letras.ufmg.br/index.php/emtese/article/view/8236/0. Acesso em: 21 dez. 2020, p. 43. 17 Ibid., p. 43. 18 Vale notar que o conceito cultural de “nação” desempenhou papel decisivo na tradição romântica do século XIX, de acordo com a qual a “nação brasileira” foi concebida como a expressão cultural de uma sociedade, e o Estado, por sua vez, como a manifestação pública da nação, conforme NEVES, Marcelo. Ideias em outro lugar? Constituição liberal e codificação do direito privado na virada do século XIX para o século XX no Brasil. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 30, n. 88, p. 5-27, jun. 2015. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102- 69092015000200005&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 1 jan. 2020, p. 5-6. 19 Ibid., p. 6. 22 Essa inaptidão em realizá-los conduziria, de acordo com essa abordagem, à sua subversão e inexecução medíocre, imperfeita ou mal-acabada.20 O debate sobre o lugar das ideias liberais passou a ser intensamente revisitado na década de 1970. Entre 1958 e 1964 foi organizado, no âmbito da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) da Universidade de São Paulo (USP), o chamado “Seminário de Marx”, constituído por um grupo de professores, assistentes e alunos de diversas áreas. Nele estavam inseridos nomes como José Giannotti, Fernando Novais, Paul Singer, Roberto Schwarz, Octavio Ianni, Ruth e Fernando Henrique Cardoso, Francisco Weffort, Michael Löwy e Gabriel Bolaffi.21. Em Um seminário de Marx,22 Roberto Schwarz descreve que Giannotti frequentou na França um grupo que acompanhava as exposições de Claude Lefort, discutindo a burocratização da União Soviética, e propôs à sua roda de amigos que eles estudassem o assunto. Fernando Novais, por sua vez, dispensou intermediários e recomendou a leitura na íntegra de O capital. Segundo Schwarz, a composição do Seminário era multidisciplinar, voltada para a universidade, mas com reuniões fora dela para “estudar com mais proveito, a salvo da compartimentação e dos estorvos próprios à instituição”.23 Schwarz fala do grupo constituído e como “escreveram livros de qualidade, e agora viu um de seus membros virar presidente da República”,24 referindo-se a Fernando Henrique Cardoso, complementando que naturalmente não imaginava “que o marxismo nem muito menos o nosso seminário tenham chegado ao poder”.25 Essa afirmação faz sentido diante do pensamento neoliberal que tomaria conta da política macroeconômica no governo do período. Admitindo que o grupo deixou a desejar em alguns aspectos — como a sua falta de interesse na crítica de Marx sobre o fetichismo da mercadoria, na compreensão dos frankfurtianos e no valor do conhecimento da arte moderna26 —, a sua grande marca foi, 20 NEVES, Marcelo. Ideias em outro lugar? Constituição liberal e codificação do direito privado na virada do século XIX para o século XX no Brasil. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 30, n. 88, p. 5-27, jun. 2015. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102- 69092015000200005&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 1 jan. 2020, p. 5-6. 21 COSTA, Igor Nunes. A ideia de descentramento em Roberto Schwarz. 2012. 130 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) — Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2012. Disponível em: https://repositorio.ufes.br/handle/10/5832. Acesso em: 20 dez. 2020, p. 24. 22 Publicado originalmente na Folha de São Paulo, "Mais!", 08 out. 95, o texto foi reproduzido em Novos Estudos Cebrap, n. 50, mar. 1998 e depois adicionado por Schwarz na obra Sequências Brasileiras. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. Foi utilizada, neste trabalho, a última versão do ensaio. 23 SCHWARZ, Roberto. Sequências brasileiras. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 87. 24 Ibid., p. 86. 25 Ibid., p. 86. 26 Ibid., p. 103-104. 23 conforme Schwarz, o esforço para interpretar o Brasil. Para ele, como contribuição específica do Seminário, os jovens colegas e professores envolvidos tinham pela frente o trabalho de desenvolvimento de suas teses, com o desafio de firmar a dialética no terreno da ciência. E, nesse âmbito, escolheram o assunto brasileiro e “desenvolviam pesquisas sobre o negro, o caipira, o imigrante, o folclore, a religião popular”.27 As perspectivas desenvolvidas no âmbito do seminário desencadearam um trabalho de revisão historiográfica que alterou fortemente as imagens do Brasil do século XIX. Os estudos mais importantes realizados pelo grupo giraram em torno da tentativa de demonstrar que a escravidão no Brasil exerceu um papel funcional no capitalismo.28 Dentre as implicações mais inovadoras, de acordo com Schwarz, está, ao exemplo da monografia de Fernando Henrique Cardoso — Capitalismo e escravidão no Brasil meridional (1962) —, a abordagem da aplicação de categorias sociais europeias ao Brasil e às demais ex-colônias. Além disso, foi de grande relevância a apreensão de que, nos países colonizados, as categorias históricas trazidas pela experiência intra-europeia funcionam em um espaço que é diverso, mas não alheio, no qual elas “nem se aplicam com propriedade, nem podem deixar de se aplicar, ou melhor, giram em falso mas são a referência obrigatória, ou, ainda, tendem a um certo formalismo”.29 Em outras palavras, a colonização não gerou sociedades semelhantes à metrópole e a divisão internacional do trabalho não as igualou, ainda que o seu espaço fosse comandado pela dinâmica do capital. E em meio à discussão sobre o descentramento ou deslocamento de certas ideias no país, em tom de crítica à cultura brasileira e ao liberalismo do século XIX, Robert Schwarz30 analisou esse ideário em seu conhecido ensaio As ideias fora do lugar. Na 27 SCHWARZ, Roberto. Sequências brasileiras. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 93. 28 PALTI, Elías José. The Problem of “Misplaced Ideas” Revisited: Beyond “History of Ideas” in Latin America. Journal of the History of Ideas, v. 67, n. 1, p. 149-179, jan. 2006. Disponível em: https://muse.jhu.edu/article/194648. Acesso em: 27 ago. 2021, p. 151. 29 SCHWARZ, op. cit., p. 95. 30 Roberto Schwarz nasceu em Viena, na Áustria, em 1938. É um crítico de literatura e cultura, poeta e dramaturgo. Mudou-se para o Brasil com a família em 1939. De 1957 a 1960 estudou Ciências Sociais na Universidade de São Paulo (USP). Nessa instituição, participou, de 1958 a 1964, de um seminário de leitura da obra de Karl Marx, que reunia intelectuais como o filósofo José Arthur Giannotti, o historiador Fernando Novais e o sociólogo Fernando Henrique Cardoso. Entre 1961 e 1963 cursou Mestrado em Teoria Literária na Universidade de Yale, Estados Unidos. Tornou-se, em 1963, assistente de Antonio Candido (1918), no Departamento de Teoria Literária da USP. Partiu em 1968 para o exílio em Paris, em decorrência da ditadura militar, onde obteria Doutorado em Estudos latino-americanos na Sorbonne (Universidade de Paris III) com a tese “Ao vencedor as batatas”, a respeito da obra de Machado de Assis (1839-1908). Passou a lecionar literatura e teoria literária na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) em 1978, aposentando-se em 1992. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. Roberto Schwarz. São Paulo: Itaú Cultural, 2021. Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa1879/roberto-schwarz. Acesso em: 15 fev. 2021. 24 introdução à obra Ao vencedor as batatas (1977),31 ele discorreu sobre como essas ideias não correspondem à descrição da realidade do Brasil.32 Nela, são apreciadas as relações sociais retratadas nos escritos de Machado de Assis (1839-1908), com referência à realidade brasileira oitocentista. O ensaio sumarizou uma polêmica que continua a verter repercussões mais de quarenta anos depois de sua publicação, isto é, qual o lugar das ideias liberais no Brasil? Na linha do que argumenta Ricupero,33 é possível afirmar que a relevância da proposta de Schwarz está na busca pela “origem do nó” e na interpretação de um sentimento de despropósito sobre a relação entre as referências estrangeiras e o ambiente social brasileiro. O conceito de “ideias fora do lugar”, tal como demostra Elías José Palti,34 mostrou-se especialmente produtivo para a teorização sobre o desenvolvimento problemático de ideias na história da América Latina. E, assim, o texto de Schwarz tornou-se ponto de referência fundamental para o questionamento de paradigmas até então predominantes. Inobstante, um quarto de século depois, é cabível reavaliar e ponderar a contribuição original de Schwarz. Inúmeras réplicas foram endereçadas à proposta de Schwarz, visando não tanto a sua crítica literária a Machado de Assis, mas sim as suas considerações sobre o liberalismo no Brasil. Dentre elas, talvez a sua maior crítica seja Maria Sylvia de Carvalho Franco. Note-se que, na visão de Schwarz, uma das melhores contribuições do Seminário de Marx, mesmo que dele tenha origem indireta, mas que ainda assim respirava “o seu mesmo clima crítico, ideológico e bibliográfico”35 foi exatamente Homens livres na ordem escravocrata (1964), de Carvalho Franco. 31 O ensaio foi publicado originalmente em 1973, no terceiro número da Estudos Cebrap. O texto tornou- se a introdução da tese de doutoramento de Schwarz apresentada na Universidade de Paris III em 1976 e depois editada em português no ano seguinte. In: BRITO, Leonardo Octavio Belinelli de. A nota específica: “As ideias fora do lugar” e o problema da crítica da ideologia no Brasil. 44º Encontro Anual da ANPOCS, GT 32 Pensamento social no Brasil. Disponível em: https://www.anpocs2020.sinteseeventos.com.br/arquivo/downloadpublic?q=YToyOntzOjY6InBhcmF tcyI7czozNToiYToxOntzOjEwOiJJRF9BUlFVSVZPIjtzOjQ6IjQxMzciO30iO3M6MToiaCI7czozMj oiNWY5ZGUzY2IwYzY1YTk0YzhjZDE2ODI5NGIyYjFlODciO30%3D#:~:text=Em%201973%2C %20no%20terceiro%20n%C3%BAmero,em%20portugu%C3%AAs%20no%20ano%20seguinte. Acesso em: 1 nov. 2021. 32 Neste trabalho, foi utilizada edição de 2000 da referida obra, considerando que foram realizadas contínuas alterações no ensaio introdutório a que se refere, subsequentes à primeira publicação. SCHWARZ, Roberto [org.]. Ao vencedor as batatas. São Paulo: Duas Cidades, 2000 [1992], p. 16-17. 33 RICUPERO, Bernardo. Da formação à forma: ainda as “idéias fora do lugar”. Lua Nova, São Paulo, n. 73, p. 59-69, 2008. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102- 64452008000100003&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 16 dez. 2020, p. 59. 34 PALTI, Elías José. The Problem of “Misplaced Ideas” Revisited: Beyond “History of Ideas” in Latin America. Journal of the History of Ideas, v. 67, n. 1, p. 149-179, jan. 2006. Disponível em: https://muse.jhu.edu/article/194648. Acesso em: 27 ago. 2021, p. 149-150. 35 SCHWARZ, Roberto. Sequências brasileiras. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 97. 25 Alguns dos nomes citados, como Fernando Henrique Cardoso, Octavio Ianni e Maria Sylvia de Carvalho Franco, faziam parte do grupo de assistentes do sociólogo Florestan Fernandes na FFCL. Florestan teve um papel ímpar no último ciclo de estudos sobre o destino histórico do país no século XX.36 Afinal, tal como pontuado por Schwarz: Era lógico aliás que houvesse uma dose de conformismo embutida no projeto basicamente nacional, ou até continental, de tirar a diferença e superar o atraso, já que no caso os países adiantados (embora não as suas teorias sociológicas) tinham de ser dados como parâmetro e como bons. [...] Fica a sugestão, mas a ideia talvez não pudesse mesmo se realizar em nosso meio, já que em última análise estávamos — e estamos — engajados em encontrar a solução para o país, pois o Brasil tem que ter saída. Ora, alguém imagina Marx escrevendo o Capital para salvar a Alemanha? Assim, o nosso seminário em fim de contas permanecia pautado pela estreiteza da problemática nacional, ou seja, pela tarefa de superar o nosso atraso relativo, sempre anteposta à atualidade.37 A Revolução Burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica (1974) de Florestan Fernandes trouxe, como um de seus aspectos marcantes, a análise dos processos ligados ao desenvolvimento ulterior da sociedade e à consolidação tardia do capitalismo no Brasil, em um contexto de ruptura com o estatuto colonial. Relativamente a esses processos, Florestan destaca o papel exercido pelo liberalismo no período, trazendo correlações interessantes anteriormente delineadas em A integração do negro na sociedade de classes: o legado da “raça branca” (publicado em 1964). Florestan Fernandes encontrava-se quase que diariamente com Fernando Henrique Cardoso (dentre as principais razões, por conta de ele ter um telefone, algo difícil naquele tempo). Segundo FHC, Florestan foi bastante crítico com relação à tese do primeiro e “não gostava do Seminário de Marx”.38 Antonio Rago Filho39 esclarece que ocorreu um “escanteamento” de Florestan Fernandes à época, mesmo sendo ele umas das figuras mais relevantes no âmbito da pesquisa científica, do ensino no campo da 36 MARTINS, José de Souza. Prefácio à quinta edição. In: FERNANDES, Florestan. A Revolução Burguesa no Brasil: Ensaio de Interpretação Sociológica. 5. ed. São Paulo: Globo, 2006, p. 12. 37 SCHWARZ, Roberto. Sequências brasileiras. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 104-105. 38 CARDOSO, Fernando Henrique. Entrevista. In: BASTOS, Elide Rugai; ABRUCIO, Fernando; LOUREIRO, Maria Rita; REGO, José Marcio. Conversas com sociólogos brasileiros. São Paulo: Editora 34, 2006, p. 77. 39 RAGO FILHO, Antonio. Gênese e significado histórico do Seminário de Marx (1958-1964). XXVII Simpósio Nacional de História — ANPUH. Conhecimento histórico e diálogo social. Natal-RN, 22-26 jul. 2013. Disponível em: http://www.snh2013.anpuh.org/resources/anais/27/1371327709_ARQUIVO_GeneseeSignificadoHist oricodoSeminariodeMarx_1958-1964_.pdf. Acesso em: 2 jun. 2022, p. 12-13. 26 Sociologia e do marxismo na USP. O autor levanta a hipótese de que isso poderia estar relacionado à radicalização de suas posições. De todo modo, apesar de sua exclusão,40 no âmbito do Seminário por exemplo, são notáveis as influências de sua obra na pesquisa de seus colegas e alunos. Outra grande referência em diversos campos de estudo da História do Brasil, em especial quanto aos temas da escravidão e da Abolição, que dialogou com esse círculo de acadêmicos, foi Emília Viotti da Costa.41 Graduada em História na USP em 1954, ela tornou-se livre-docente da Cadeira de História da Civilização Brasileira da mesma instituição com o trabalho Escravidão nas áreas cafeeiras: aspectos econômicos, sociais e ideológicos da desagregação do sistema escravista em 1964, sendo aposentada compulsoriamente em 1969, no âmago da ditadura militar. Exilada nos EUA, atuou como professora nas Universidades de Yale, Tulane e Illinois. Em 1999 recebeu o título de professora emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.42 Da senzala à colônia (1966), bem como Da Monarquia à República: momentos decisivos (1968) e The Brazilian Empire: myths and histories (1985) trazem uma abordagem esclarecedora sobre como a história da escravidão está entrelaçada com o liberalismo no Brasil. O cientista político Carlos Nelson Coutinho e o historiador e crítico literário Alfredo Bosi foram dois autores que sugeriram que entre as “ideias” e o “lugar” 40 De acordo com Florestan: “Eu não dispunha de tempo para retomar leituras maciças ou para aprofundar os meus conhecimentos sobre os expoentes das novas tendências filosóficas, sociológicas e socialistas. Por sua vez, os meus colegas mais jovens não simplificaram as coisas para mim. Eles constituíram um círculo de estudos, por exemplo, no qual se associaram sociólogos, economistas e filósofos, que começou por uma análise dos textos de Marx. Eu me vi excluído”. In: FERNANDES, Florestan. A sociologia no Brasil. Petrópolis: Editora Vozes, 1977, p. 191. 41 A obra de Viotti apresenta marcantes pesquisas no comparativo da história da escravidão do Novo Mundo, também revolucionando os entendimentos da história do Brasil, da América Latina e do Caribe. Na década de 1960, os intelectuais brasileiros sentiram grande responsabilidade social ainda após o golpe militar e a ditadura de 1964, que durou mais tempo do que se esperava. Viotti foi exímia participante nos debates de 1968 sobre uma proposta de reforma da universidade, o que a levaria a ser exonerada compulsoriamente no ano seguinte com outros docentes da USP, incluindo o futuro presidente do Brasil, Fernando Henrique Cardoso. Foi detida em 1970, juntamente com alguns de seus estudantes, sob a acusação de subversão. Embora absolvida pelo tribunal militar em 1971, desempregada, perseguida e barrada, Viotti foi forçada a se desenraizar, assumindo cargos de curto prazo na Universidade de Tulane, na Universidade de Illinois em Urbana-Champaign e Smith College, subindo em 1972-1973 para professor titular da Universidade de Yale, onde seguiu por 25 anos (1973- 1998). In: FRENCH, John D. Emília Viotti da Costa (1928–2017). Hispanic American Historical Review, n. 99 (1), p. 132–138, 2019. Disponível em: https://read.dukeupress.edu/hahr/article- abstract/99/1/132/137450/Emilia-Viotti-da-Costa-1928-2017. Acesso em: 1 mar. 2022. 42 RODRIGUES, Pedro Conterno. Emília Viotti da Costa: contribuições metodológicas para a historiografia da escravidão. 2018. 176 f. Dissertação (Mestrado em Desenvolvimento Econômico) — Instituto de Economia, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2018. Disponível em: http://repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/331338/1/Rodrigues_PedroConterno_M.pdf. Acesso em: 10 out. 2021, p. 33-34. 27 apareceram, tal como uma espécie de filtro, os interesses das classes da sociedade brasileira, pontuando como os interesses de classe fizeram com que certas ideias se tornassem funcionais ou “adequadas” para determinadas sociedades. Ambos também se encontram ao relacionar o conceito das ideias fora do lugar a um determinado contexto histórico.43 Para que seja possível responder à pergunta que este trabalho coloca — o que torna o liberalismo brasileiro [em seu recorte jurídico] diferente? — há alguns pontos cuja visitação se faz necessária. Algumas possibilidades iniciais merecem ser colocadas: a primeira delas é que o liberalismo e o Direito brasileiro se entrelaçam no pensamento jurídico formado no Brasil oitocentista, com significativa expressão no que tange aos eventos que culminaram na Independência do país. Tal como defende Viotti, sustenta-se que a convergência de diferentes grupos para a meta da Independência auxiliou em uma absorção generalizante das ideias liberais, ainda que para interesses muito diversos.44 Um segundo argumento defendido, na esteira do que afirmam Vellozo e Almeida, é que a consubstanciação da superestrutura jurídico-política formada no século XIX contou com um pacto de amplos setores da população brasileira contra os escravos.45 Os antagonismos produzidos em uma coexistência estabilizada, na qual os incompatíveis andavam de mãos dadas, não decorriam, como sugere Schwarz, apenas da lógica do favor46 — ou seja, do paternalismo entre proprietários e a massa de excluídos e dependentes —, mas também desse pacto, com a ampla generalização da propriedade de escravos.47 A escravidão e seus desdobramentos, sob esse pacto, adquiriram caráter sui generis: apesar da atribuição de alguns direitos — ainda que limitados — aos egressos da escravidão, o ambiente em que eles se encontravam e a superestrutura jurídico-política que se consolidava fomentavam o isolamento dos escravos. Esse fenômeno em si não é exclusivo da realidade brasileira. O que é único, como veremos, é o tratamento jurídico conferido a esses grupos e, principalmente, como as ideias liberais operaram nesse processo, com a inserção dos egressos na sociedade 43 RICUPERO, Bernardo. O lugar das ideias: Roberto Schwarz e seus críticos. Sociologia & Antropologia, Rio de Janeiro, v. 3, n. 6, p. 525-556, jul./dez. 2013. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2238- 38752013000600525&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 16 dez. 2020, p. 530. 44 COSTA, Emília Viotti da. The Brazilian Empire: myths & histories. Revised Edition. The University of North Carolina Press: Chapel Hill and London, 2000, p. 56. 45 VELLOZO, Júlio César de Oliveira; ALMEIDA, Silvio Luiz de. O pacto de todos contra os escravos no Brasil Imperial. Revista Direito e Práxis [online], v. 10, n. 3, p. 2137-2160, jul./set. 2019. Disponível em: https://doi.org/10.1590/2179-8966/2019/40640. Acesso em: 16 set. 2021, p. 2155. 46 SCHWARZ, Roberto [org.]. Ao vencedor as batatas. São Paulo: Duas Cidades, 2000 [1992], p. 18-19. 47 VELLOZO; ALMEIDA, op. cit., p. 2140. 28 oitocentista apenas enquanto esse movimento os obrigava a reforçar o mencionado isolamento. Escravos e ex-escravos foram tornados aos poucos peças à deriva do esquecimento. Caminhando para a nova ordem do capital, esses grupos exerceram um papel na passagem da sociedade estamental e de castas para a sociedade de classes e no processo de formação da ordem social competitiva. No seu núcleo duro, as desigualdades produzidas pelas relações constituídas e reforçadas pelo Direito foram intensificadas com o uso da delimitação racial, em um momento no qual o escravo estava sendo deslocado do centro do modo de produção. O discurso preponderante trazia a liberdade como o problema jurídico a ser resolvido, ou seja, o desprendimento do modo de produção escravista, rumo ao trabalho assalariado. Sob essa imagem, as ideias liberais caíram bem aos grupos que objetivavam a emancipação. Todavia, remanescia um pacto contra os escravos, juridicamente chancelado. A reconstrução do debate sobre as ideias fora do lugar mostra-se relevante para evidenciar como as ideias liberais não só contribuíram, mas tiveram um desempenho fundamental para esses resultados. Afinal, como assegura Schwarz, a temática do liberalismo no Brasil já foi muito visitada, porém seus efeitos ainda foram pouco ou insuficientemente explorados.48 Tratar desse debate somente após a análise efetiva do pensamento jurídico liberal consolidado no Brasil oitocentista seria contraproducente, pois não seria possível aproveitar de maneira satisfatória o seu arcabouço para o objetivo almejado, principalmente no que se refere às suas contribuições para o entendimento da relação entre liberalismo e escravidão e da instrumentalidade das ideias liberais para o pacto contra os escravos. O debate também serve para contextualizar as condições que propiciaram a absorção das ideias liberais no Brasil, extraindo as características que passaram a ser peculiares a elas. Parte-se, assim, da proposta de Schwarz — do ensaio sobre As ideias fora do lugar, e do diálogo estabelecido com seus contemporâneos, com a adição das considerações de Florestan Fernandes e Emília Viotti da Costa, os quais não costumam ser substancialmente integrados à discussão. Florestan, talvez em virtude da anterioridade de a Revolução Burguesa do Brasil — uma de suas obras mais expressivas no trato do liberalismo, e por ser considerado um ponto de partida obrigatório e subentendido aos integrantes do Seminário. Viotti, possivelmente tendo em vista os rumos de sua trajetória 48 SCHWARZ, Roberto [org.]. Ao vencedor as batatas. São Paulo: Duas Cidades, 2000 [1992], p. 13-14. 29 acadêmica e seu exílio quando o debate reverberava com maior intensidade nos círculos do Seminário. Florestan e Viotti trazem elementos fundamentais para a compreensão do aparecimento das ideias liberais no Brasil. Procura-se, dessa forma, também ponderar as principais ferramentas utilizadas por essa geração de intelectuais para a construção de um sentido às particularidades do liberalismo brasileiro. Dentre os objetivos específicos deste capítulo, são visados, portanto: (i) o balanço das condições que propiciaram a absorção e o caráter generalizante das ideias liberais; (ii) enaltecer o papel da Independência para tanto; e assim (iii) lançar reflexões preliminares sobre como Direito e liberalismo vão se entrelaçar nesse sentido. Já que a escolha metodológica realizada foi contextualizar o problema de pesquisa a partir de um debate contemporâneo, optou-se por abordar os autores e autoras indicados considerando a cronologia dos seus trabalhos, possibilitando assim uma análise mais organizada e lógica de sua complementariedade para a apreensão crítica do debate. Assim, começa-se pela Revolução Burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica (1974); prosseguindo com o ensaio de Schwarz de 1973 (publicado em português em 1977) — adicionando-se lateralmente interlocuções com outros textos produzidos pelo autor. Depois, passa-se para a crítica de Carvalho Franco As ideias estão em seu lugar (1976) — abordando Homens livres na ordem escravocrata (1969) para contextualizar esse embate. Em seguida, apreciam-se noções fundamentais do liberalismo em Emília Viotti da Costa, a partir de The Brazilian Empire: myths and histories (1985), que consiste em um texto atualizado da obra Da Monarquia à República: momentos decisivos (1968). Por fim, trata-se do diálogo de Schwarz com Alfredo Bosi — trazendo- se aspectos essenciais de a Dialética da colonização (1992) e do tópico Discutindo com Alfredo Bosi de Schwarz em Sequências Brasileiras (edição de 1999) — e Carlos Nelson Coutinho, com Cultura e sociedade no Brasil: ensaios sobre ideias e formas (publicado em 1990). A escolha dos autores e autoras se deu em virtude do diálogo estabelecido em torno do conceito das ideias fora do lugar e visando a busca das peculiaridades do liberalismo brasileiro e sua relação com a escravidão. Nesse âmago, as obras específicas de cada um desses autores e autoras foram selecionadas tomando por base quais delas trataram de maneira mais aprofundada e direta a análise do liberalismo no Brasil, trazendo elementos passíveis de uma releitura sob o viés jurídico. Considerando a vastidão e importância das contribuições dos autores e autoras mencionados, não seria viável, em termos de tempo despendido e implicações efetivas para o objetivo deste trabalho, realizar 30 o exame de suas obras completas. Também não o seria trazer todos e todas envolvidos no Seminário de Marx e discussões colaterais, pelas mesmas razões. Foi explicada a importância de se recuperar o debate sobre as ideias fora do lugar e tomá-lo como ponto inicial deste trabalho, assim como o que se pretende extrair dele. Há, contudo, uma inescapável pergunta: estaria esse debate saturado? A proposta aqui colocada visa um novo olhar sobre a questão. Diferentemente do recorte adotado pelos críticos literários, historiadores e sociólogos supracitados, procura-se desenvolver as hipóteses ventiladas a partir do pensamento jurídico em torno das ideias liberais, concebido na realidade oitocentista, com especial interesse nas discussões vinculadas à relação entre liberalismo e escravidão no Brasil Imperial. Nesse percurso, conforme anteriormente mencionado, busca-se trazer as implicações desse relacionamento, considerando o pacto contra os escravos, tal como proposto por Vellozo e Almeida. Importante anotar que há um questionamento ou etapa anterior ao problema da presente pesquisa, que será abordado nos próximos capítulos: identificar o que caracteriza os defensores do ideário em análise como efetivamente liberais, trazendo perspectivas determinantes que se desenrolaram nesse ínterim. Considerando, portanto, o enquadramento adotado para a pergunta da pesquisa e as hipóteses ventiladas, optou-se por destacar o recorte metodológico adotado, falando-se em liberalismo jurídico. Dessa maneira, em um primeiro momento, é investigado o que diferencia essencialmente as ideias liberais no Brasil das categoriais europeias, frisando as suas peculiaridades. Em um segundo momento, analisa-se o que era ser liberal no Brasil dos Oitocentos e como seus representantes pensavam o Direito e a escravidão. Por fim, apresenta-se o que seria esse liberalismo jurídico na realidade brasileira oitocentista, que contribuiu para o pacto contra os escravos, consolidando a proposta interpretativa deste trabalho. 1.1 A REVOLUÇÃO BURGUESA DE FLORESTAN FERNANDES: INDEPENDÊNCIA, LIBERALISMO E A SOCIEDADE DE CLASSES Em Revolução Burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica (1974), Florestan Fernandes argumenta que a Independência foi a “primeira grande revolução social”49 brasileira, marcando o fim da era colonial e servindo como ponto de referência para a formação da sociedade nacional. Para Florestan, ainda que não seja possível 49 FERNANDES, Florestan. A Revolução Burguesa no Brasil: Ensaio de Interpretação Sociológica. 5. ed. São Paulo: Globo, 2006, p. 44. 31 equiparar o senhor de engenho ao burguês europeu, podem ser identificadas entidades que aqui apareceram “tardiamente”, seguindo um curso distinto, mas apresentando um elemento crucial, que consiste no “padrão de civilização que se pretendeu absorver e expandir”.50 Apesar disso, na sua visão, formou-se uma burguesia no Brasil, que pode apenas ser compreendida internamente, e não a partir de fatores exógenos e anacrônicos. No cerne da obra vigora, portanto, o argumento de que aconteceu uma Revolução Burguesa no Brasil, a qual, porém, resultou de um arcabouço no qual predominava a dificuldade de conciliação entre a revolução econômica e a revolução nacional, de modo que as oligarquias brasileiras se aliaram para revigorar as forças do progresso em seu impulso renovador, fazendo com que tradicional e moderno andassem lado a lado no período. Foram delegadas ao Estado funções originariamente atribuídas à burguesia, o que significou a perda do seu papel político abrangente, solidificando a relação entre a instituição pública e a classe burguesa.51 De acordo com Florestan, no regime imperial, não era possível se falar em classe social, mas sim em uma espécie de congênere social, visto que a sociedade nacional ainda estava em formação. O chamado burguês brasileiro surgiu de uma especialização econômica oriunda da consolidação do capitalismo e da formação de uma sociedade de classes, e a burguesia nacional erigiu-se da fusão entre o “velho”, isto é, os resquícios do patrimonialismo, da ordem escravocrata e do poder de uma elite agrária, e o “novo”, como o desejo de expandir o alto comércio e elevar o desenvolvimento nacional a outro patamar. A Independência, para Florestan, representa o rompimento do estatuto colonial e a criação de condições para a expansão da burguesia nacional e para a valorização do comércio. O autor explicita um ponto de toque, que corrobora com o argumento de que os mais diversos setores contribuíram para o pacto contra os escravos: as condições nesse período contaram com uma sociedade na qual imperava a violência como técnica de controle do escravo, bem como costumes em que se fundamentavam a dominação senhorial e o regime patrimonialista. Somado a isso, tinha-se a emergência, propagação 50 FERNANDES, Florestan. A Revolução Burguesa no Brasil: Ensaio de Interpretação Sociológica. 5. ed. São Paulo: Globo, 2006, p. 33. 51 ARRUDA, Maria Arminda do Nascimento. A aventura sociológica de Florestan Fernandes. Estudos Avançados, São Paulo, v. 34, n. 100, p. 243-257, set./dez. 2020. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103- 40142020000300243&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 3 abr. 2021, p. 246. 32 e intensificação de movimentos inconformistas “em que o antiescravismo disfarçava e exprimia o afã de expandir a ordem social competitiva”.52 Elucida o sociólogo que a desaprovação à violência foi transformada, em um primeiro momento, na defesa da condição humana do escravo ou liberto e, depois, em repúdio aberto à escravidão. Contudo, o ataque simultâneo dos fundamentos jurídicos e morais da ordem escravista acabou convertendo o impulso transformador do antiescravismo e do abolicionismo em uma “revolução social dos ‘brancos’ e para os ‘brancos’: combatia-se, assim, não a escravidão em si mesma, porém o que ela representava como anomalia”.53 Ou seja, o contexto de uma sociedade que extinguia o estatuto colonial, mas pretendia se organizar como nação, procurando por todos os meios expandir internamente a economia de mercado. Em A integração do negro na sociedade de classes: o legado da “raça branca” de Florestan, obra fruto de sua tese de 1964 na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, o autor esclarece que a desagregação dos regimes escravocrata e senhorial aconteceu de maneira que os senhores foram eximidos da responsabilidade pela manutenção e segurança dos libertos, sem que o Estado, a Igreja, ou qualquer outra instituição assumissem encargos que tivessem como objetivo prepará-los para o novo regime de organização da vida e do trabalho. Assim, o liberto viu-se convertido em “senhor de si mesmo” e responsável por seus dependentes, ainda que não dispusesse de meios para tanto nos quadros de uma economia competitiva.54 Nesse âmbito, o aparato jurídico estabelecido colaborou para a tentativa de maquiar essa anomalia e o consequente isolamento dos escravos. A liberdade estava associada ao indivíduo possuidor de direitos, isto é, aquele que podia ser proprietário. Operando como condicionante de espaços, a propriedade determinava o relacionamento de trocas entre os indivíduos livres e iguais entre si.55 E tal como esclarecem Vellozo e Almeida, imperava um perverso mecanismo de cooptação: “a consolidação da liberdade 52 FERNANDES, Florestan. A Revolução Burguesa no Brasil: Ensaio de Interpretação Sociológica. 5. ed. São Paulo: Globo, 2006, p. 35. 53 Ibid., p. 36. 54 FERNANDES, Florestan. A Integração do negro na sociedade de classes: o legado da “raça branca”. v. 1, 5. ed. São Paulo: Globo, 2008 [1978], p. 29. 55 AMADEO, Javier. As raízes do liberalismo: liberdade e propriedade no pensamento político do século XVII. Perspectivas, São Paulo, v. 46, p. 9-36, jul./dez. 2015. Disponível em: https://periodicos.fclar.unesp.br/perspectivas/article/view/10052. Acesso em: 1 jan. 2021, p. 10. 33 para um ex-escravo estava em sua adesão à escravidão como sistema, à sua transformação em proprietário”.56 Em outras palavras, a “preocupação pelo destino do escravo se mantivera em foco enquanto se ligou a ele o futuro da lavoura”.57 Essa preocupação apareceu em vários dos projetos que visavam regular a transição do trabalho escravo para o trabalho livre, de 1823 até a assinatura da Lei Áurea, em 13 de maio de 1888. Porém, com a Abolição, a atenção dos senhores voltou-se especialmente aos seus próprios interesses e aos problemas políticos que eles absorviam, em especial, a crise da lavoura. Enfim, a “posição do negro no sistema de trabalho e sua integração à ordem social deixam de ser matéria política”.58 Diz Florestan que: [...] Pensava-se que o “trabalho livre”, a “iniciativa individual” e o “liberalismo econômico” eram os ingredientes do “progresso” e a chave que iria permitir superar o “atraso do país” e propiciar a conquista dos foros de “nação civilizada” pelo Brasil. [...] Nesse clima, o negro encontrava boa acolhida: enquanto “escravo insubmisso”, que fugia da senzala e se rebelava contra a escravidão (no período final de desagregação do regime servil); enquanto se abrigava, como “protegido” “dependente” ou “cria da família” sob o manto das relações paternalistas (entre as famílias tradicionais ou, em menor número, entre as famílias adventícias em ascensão).59 Relativamente às condições e aos efeitos histórico-sociais da absorção do liberalismo nas elites brasileiras, Florestan assevera que isso ocorreu mediante duas polarizações distintas. A primeira delas associava o liberalismo aos processos de consciência social ligados à emancipação colonial, sob a perspectiva de que as elites nativas estavam sofrendo espoliação através das formas de apropriação colonial, neutralizando desse modo as possibilidades de poder inerentes ao status que ocupavam.60 Nesse sentido: [...] Sob a perspectiva dessa polarização, o liberalismo assume duas funções típicas. De um lado, preencheu a função de dar forma e 56 VELLOZO, Júlio César de Oliveira e ALMEIDA, Silvio Luiz de. O pacto de todos contra os escravos no Brasil Imperial. Revista Direito e Práxis [online], v. 10, n. 3, p. 2137-2160, jul./set. 2019. Disponível em: https://doi.org/10.1590/2179-8966/2019/40640. Acesso em: 16 set. 2021, p. 2149. 57 FERNANDES, Florestan. A Integração do negro na sociedade de classes: o legado da “raça branca”. v. 1, 5. ed. São Paulo: Globo, 2008 [1978], p. 30. 58 Ibid., p. 30. 59 Ibid., p. 34. 60 FERNANDES, Florestan. A Revolução Burguesa no Brasil: Ensaio de Interpretação Sociológica. 5. ed. São Paulo: Globo, 2006, p. 34. 34 conteúdo às manifestações igualitárias diretamente emanadas da reação contra o “esbulho colonial”. Nesse nível, ele se propõe o problema de equidade da maneira pela qual era sentido por aquelas elites: como emancipação dos estamentos senhoriais das limitações oriundas do estatuto colonial e das formas de apropriação colonial. Tratava-se de uma defesa extremamente limitada, tosca e egoística, mas muito eficaz, dos “princípios liberais”, pois só entravam em jogo as probabilidades concretas com que os membros desses estamentos contavam para poderem desfrutar, legitimamente, a soma de liberdade, o poder de igualdade e a fraternidade de interesses inerentes ao seu status na estrutura social. De outro lado, desempenhou a função de redefinir, de modo aceitável para a dignidade das elites nativas ou da nação como um todo, as relações de dependência que continuariam a vigorar na vinculação do Brasil com o mercado externo e as grandes potências da época.61 Florestan descreve que a outra polarização do liberalismo, difícil de distinguir da primeira, ligava-se à construção de um Estado nacional, apresentando caráter instrumental. Nessa perspectiva, ela estava voltada a criar uma nação em um país destituído das condições mínimas de uma “sociedade nacional”. Nesse viés, o Estado foi imposto como entidade manipulável desde o início, a partir dos interesses das elites nativas, mas tendo em vista a sua adaptação à filosofia política do liberalismo. Para o autor, a primeira polarização estava no reino da ideologia e a segunda no reino da utopia. Assim, o liberalismo esteve presente nos ideais que projetavam o Estado e a sociedade nacionais como um destino a ser conquistado no futuro. Mas, conforme Florestan, as motivações ideológicas do liberalismo eram primordialmente econômicas e apenas implicitamente políticas. E as motivações utópicas do liberalismo, de modo diverso, eram diretamente políticas e secundariamente econômicas.62 Desse modo, a absorção do liberalismo respondia a requisitos econômicos, sociais e políticos condicionantes da associação livre, mas heterônima do Brasil, em relação às nações que tinham o controle do mercado externo e das estruturas internacionais de poder. Por conta disso, iniciou-se na crise do sistema colonial, com implicações mais radicais nas relações com o mercado externo.63 Segundo Florestan, o liberalismo forneceu, inobstante suas limitações ou deformações no meio brasileiro, as concepções gerais e a filosofia política que substanciaram os processos de modernização, da extinção do estatuto colonial à 61 FERNANDES, Florestan. A Revolução Burguesa no Brasil: Ensaio de Interpretação Sociológica. 5. ed. São Paulo: Globo, 2006, p. 52-53. 62 Ibid., p. 53 e 69. 63 Ibid., p. 54. 35 desagregação da própria ordem colonial. Para ele, o liberalismo concorreu para revolucionar o horizonte cultural das elites nativas, com categorias de pensamento para o desmascaramento do “esbulho colonial”, já que as elites passaram a enxergar o sistema colonial como um óbice à consecução dos seus interesses.64 O liberalismo também alterou as perspectivas das elites sobre o uso, a importância e a organização do poder, preparando-as intelectualmente para os conflitos que as uniram contra o estatuto colonial e para a “defesa da Independência, da Monarquia constitucional e da democratização do poder político no âmbito de sua camada social”.65 Há, para o autor, influências mais complexas e menos visíveis do liberalismo. Dentre elas, estão as condições nas quais ocorreram a extinção do estatuto colonial e a Independência, com a persistência paradoxal e o fortalecimento de estruturas coloniais, além da influência das ideias liberais na separação e superposição dos planos de organização do poder. Estabeleceu-se uma dualidade estrutural entre as formas de dominação sedimentadas pela tradição e as formas de poder advindas da ordem legal. Com isso, a política através da ordem legal conferia ao poder central meios para impor- se e para superar os impactos do patrimonialismo. A influência do liberalismo é oriunda da composição utilizada na criação de um Estado nacional, que combinou o princípio da representação com um forte poder executivo. O domínio senhorial foi assentado nos interesses mercantis da grande lavoura.66 Ainda que o princípio da representação, o poder executivo e o poder moderador fossem convergentes, particularmente quanto à política econômica, o referido princípio não teria sido acolhido de maneira tão favorável sem a difusão das ideias liberais. Dessa maneira, o liberalismo e o idealismo político a ele atrelado tiveram papel significativo na organização, funcionamento e aperfeiçoamento da Monarquia constitucional.67 A partir da Independência e com o novo regime político, o desaparecimento das tensões provocadas pela tutela colonial anula a polarização dinâmica específica dos interesses senhoriais. Todavia, ganham força os interesses de integração nacional em virtude da ordem legal constituída, da sua relação com o princípio da representação e da democratização do poder político no nível dos estamentos dominantes. Em decorrência disso, o elemento senhorial é transfigurado no “cidadão”, para os fins da organização do 64 FERNANDES, Florestan. A Revolução Burguesa no Brasil: Ensaio de Interpretação Sociológica. 5. ed. São Paulo: Globo, 2006, p. 55. 65 Ibid., p. 55. 66 Ibid., p. 55-56. 67 Ibid., p. 56-57. 36 poder político e da ordem legal vigente.68 Por meio da nova figura do senhor-cidadão, pressupõe-se uma dimensão inédita do poder, que transcende os limites do domínio senhoril, alcançando o poder político especificamente. Cidadão, novamente, como aquele que possui o poder sobre si mesmo e a sua propriedade. Aos poucos a ideologia liberal encontra na sociedade civil, nascida com a Independência, “uma esfera na qual se afirma e dentro da qual preenche sua função típica de transcender e negar a ordem existente. A utopia liberal esbate-se no mesmo pano de fundo”.69 Ela adquire consistência através dessa transfiguração do elemento senhorial em “cidadão”, preenchendo sua função típica de impor a transformação da realidade histórica, com a adaptação paulatina da sociedade global aos requisitos da ordem legal vigente.70 Para Florestan, porém, as inconsistências e ambiguidades do liberalismo são refletidas por igual na ideologia e na utopia liberais, de modo que restam precárias quaisquer tentativas de diferenciá-las com algum rigor interpretativo. O que interessa saber é que essas polarizações do liberalismo se dinamizaram por meio dos requisitos estruturais e funcionais da ordem legal.71 Em razão disso, o liberalismo adquiriu complexidade e a continuidade de força política permanente, conquanto sua influência tópica fosse flutuante. Na implantação de um Estado nacional, os estamentos senhoriais foram convertidos em dominação estamental. As normas constitucionais — responsáveis por regular direitos de escolha e de representação, por meio das eleições para os mandatos eletivos e da possibilidade aberta para o poder moderador de recrutar ministros e conselheiros de Estado dentre deputados e senadores — “condicionavam uma tal concentração do poder político no nível dos privilégios senhoriais, que ‘sociedade civil’ e ‘estamentos sociais dominantes’ passaram a ser a mesma coisa”.72 Em outras palavras: De fato, não só o grosso da população ficou excluído da sociedade civil. Esta diferenciava-se, ainda, segundo gradações que respondiam à composição da ordem estamental, construída racial, social e economicamente na Colônia: a chamada “massa dos cidadãos ativos” servia de pedestal e de instrumento aos “cidadãos prestantes”, a verdadeira nata e os autênticos donos do poder naquela sociedade civil. 68 FERNANDES, Florestan. A Revolução Burguesa no Brasil: Ensaio de Interpretação Sociológica. 5. ed. São Paulo: Globo, 2006, p. 58. 69 Ibid., p. 58. 70 Ibid., p. 58. 71 Ibid., p. 58-59. 72 Ibid., p. 59. 37 No entanto, foi essa relação entre a ordem legal estabelecida e a constituição da sociedade civil que deu sentido social à revolução política encarnada pela Independência.73 Outro ponto de notável relevância sublinhado por Florestan é o caráter dúplice do liberalismo refletido pelo quadro das limitações histórico-sociais da revolução da Independência. O liberalismo foi, de um lado, a via por meio da qual se estabelecera a Independência. Por outro lado, subsistiam nexos de dependência que revelavam a autonomia e a supremacia não de um povo, mas de uma pequena parte dele, detentora de prestígio social e do controle do destino da coletividade. O liberalismo trouxe no Brasil oitocentista a ilusão de que a sociedade colonial poderia sumir de uma hora para outra.74 A liberdade e a igualdade eram consideradas requisitos indispensáveis da “opinião livre”, para garantir o substrato da dominação senhorial no plano estamental. Embora as elites tivessem que se adaptar às formas de organização do poder político impostas pela ordem legal, elas transformavam o governo em um meio de dominação estamental, reduzindo o Estado à condição de cativo da sociedade civil.75 Em suma, Florestan esclarece que tanto a ideologia quanto a utopia liberal respondiam a uma ruptura entre o passado e o presente, mas sem apoiar-se no prevalecimento deste sobre aquele. Elas não se realizaram, historicamente, como uma escolha clara e inconfundível das elites dos estamentos dominantes. A ideologia e a utopia liberal dependiam, em grande medida, da reprodução em larga escala do status quo ante.76 1.2 SCHWARZ E AS IDEIAS FORA DO LUGAR O liberalismo como semântica jurídico-política tem uma intensa dimensão normativa. No decorrer dos séculos XIX e XX, esse pensamento passou por testes de adequação no seio das estruturas normativas dos Estados que o receberam, enfrentando, contudo, certa subversão pela significação local de seu sentido e utilidade originários. Destarte, as ideias liberais encontraram o seu espaço na semântica dominante ou hegemônica da sociedade mundial.77 73 FERNANDES, Florestan. A Revolução Burguesa no Brasil: Ensaio de Interpretação Sociológica. 5. ed. São Paulo: Globo, 2006, p. 59-60. 74 Ibid., p. 61-62. 75 Ibid., p. 62-64. 76 Ibid., p. 69. 77 NEVES, Marcelo. Ideias em outro lugar? Constituição liberal e codificação do direito privado na virada do século XIX para o século XX no Brasil. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 30, n. 38 A interpretação realizada por Roberto Schwarz da literatura brasileira procura explicitar um quadro de trabalhos sobre a “formação”, em particular a social, que contempla a questão subjacente da subordinação colonial à tão desejada autonomia nacional.78 Schwarz começa o ensaio As ideias fora do lugar a partir da enunciação de que “no Brasil domina o fato ‘impolítico e abominável’ da escravidão”,79 de forma que na base da produção escravista residem a violência e a disciplina militar. Ele reflete sobre a disparidade entre a sociedade brasileira, escravista, e as ideias do liberalismo europeu, advertindo que na Europa a liberdade do trabalho, a igualdade perante a lei e o universalismo caracterizavam uma ideologia correspondente às aparências que encobria, contudo, a essencialidade da exploração do trabalho. Frisa ele que, entre nós, essas ideias têm conotação diversa, apresentando-se como ideologias de “segundo grau”.80 Conforme o autor: Neste contexto, portanto, as ideologias não descrevem sequer falsamente a realidade, e não gravitam segundo uma lei que lhes seja própria — por isso as chamamos de segundo grau. Sua regra é outra, diversa da que denominam; é da ordem do relevo social, em detrimento de sua intenção cognitiva e de sistema. Deriva sossegadamente do óbvio, sabido de todos — da inevitável “superioridade” da Europa — e liga-se ao momento expressivo, de autoestima e fantasia, que existe no favor.81 Schwarz revela o descentramento das ideias liberais, criticando a incapacidade de condizerem com a realidade brasileira, mas sem desprovê-las de uma função. Ele explicita o seu “aparecimento” inevitável nas colônias e, relativamente ao processo produtivo nacional e sua modernização, o autor sublinha a continuidade no uso de argumentos causadores da Revolução Francesa, segundo ele, sem propósito no Brasil. As ideias modernas entre nós, tal como defende Schwarz, constituíram parcela de uma prática sui generis característica do presente mundial, de cuja ordem assimétrica derivaram. As nossas peculiaridades como nação periférica somaram-se a uma 88, p. 5-27, jun. 2015. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102- 69092015000200005&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 1 jan. 2020, p. 7. 78 RICUPERO, Bernardo. O lugar das ideias: Roberto Schwarz e seus críticos. Sociologia & Antropologia, Rio de Janeiro, v. 3, n. 6, p. 525-556, jul./dez. 2013. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2238- 38752013000600525&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 16 dez. 2020, p. 526-527. 79 SCHWARZ, Roberto [org.]. Ao vencedor as batatas. São Paulo: Duas Cidades, 2000 [1992], p. 11. 80 Ibid., p. 11-12. 81 Ibid., p. 18-19. 39 desagregação de valor crítico nas reciprocidades entre ex-colônia e nações imperialistas, países subdesenvolvidos e desenvolvidos, periféricos e centrais.82 O latifúndio escravista passou a existir como elemento fundamental na origem do capital comercial, tendo o lucro como prioridade subjetiva. A escravidão garantiu a renovação da força exploratória e alocou o país na divisão internacional do trabalho, entre as nações ditas “civilizadas”, vinculando-se à ordem burguesa da qual o liberalismo é parte importante.83 Para Schwarz, a escravidão, por sua mera presença, demonstrava a impropriedade e impugnava a ideologia liberal das jovens nações emancipadas da América.84 Diz Schwarz: Além do que, havíamos feito a Independência há pouco, em nome de ideias francesas, inglesas e americanas, variadamente liberais, que assim faziam parte de nossa identidade nacional. Por outro lado, com igual fatalidade, este conjunto ideológico iria chocar-se contra a escravidão e seus defensores, e o que é mais, viver com eles. No plano das convicções, a incompatibilidade é clara, e já vimos exemplos. Mas também no plano prático ela se fazia sentir. Sendo uma propriedade, um escravo pode ser vendido, mas não despedido. O trabalhador livre, nesse ponto, dá mais liberdade a seu patrão, além de imobilizar menos capital.85 A visão de Schwarz assume que o ideário liberal possui as suas contradições, aparentes ou não. E o seu argumento não busca eximi-las, assim como não busca anular a existência ou negar que o liberalismo exerce uma, ou mais, funções no Brasil. Ele expõe uma forma, a do liberalismo brasileiro, concebida a partir da noção de que esse processo de “importação” é inescapável, em razão da dependência. A “universalização” do ideário liberal expandiu-se deixando de lado um modo de produção não mais interessante, seja em decorrência da sua rentabilidade ou da coerção. E a contribuição específica de Schwarz, tal como proposto por Palti,86 está exatamente em perceber o potencial dos postulados da teoria da dependência, que até então era aplicada exclusivamente ao domínio da história econômica e social, para o 82 SCHWARZ, Roberto. Martinha versus Lucrécia: ensaios e entrevistas. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 170. 83 RICUPERO, Bernardo. Da formação à forma: ainda as “idéias fora do lugar”. Lua Nova, São Paulo, n. 73, p. 59-69, 2008. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102- 64452008000100003&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 16 dez. 2020, p. 59-60. 84 SCHWARZ, Roberto [org.]. Ao vencedor as batatas. São Paulo: Duas Cidades, 2000 [1992], p. 14-15. 85 Ibid., p. 13-14. 86 PALTI, Elías José. The Problem of “Misplaced Ideas” Revisited: Beyond “History of Ideas” in Latin America. Journal of the History of Ideas, v. 67, n. 1, p. 149-179, jan. 2006. Disponível em: https://muse.jhu.edu/article/194648. Acesso em: 27 ago. 2021, p. 151. 40 âmbito da crítica literária e da teoria cultural. Isso permitiu o deslocamento dos esquemas nacionalistas românticos que moldaram as histórias da literatura brasileira, retratando-a como a autodescoberta de uma nação oprimida sob a teia de categorias “importadas”, alheias à realidade local. Na perspectiva de Schwarz, “O escravismo desmente as ideias liberais”.87 A partir do século XVI, a mundialização da sociedade significou a expansão do horizonte das comunicações e a superação de barreiras territoriais.88 Assim como a própria inevitabilidade da presença do raciocínio burguês entre nós, as ideias liberais fizeram parte desse processo e já vieram ao Brasil acompanhadas do paradoxo entre liberdade e escravidão como premissa circunstancial da relação metrópole-colônia. A colonização é um efeito do capital comercial, juntamente à proclamação das formas do Estado burguês moderno. O encontro desses fatores com o clientelismo brasileiro ocorreu em meio às relações que se estabeleceram entre o latifundiário, o “homem livre” e o escravo. Em Schwarz, as ideias e razões europeias serviram de justificação para o favor, como momento de arbítrio. Na sua perspectiva o favor seria, de início, incompatível com as ideias liberais, porém a sua natureza o absorveu e deslocou, originando um padrão particular.89 Para Schwarz, o favor é uma mediação quase universal, sendo mais simpático do que o nexo escravista, de modo que “é compreensível que os escritores tenham baseado nele a sua interpretação do Brasil, involuntariamente disfarçando a violência, que sempre reinou na esfera da produção”.90 Para Schwarz, escravismo e favor introduziram-se de maneira enviesada no tempo, fora de centro em relação às exigências que propunham. O “inevitável desajuste” ao qual se refere o autor reverberou pela máquina do colonialismo e pelo bastião da escravidão, desconcertando ideias.91 Desse modo, “Conhecer o Brasil era saber destes deslocamentos, vividos e praticados por todos como uma espécie de fatalidade, para os quais, entretanto, não havia nome, pois a utilização imprópria dos nomes era a sua natureza”.92 Nesse âmbito, tem-se que, para Schwarz: 87 SCHWARZ, Roberto [org.]. Ao vencedor as batatas. São Paulo: Duas Cidades, 2000 [1992], p. 17. 88 NEVES, Marcelo. Ideias em outro lugar? Constituição liberal e codificação do direito privado na virada do século XIX para o século XX no Brasil. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 30, n. 88, p. 5-27, jun. 2015. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102- 69092015000200005&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 01 jan. 2020, p. 6. 89 SCHWARZ, op. cit., p. 17. 90 Ibid., p. 16-17. 91 Ibid., p. 22 e 25-26. 92 Ibid., p. 26. 41 Assim, posto de parte o raciocínio sobre as causas, resta na experiência aquele “desconcerto” que foi o nosso ponto de partida: a sensação que o Brasil dá de dualismo e factício — contrastes rebarbativos, desproporções, disparates, anacronismos, contradições, conciliações e o que for — combinações que o Modernismo, o Tropicalismo e a Economia Política nos ensinaram a considerar.93 O elemento “surpresa” para Schwarz não é a escravidão, já que a sua convivência com o liberalismo era familiar. A adição está, para o autor, no favor, compreendendo este como “o mecanismo através do qual se reproduz uma das grandes classes da sociedade, envolvendo também outra, a dos que têm”.94 E de que difere o favor da mera expressão de interesses da classe dominante? De Holanda a Leal, a caricatura do favor é um processo intrínseco que faz das desigualdades sociais a sua base para exprimir-se em um plano paralelo e privado, no sentido de que subsiste de maneira independente àquilo que é oficial, resistindo ao tempo e às intempéries, renovando-se. O favor é transversal e perpassa as esferas jurídico-política, social e econômica. Logo, para Schwarz, o Brasil, ao longo de sua reprodução social coloca e realoca ideias europeias “sempre em sentido impróprio”95, e é nessa qualidade que elas são matéria e problema para a literatura, causando a desqualificação do pensamento entre nós, o que toca em um ponto nevrálgico, ainda nos causando desconforto.96 Silva sublinha que Schwarz apreende o liberalismo como uma ideologia dissonante, porém não disfuncional, de tal modo que o caráter “fora do lugar” de suas ideias não parece impor uma rejeição ao fato de que uma ideia “importada” pode não ser localmente disfuncional, ou mesmo que se tenha determinado valor civilizatório do capitalismo na periferia.97 Para Neves, deveria ser afastada a concepção de “ideias fora do lugar” e o seu corolário, ou seja, a falta de descrição da realidade brasileira. Isto porque as ideias liberais de vetor constitucional ou jurídico estariam relacionadas com a dimensão normativa das estruturas sociais, não possuindo, assim, uma função primariamente descritiva. Seria mais 93 SCHWARZ, Roberto [org.]. Ao vencedor as batatas. São Paulo: Duas Cidades, 2000 [1992], p. 21. 94 Ibid., p. 16. 95 Ibid., p. 29. 96 Ibid., p. 28-29. 97 SILVA, Júlio Cezar Bastoni da. O lugar das ideias: panorama de um debate. Em Tese, Belo Horizonte, v. 21, n. 1, p. 42-59, jan./abr. 2015. Disponível em: http://www.periodicos.letras.ufmg.br/index.php/emtese/article/view/8236/0. Acesso em: 21 dez. 2020, p. 47. 42 adequado, conforme tal perspectiva, dizer que as ideias liberais iriam adquirir diferentes funções nos diversos lugares político-jurídicos estatalmente organizados, mas que pertenceriam à semântica da sociedade mundial, traduzida em seu lugar de circulação.98 Entretanto, a argumentação das “ideias fora do lugar”, para além da inadequação de certas referências a um contexto social, traz um processo que, conforme assevera Ricupero,99 completa-se na forma, conciliando exterior e interior. Em Schwarz, os países periféricos pegaram “emprestado” de países centrais formas como o romance, o sistema parlamentar, as normas jurídicas etc., que sofreram uma espécie de torção mediante as condições com as quais se depararam. Além do mais, se é verdadeiro afirmar que a adoção de conceitos estrangeiros gera sérias distorções, para Schwarz, distorcer conceitualmente sua realidade não é algo que pode ser evitado. Ao contrário, é justamente em razão dessas distorções, em designar a realidade local com nomes impróprios, que reside a especificidade da cultura brasileira, aliás, da cultura latino-americana.100 Outra significativa contribuição de Schwarz consiste em desmistificar a noção de que categorias europeias teriam sido meramente distorcidas no Brasil, incluindo as ideias liberais. Isto é, há uma complexidade por trás delas e das relações em meio às quais se desenvolveram, de modo que ignorar essa complexidade impede discernir os objetivos atrelados ao seu uso e à totalidade em que essas categorias estão inseridas. Seguindo a visão de Ricupero, é desenhada por Schwarz uma tensão entre forma e ambiente que abre rumos a outros conceitos, ainda que a má formação (ou recepção) de ideias possa ganhar interesse, por seu caráter generalizador.101 De acordo com esse viés, afirma Schwarz que: Vantagens não há de ter tido; mas para apreciar devidamente a sua complexidade considere-se que as ideias da burguesia, a princípio voltadas contra o privilégio, a partir de 1848 se haviam tornado 98 NEVES, Marcelo. Ideias em outro lugar? Constituição liberal e codificação do direito privado na virada do século XIX para o século XX no Brasil. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 30, n. 88, p. 5-27, jun. 2015. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102- 69092015000200005&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 1 jan. 2020, p. 18. 99 RICUPERO, Bernardo. Da formação à forma: ainda as “idéias fora do lugar”. Lua Nova, São Paulo, n. 73, p. 59-69, 2008. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102- 64452008000100003&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 16 dez. 2020, p. 64-68. 100 PALTI, Elías José. The Problem of “Misplaced Ideas” Revisited: Beyond “History of Ideas” in Latin America. Journal of the History of Ideas, v. 67, n. 1, p. 149-179, jan. 2006. Disponível em: https://muse.jhu.edu/article/194648. Acesso em: 27 ago. 2021, p. 152. 101 RICUPERO, op. cit., p. 64-68. 43 apologética: a vaga das lutas sociais na Europa mostrara que a universalidade disfarça antagonismos de classe.102 Existem limitações do conceito de Schwarz, que incluem a falha em expressar com precisão seu contexto, abrindo caminho para uma interpretação simplista de sua perspectiva, como uma denúncia da irrealidade das ideias. Além disso, há o seu ceticismo quanto a projetos de emancipação, o que traz certa ambiguidade ao conceito proposto. Apesar disso, a sua contribuição decisiva reside na formulação do problema originalmente colocado, isto é, como enfrentar a questão da natureza periférica da cultura local, compreendendo a dinâmica peculiar que tal condição impõe para as ideias da região, sem recair em esquemas dualistas e em visões essencialistas próprias das correntes nacionalistas.103 1.3 A RÉPLICA DE CARVALHO FRANCO A SCHWARZ: AS IDEIAS ESTÃO EM SEU LUGAR Os críticos de Schwarz voltaram as suas energias, desde a década de 1970, não tanto para a sua interpretação literária, mas para a questão da adequação ou função do liberalismo no Brasil, asseverando não fazer sentido se falar em “ideias fora do lugar”, já que algumas delas, ao exemplo das liberais, caso não fossem funcionais, ou melhor, adequadas ao Brasil, não conseguiriam persistir nesse âmbito. Adicionado a isso, tem-se o argumento de que o liberalismo não é incompatível com a escravidão, tal como comprovam os escritos de alguns de seus principais representantes, como John Locke, Adam Smith e Jean Baptiste Say.104 Conforme Silva, o debate centra-se na função, se não melhor dizer adequação, do liberalismo no país. Nesse viés, a adequação poderia ser interpretada por duas frentes: (i) a primeira delas encarando a dicotomia entre teoria e prática, ou seja, a discrepância entre o liberalismo enquanto horizonte econômico, político e societário e sua aplicação nas bases rurais, arcaicas e fundamentadas na mão de obra escrava no Brasil, socialmente excludente. Isto é, o liberalismo como ideologia, no sentido de uma “falsa consciência”, 102 SCHWARZ, Roberto [org.]. Ao vencedor as batatas. São Paulo: Duas Cidades, 2000 [1992], p. 20-21. 103 PALTI, Elías José. The Problem of “Misplaced Ideas” Revisited: Beyond “History of Ideas” in Latin America. Journal of the History of Ideas, v. 67, n. 1, p. 149-179, jan. 2006. Disponível em: https://muse.jhu.edu/article/194648. Acesso em: 27 ago. 2021, p. 157-158. 104 RICUPERO, Bernardo. Da formação à forma: ainda as “idéias fora do lugar”. Lua Nova, São Paulo, n. 73, p. 59-69, 2008. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102- 64452008000100003&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 16 dez. 2020, p. 60. 44 ainda que partindo de uma noção diversa de ideologia do que se entenderia nos países centrais. E (ii) a segunda, vislumbrando as peculiaridades do liberalismo “à brasileira”, consistente na forma assumida no contexto da região, em consonância à inserção brasileira na economia local.105 Essa primeira linha argumentativa concebe que o liberalismo não tem aplicação no Brasil além da mera retórica, dado que está atrelado aos processos, instituições e economias que o sustentam.106 Em seu extremo, essa interpretação diz que a ideologia liberal não tem se “encaixado” na realidade do país, que é alheia e disfuncional em relação a ele. Tal acepção, que é constantemente atribuída ao ensaio de Schwarz, traz o liberalismo como espécie de instrumento utilizado pelas elites brasileiras para resguardar os seus interesses e legitimar a sua dominação.107 A segunda abordagem não é, todavia, alternativa em relação à primeira, mas o que geralmente acontece é que se rejeita a concepção de uma ideia sem justificativa de existência no país — uma “ideia fora do lugar” — para então pensar em qual seria a sua forma de adequação no cenário brasileiro, tal como veremos em Carlos Nelson Coutinho. O posicionamento de Roberto Schwarz foi continuamente entendido como uma negação ao parecer de que o liberalismo tem uma função e justificativa no contexto brasileiro, apesar das condições em que se sedimentou.108 Talvez uma das críticas mais conhecidas de Schwarz tenha sido Maria Sylvia de Carvalho Franco, referência no que tange ao papel do favor na sociedade brasileira do século XIX. Da autora, destaca-se a obra Homens livres na ordem escravocrata (1969), na qual defende que não se pode assumir que há na realidade brasileira uma ligação implícita de exterioridade com as ideias oriundas do centro capitalista e o ambiente social brasileiro.109 Este ponto é apreciado em mais detalhes quando tratamos do diálogo de Schwarz com Bosi e Coutinho. Em linhas gerais, argumentamos que Schwarz assume que a absorção de ideias e padrões pelas colônias foi imposta e inevitável, e o descentramento 105 SILVA, Júlio Cezar Bastoni da. O lugar das ideias: panorama de um debate. Em Tese, Belo Horizonte v. 21 n. 1, p. 42-59, jan./abr. 2015. Disponível em: http://www.periodicos.letras.ufmg.br/index.php/emtese/article/view/8236/0. Acesso em: 21 dez. 2020, p. 43-44. 106 Ibid., p. 43-44. 107 Ibid., p. 44-45. 108 Ibid., p. 44-45. 109 RICUPERO, Bernardo. Da formação à forma: ainda as “idéias fora do lugar”. Lua Nova, São Paulo, n. 73, p. 59-69, 2008. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102- 64452008000100003&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 16 dez. 2020, p. 61. 45 a que ele se refere não é exterior — como se a colônia fosse em sentido contrário à metrópole —, mas é um descentramento interno. Isto é, denuncia o choque e a inadequação dessas ideias com a realidade local. Veremos que a crítica de Carvalho Franco se vale do cerne do argumento de Schwarz, construindo premissas sobre os postulados dele, mas chegando a conclusões opostas. Carvalho Franco enfatiza a realidade das ideias e suas condições de possibilidade, enquanto Schwarz frisa os desajustes entre ideias e a realidade brasileira.110 Na obra mencionada acima, Carvalho Franco procura investigar as relações que se estabeleceram entre os homens livres no Vale do Paraíba do século XIX, apresentando como a sua coordenação se deu a partir da “dominação pessoal” no Brasil. E como esse processo foi marcado por uma violência característica, formadora da rede de contraprestações de serviços proporcionados e favores recebidos. Nesse sentido, ela assume o “compadrio” como relação paradigmática que permite ou até exige a quebra das hierarquias sociais, considerando que há uma união exterior ao parentesco.111 A autora trata da figura do escravo como “presença ausente” no mundo dos homens livres, que ela procura reconstruir, sugerindo um ponto de vista sobre o lugar e o significado da escravidão na sociedade colonial. Ela descreve como a organização do trabalho limitava-se à produção especializada em face das próprias condições do latifúndio no Brasil, ocorrendo em paralelo à generalização da forma mercantil das relações econômicas.112 Para ela, predominava uma inclinação de vontades em harmonia, que resultava em tensões, “havendo escassas possibilidades de emergirem à consciência dos dominados”.113 Assinala a autora que ante a diversidade de sentido da escravidão antiga e moderna — visto que a última se desenvolveu com ligação estrita ao mundo europeu, que se orientava para o trabalho livre —, haveria uma dificuldade em se conceituar um modo de produção a partir da presença do escravo. Ela defende que a escravidão era simplesmente uma instituição, mas não um modo de produção em si.114 110 PALTI, Elías José. The Problem of “Misplaced Ideas” Revisited: Beyond “History of Ideas” in Latin America. Journal of the History of Ideas, v. 67, n. 1, p. 149-179, jan. 2006. Disponível em: https://muse.jhu.edu/article/194648. Acesso em: 27 ago. 2021, p. 154-155. 111 BOTELHO, André. Teoria e história na sociologia brasileira: a crítica de Maria Sylvia de Carvalho Franco. Lua Nova, São Paulo, n. 90, p. 331-366, dez. 2013. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102- 64452013000300012&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 14 jan. 2021, p. 331 e 341-342. 112 FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens livres na ordem escravocrata. 4. ed. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1997, p. 9-13. 113 Ibid., p. 95. 114 Ibid., p. 9-13. 46 Na Antiguidade Clássica, não se tinha a escravidão-mercadoria sobre base racial e apesar de ter alcançado, ao exemplo de Roma, notável difusão, o escravo podia esperar a conquista da sua liberdade, de seus filhos e netos e até uma posição social eminente. Já no início do século XVIII, as colônias inglesas na América em grande parte adotaram normas para dificultar cada vez mais a possibilidade de emancipação dos escravos.115 Assume Carvalho Franco que a escravidão consiste em uma espécie de procedimento que possibilita “reconhecer a exploração do escravo como parte em que se pode encontrar, nem mais nem menos que em outra do sistema considerado, relações sociais em cujo curso se procede à unificação dos diferentes e contraditórios elementos nele presentes”.116 Contudo, ela refere-se à “economia de base escravista” como algo entrelaçado ao mundo europeu, que se orientava ao trabalho livre, em paralelo com a divisão social do trabalho e a generalização da forma mercantil. Ela aponta que nos séculos XV e XVI, “quando a escravidão aparece suportando um estilo de produção vinculado ao sistema capitalista, o escravo surgiu redefinido como categoria puramente econômica”.117 Para ela, uma das mais importantes implicações da escravidão é o fato de que o sistema mercantil se expandiu condicionado a uma fonte externa de suprimento de trabalho.118 A sua controversa recusa em tratar a escravidão como modo de produção — da qual discordamos, visto que ela minimiza a importância da instituição para a organização das relações econômicas —, pode ser atribuída à ênfase na propriedade fundiária e seu caráter quase autárquico, bem como na formação da população “livre”. As bases da tese segundo a qual a escravidão constitui uma instituição essencial, articulando a sociedade brasileira, estão no programa de investigação encabeçado por seu orientador, Florestan Fernandes — em especial, sua tese de cátedra, A integração do negro na sociedade de classes (1964).119 Interessa aqui enaltecer que apesar de Carvalho Franco ter influenciado notavelmente Schwarz na acepção do favor, as suas demais construções não apresentaram a mesma proximidade. Tanto é que, em resposta a Schwarz, As ideias estão em seu lugar 115 FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens livres na ordem escravocrata. 4. ed. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1997, p. 54. 116 Ibid., p. 13. 117 Ibid., p. 13. 118 Ibid., p. 14. 119 BOTELHO, André. Teoria e história na sociologia brasileira: a crítica de Maria Sylvia de Carvalho Franco. Lua Nova, São Paulo, n. 90, p. 331-366, dez. 2013. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102- 64452013000300012&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 14 jan. 2021, p. 337-338. 47 (1976) de Carvalho Franco opõe-se à visão de que as ideias liberais seriam “inadequadas” ao cenário brasileiro. Carvalho Franco afirma que admitir oposições entre metrópole e colônia, atraso e progresso, desenvolvimento e subdesenvolvimento, tradicionalismo e modernização, hegemonia e dependência, traz o pressuposto implícito de uma diferenciação essencial entre nações metropolitanas — núcleo hegemônico do sistema — e os povos coloniais subdesenvolvidos, periféricos e dependentes. E essa perspectiva, em relação à qual a autora se posiciona contrariamente, está, segundo ela, vinculada a uma noção de exterioridade entre os dois termos em oposição, admitindo uma relação de causalidade entre eles e estabelecendo uma ordem de sucessão entre as sociedades tributárias e as suas antecessoras.120 Para a autora, o problema nessa construção está em dissociar analiticamente as suas partes, isto é, em considerar os postulados de que Europa e Brasil apresentam uma relação de exterioridade, porém, com modos de produção diferentes, cujo processo social refere-se a algo permanente e diverso do capitalismo, derivando dessas acepções a teoria do pensamento brasileiro das ideias fora do lugar, condizente à importação, pelo Brasil, de mercadorias e ideologias dos centros europeus.121 Porém, em sentido contrário, na esteira do que argumenta Palti,122 defende-se que Schwarz buscou traduzir em chave cultural os postulados da chamada “teoria da dependência”, que tomou forma no Seminário de Marx. Essa teoria pretendia refutar as abordagens dualistas que anteviam as áreas periféricas como vestígios de um mundo pré- capitalista, que tende historicamente a desaparecer, cujas nações replicariam o mesmo padrão de desenvolvimento “linear” dos países centrais. De maneira diversa, a teoria da dependência postulava a existência de um complexo dinamismo entre o centro e a periferia, formando assim um sistema único e interconectado. Carvalho Franco recusou não apenas a ideia de que a escravidão era incompatível com a expansão capitalista, mas também de que as ideias liberais eram “mal ajustadas” ao Brasil do século XIX. Ou seja, para ela as ideias liberais não eram nem mais nem menos estranhas do que as correntes pró-escravatura e, nesse sentido, Schwarz teria 120 FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. As ideias estão em seu lugar. Cadernos de Debate, n. 1, p. 60- 64, 1976. História do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1976, p. 61. 121 Ibid., p. 62. 122 PALTI, Elías José. The Problem of “Misplaced Ideas” Revisited: Beyond “History of Ideas” in Latin America. Journal of the History of Ideas, v. 67, n. 1, p. 149-179, jan. 2006. Disponível em: https://muse.jhu.edu/article/194648. Acesso em: 27 ago. 2021, p. 150-151. 48 supostamente recaído no tipo de dualismo que pretendia contrariar, isto é, no postulado da existência de “dois Brasis”: um artificial, de ideias e política (liberal), versus algum Brasil “verdadeiro”, social (que era escravocrata).123 Nesses quadros, conforme Carvalho Franco, tomar o liberalismo como fora do lugar significaria dizer que temos as ideias e razões burguesas europeias de um lado e, de outro, o favor e escravismo brasileiros, incompatíveis com elas, perdendo-se de vista os processos reais de produção ideológica no Brasil.124 Prossegue, defendendo que: Para evitar esse risco, é preciso partir de uma teoria que diverge, ponto por ponto, do esquema atrás explicitado: colônia e metrópole não recobrem modos de produção essencialmente diferentes, mas são situações particulares que se determinam no processo interno de diferenciação do sistema capitalista mundial, no movimento imanente de sua constituição e reprodução. Uma e outra são desenvolvimentos particulares, partes do sistema capitalista, mas carregam ambas, em seu bojo, o conteúdo essencial — o lucro — que percorre todas as suas determinações. Assim, a produção e a circulação de ideias só podem ser concebidas como internacionalmente determinadas, mas com o capitalismo mundial pensado na forma indicada, sem a dissociação analítica de suas partes.125 De acordo com essa abordagem, o ideário liberal burguês, no pilar da igualdade formal, não “entra” no Brasil, mas aparece no processo de constituição das relações de mercado, sendo inerente a elas. Sob esse ângulo, as origens da miséria no Brasil não devem ser buscadas, na sua visão, no empobrecimento de uma cultura importada, “mas no modo mesmo como a produção teórica se encontra internamente ajustada à estrutura social e política do país”.126 Também coloca que: Falar, portanto, de capitalismo mundial, nesse contexto, pouco altera o que se dizia e fazia sob a inspiração da teoria dualista. Esse novo dualismo vai padecer exatamente dos mesmos prejuízos políticos e práticos já indicados: uma valorização tácita da industrialização, na verdade do capitalismo e de seus conteúdos civilizatórios, no pressuposto de que traga consigo o progresso das instituições democráticas burguesas. [...] Como resultado desta nova figura da mesma noção de progresso acima referida, vemos revalorizados os componentes da cultura capitalista: aparecem reforçadas as 123 PALTI, Elías José. The Problem of “Misplaced Ideas” Revisited: Beyond “History of Ideas” in Latin America. Journal of the History of Ideas, v. 67, n. 1, p. 149-179, jan. 2006. Disponível em: https://muse.jhu.edu/article/194648. Acesso em: 27 ago. 2021, p. 153. 124 FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. As ideias estão em seu lugar. Cadernos de Debate, n. 1, p. 60- 64, 1976. História do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1976, p. 62. 125 Ibid., p. 62. 126 Ibid., p. 63. 49 representações abstratas da democracia burguesa. Assim, em nome do realismo político se dá um passo atrás na crítica da consciência social e por essa via — com as ideias bem no lugar e ajustadas às oportunidades políticas imediatas — se mergulha no retrocesso.127 Temos que, inicialmente, o liberalismo constituiu expressão de autoconsciência de uma classe dominante, qual seja, os proprietários de escravos ou de servos, formando- se em meio à emergência e afirmação do sistema capitalista e às práticas de expropriação e opressão, endereçadas pela metrópole às colônias, caracterizando, assim, a acumulação originária.128 Em Carvalho Franco, a refutação de qualquer ideia “ambígua” ou “dual” para explicar a estrutura social desenrolada do latifúndio — e consequentemente a situação dos homens livres pobres — tem fundamento no conceito de “unidade contraditória” em detrimento da ideia de “dualidade integrada”.129 A autora vai, assim, partir do pressuposto de que as velhas dicotomias não meramente desaparecem, afirmando que: [...] Respeitar-se-á, ao invés, sua integridade, ao se apreender aquelas duas modalidades de produzir como práticas que são constitutivas uma da outra. Dessa perspectiva, os princípios opostos de ordenação das relações econômicas aparecem sintetizados e, ao observá-los, não seremos levados a representar a economia colonial como dualidade integrada, mas como uma unidade contraditória. Essa síntese, determinada na gênese do sistema colonial, sustentou, com suas ambiguidades e tensões, a maior parte da história brasileira.130 Posteriormente, Schwarz esclareceu em Martinha versus Lucrécia: ensaios e entrevistas (2012) que o tema do seu ensaio deu margem a equívocos, de maneira que o “mal-entendido principal nasceu do próprio título”,131 fixando a discussão em um falso problema, ou ainda, naquele que se procurava superar. Clarifica o autor que: [...] Ora, é claro que nunca me ocorreu que as ideias no Brasil estivessem no lugar errado, nem aliás que estivessem no lugar certo, e 127 FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. As ideias estão em seu lugar. Cadernos de Debate, n. 1, p. 60- 64, 1976. História do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1976, p. 64. 128 Ibid., p. 256-257. 129 BOTELHO, André. Teoria e história na sociologia brasileira: a crítica de Maria Sylvia de Carvalho Franco. Lua Nova, São Paulo, n. 90, p. 331-366, dez. 2013. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102- 64452013000300012&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 14 jan. 2021, p. 356 e 361. 130 FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens livres na ordem escravocrata. 4. ed. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1997, p. 11. 131 SCHWARZ, Roberto. Martinha versus Lucrécia: ensaios e entrevistas. São Paulo, Companhia das Letras, 2012, p. 165. 50 muito menos que eu pudesse corrigir a sua localização — como o título sugeriu a muitos leitores. Ideias funcionam diferentemente segundo as circunstâncias. Mesmo aquelas que parecem mais deslocadas, não deixam de estar no lugar segundo outro ponto de vista. Digamos então que o título, no caso, pretendeu registrar uma sensação das mais difundidas no país e talvez no continente — a sensação de que nossas ideias, em particular as adiantadas, não correspondem à realidade local —, mas de modo nenhum expressava a opinião do autor.132 Schwarz continua a sua reflexão enaltecendo que essa convicção de que as ideias “avançadas” da Europa estão “fora do lugar” não é nova, constituindo um dos pilares do pensamento conservador brasileiro.133 Trata-se, assim, de esclarecimentos sobre as “razões históricas pelas quais as ideias e as formas novas, indispensáveis à modernização do país, causavam não obstante uma irrecusável sensação de estranheza e artificialidade”.134 Ele não busca, assim, dizer que as instituições e ideias do Ocidente são estrangeiras e postiças, mas debater as razões de esse sentimento existir, remetendo a um fato social de relevância, que se desenvolveu ao longo de mais de um século e meio, a ponto de formar uma ideologia influente.135 Tal reivindicação deu-se por incompleta em 1822, já que Pedro I, além de português, voltava-se aos interesses dinásticos de Lisboa. Com sua partida do Brasil em 1831, tornou-se Pedro IV em Portugal, de modo que a antiga colônia era apenas um “trampolim” para que ele alcançasse o trono em Lisboa. Já a classe dominante escravista no Brasil buscava um Estado todo dela, pois queriam estar representados e isso pode ser notado pelo fato de que políticos brasileiros como José Bonifácio, José Clemente Pereira e Gonçalves Ledo eram constitucionalistas.136 Outrossim, Schwarz explica que essas ideias exercem funções, porém, não realizam uma descrição verossímil do cotidiano, de forma que as “relações de hegemonia existem, e desconhecê-las, se não for num movimento de superação crítica, é por sua vez uma resposta fora do lugar”.137 De acordo com o autor: [...] ideias sempre têm alguma função, e nesse sentido sempre estão no seu lugar. Entretanto, as funções não são equivalentes, nem têm o 132 SCHWARZ, Roberto. Martinha versus Lucrécia: ensaios e entrevistas. São Paulo, Companhia das Letras, 2012, p. 165-166. 133 Ibid., p. 165. 134 Ibid., p. 167. 135 Ibid., p. 168. 136 Ibid., p. 210. 137 Ibid., p. 171. 51 mesmo peso. Considere-se, por exemplo, que o ideário liberal na Europa oitocentista correspondia à tendência social em curso, a qual parecia descrever corretamente, inclusive do ponto de vista do trabalhador, que vende a sua força de trabalho no mercado. Mesmo a crítica marxista, que desmascara a “normalidade” da relação salarial, reconhece que ela tem fundamento nas aparências reais do processo, ou seja, no trabalho livre. Ora, nas ex-colônias, assentadas sobre o trabalho forçado, o liberalismo não descreve o curso real das coisas — e nesse sentido ele é uma ideia fora do lugar. Não impede contudo que ele tenha outras funções.138 A caracterização do liberalismo como uma “ideia fora do lugar” deriva do quadro político da Independência brasileira, por meio do qual a tentativa de montagem do Estado nacional recorreu a instituições “importadas” do modelo europeu, mantendo na colônia, contudo, a estrutura socioeconômica embasada na grande exploração e contando com o trabalho escravo para a produção de bens ao mercado externo. O liberalismo combinou-se com a dominação pessoal, o paternalismo, o clientelismo e o favor, fomentados pela escravidão. Assim, as proclamações originalmente universalistas passaram a ter utilidade para a defesa de interesses particularistas. Porém, a referência ao liberalismo teve base real, considerando a ligação do país à ordem burguesa que o estabeleceu, integrando-se ao capitalismo mundial de forma bastante particular, de modo que a escravidão forneceu a força de trabalho para garantir-nos um lugar na divisão internacional do trabalho.139 Ao se referir ao liberalismo como “ideias fora do lugar”, Roberto Schwarz buscou trazer à luz o sentimento de “despropósito” causado pela “inadequação” destas para descrever a realidade brasileira, o que não exclui a possibilidade de que essas ideias exerçam uma função e tenham uma justificativa. O descentramento no qual Schwarz foca a sua análise é aquele interno, que ocorre no âmbito das relações sociais no país consoante as características culturais historicamente concebidas.140 Apesar do fato de que a posição de Schwarz traz um certo ceticismo quanto à viabilidade de projetos de emancipação na região, a sua visão demonstra-se mais sensível às peculiaridades do caráter periférico da cultura local, o que na perspectiva de Carvalho 138 SCHWARZ, Roberto. Martinha versus Lucrécia: ensaios e entrevistas. São Paulo, Companhia das Letras, 2012, p. 170-171. 139 RICUPERO, Bernardo. O lugar das ideias: Roberto Schwarz e seus críticos. Sociologia & Antropologia, Rio de Janeiro, v. 3, n. 6, p. 525-556, jul./dez. 2013. Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2238- 38752013000600525&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 16 dez. 2020, p. 528-529. 140 COSTA, Igor Nunes. A ideia de descentramento em Roberto Schwarz. 2012. 130 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) — Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2012. Disponível em: https://repositorio.ufes.br/handle/10/5832. Acesso em: 20 dez. 2020, p. 105. 52 Franco parece se dissolver na ideia de unidade da cultura ocidental. A interpretação de Carvalho Franco, ainda que busque tentar resolver o mencionado problema em Schwarz, torna mais evidente o caráter político da atribuição de “alteridade” a algumas ideias.141 O que Carvalho Franco expõe é um ponto cego do conceito de Schwarz: a premissa em que se baseia o seu conceito é inacessível se tomada dentro dele, isto é, como se determinar quais ideias estão fora do lugar, e quais não estão, exceto dentro de uma determinada estrutura conceitual particular?142 1.4 AS BASES E CARACTERÍSTICAS PECULIARES DO LIBERALISMO BRASILEIRO EM EMÍLIA VIOTTI DA COSTA A contradição entre a ética do liberalismo e a ética do clientelismo possibilitou aos brasileiros avaliar o liberalismo sob a perspectiva do clientelismo e avaliar o clientelismo sob a perspectiva do liberalismo. A ética do clientelismo revelou o vazio da retórica liberal. A retórica liberal expôs a violência e opressão do clientelismo. Nada poderia definir melhor a especificidade do liberalismo brasileiro do que as palavras de Machado de Assis: “No Brasil a ciência política encontra um limite na bala do capanga”.143 Emília Viotti traz, em The Brazilian Empire: myths and histories (1985),144 relevantes considerações sobre a absorção do liberalismo no Brasil, destacando o movimento para a autonomia política das colônias europeias do Novo Mundo e o papel fundamental do acontecimento da Independência para a compreensão desse processo. A questão central nessa obra é como a autora explicita a dissincronia entre esses dois extremos — Brasil e Europa —, destrinchando mitos e revelando o que há por trás da aparência de que o liberalismo brasileiro seria mero fruto de um atraso na adesão de ideias e um descompasso com o resto do mundo. Dentre seus argumentos fundamentais, ela assevera que a Independência era um objetivo conjunto de amplos setores, desde os proprietários de terras que buscavam um lugar na nova lógica que se impunha, os movimentos emancipatórios, até a Igreja. Também corrobora para o entendimento da posição apartada do escravo nesse âmbito. Passaremos a colacionar, a seguir, as questões fundamentais de sua obra que convergem 141 PALTI, Elías José. The Problem of “Misplaced Ideas” Revisited: Beyond “History of Ideas” in Latin America. Journal of the History of Ideas, v. 67, n. 1, p. 149-179, jan. 2006. Disponível em: https://muse.jhu.edu/article/194648. Acesso em: 27 ago. 2021, p. 149, 155 e 157. 142 Ibid., p. 157-158. 143 COSTA, Emília Viotti da. The Brazilian Empire: myths & histories. Revised Edition. The University of North Carolina Press: Chapel Hill and London, 2000, p. 77. Tradução livre. 144 Utilizou-se a edição revisada de 2000, da editora da The University of North Carolina Press. 53 para a noção do pacto com os escravos e apresentam aspectos que aclaram e dialogam com a perspectiva de Schwarz. Para Viotti, a crise do sistema colonial “coincidiu” com a crise das formas absolutistas de governo, bem como a crítica ao antigo regime, as novas doutrinas do contrato social e o culto à liberdade e igualdade perante a lei, além do compromisso com formas representativas de governo. Esses dogmas liberais serviram para desafiar as formas tradicionais de poder e organização social na Europa e no Novo Mundo. No Brasil, tais ferramentas ideológicas revolucionárias forneceram aos colonos motivos adicionais para justificar sua rebelião. O desenvolvimento de ideologias que confrontavam a base teórica do Estado absolutista somou-se à expansão do mercado internacional e aumento da demanda por produtos coloniais.145 Evidentemente, os levantes coloniais e a repressão que se seguiu revelaram o antagonismo fundamental entre os interesses da colônia e os da metrópole. Os colonos perceberam que os seus interesses estavam mais ligados ao Brasil do que a Portugal e suas lutas, que antes pareciam conflitos entre súditos do mesmo rei, tornaram-se lutas entre colonos e a pátria. Os colonos passaram a identificar os interesses da Coroa com os da metrópole, criticando o poder indiscriminado do rei e enfatizando a soberania do povo. Segundo Viotti, foi “por essas razões e dentro dessa disputa que os colonos se tornaram receptivos às ideias liberais”.146 No Brasil, o liberalismo tornou-se a ideologia das oligarquias rurais, contra a metrópole e as instituições coloniais que restringiam os proprietários de terras e os mercadores, os dois grupos mais poderosos da sociedade colonial. O liberalismo traduziu- se no desejo das oligarquias de independência das imposições da Coroa portuguesa. Entretanto, elas não estavam dispostas a abandonar o seu controle sobre a terra e o trabalho, nem queriam mudar o sistema tradicional de produção, o que as levou a purgar o liberalismo de suas tendências mais radicais.147 Uma outra característica peculiar dos liberais brasileiros nesse período foi a sua atitude conciliatória em relação à Igreja e à religião, com a participação de numerosos padres na revolução. Pode parecer difícil à primeira vista explicar essa tendência 145 COSTA, Emília Viotti da. The Brazilian Empire: myths & histories. Revised Edition. The University of North Carolina Press: Chapel Hill and London, 2000, p. 1-3. 146 Ibid., p. 5. Tradução livre. 147 Ibid., p. 8-9. 54 revolucionária do clero e sua atitude empática para com a Maçonaria, que na Europa dava suporte à luta contra a Igreja. Todavia, uma análise atenta revela que o direito de patrocínio concedido pelo Papa aos reis portugueses representou fonte da hostilidade do clero em relação ao sistema, explicando o seu compromisso com as ideias liberais. Outro ponto atípico foi o papel que as ideias nacionalistas desempenharam no Brasil. Ao passo que em boa parte das revoluções europeias do século XIX as ideias liberais e nacionalistas estavam intimamente associadas, no Brasil, as ideias nacionalistas encontraram menor proporção. Afinal, não foi favorecido o contato entre as províncias, já que o mercado interno era insignificante e a rede de comunicações que ligava as províncias era precária. Faltavam no Brasil, desse modo, as condições que levavam à integração nacional e inspiravam ideias nacionalistas na Europa.148 Nesse sentido, fazendo um paralelo com a percepção de Schwarz, nota-se que o objetivo final do autor era refutar a crença nacionalista de que bastava aos latino- americanos se livrarem de suas “vestes estrangeiras”, isto é, do conjunto de categorias e ideias importadas da Europa e replicadas pela elite local para encontrar a “essência” do Brasil. Diversamente, para Schwarz, não há uma cultura nacional brasileira que precede a cultura ocidental. Porém, a primeira não é apenas resultado da expansão da última, mas também constitui uma parte integrante dela.149 Anteriormente à Independência do Brasil, o conflito de classes e raça na sociedade brasileira muitas vezes podia ser disfarçado entre as ideias revolucionárias, pois todos lutavam pela mesma causa, isto é, emancipar a colônia da metrópole. Nesse âmbito, as fórmulas liberais eram suficientemente vagas e abstratas para abranger diferentes aspirações, criando um senso ilusório de unidade. Além disso, outros mecanismos operavam para acalmar as tensões de classes e raciais, como o sistema de clientela e clientelismo, que contribuía para uma aparência de camaradagem e reciprocidade, obscurecendo as distinções sociais. Assim: Apesar dos mecanismos que contribuíram para a solidariedade entre os revolucionários, seus objetivos, como vimos, eram frequentemente diferentes, senão contraditórios. Escravos visavam a emancipação; negros e mulatos livres esperavam abolir a discriminação racial e ganhar igualdade; os fazendeiros e mercadores brancos de classe alta 148 COSTA, Emília Viotti da. The Brazilian Empire: myths & histories. Revised Edition. The University of North Carolina Press: Chapel Hill and London, 2000, p. 9-10. 149 PALTI, Elías José. The Problem of “Misplaced Ideas” Revisited: Beyond “History of Ideas” in Latin America. Journal of the History of Ideas, v. 67, n. 1, p. 149-179, jan. 2006. Disponível em: https://muse.jhu.edu/article/194648. Acesso em: 27 ago. 2021, p. 151-152. 55 queriam acima de tudo se libertar das restrições impostas pela metrópole, mas não estavam dispostos a emancipar seus escravos ou fazer concessões fundamentais aos pobres. Esses interesses contraditórios entraram em conflito apenas após a Independência; anteriormente, diferentes grupos lutaram lado a lado contra o governo português.150 Após o abalo liberal na Espanha, João VI pressionou várias novas leis destinadas a favorecer os mercadores portugueses, esperando assegurar o seu apoio e evitar uma repetição de acontecimentos em Portugal. Porém, em agosto de 1820, aconteceu uma revolta na cidade do Porto e os revolucionários exigiram uma Constituição e o retorno imediato do rei a Portugal. No Brasil, os eventos geraram simpatia, de portugueses e brasileiros, pela revolução constitucionalista, de modo que mercadores e proprietários de plantações, funcionários reais e militares manifestaram seu apoio. Em 1821, João VI concordou em jurar lealdade a uma Constituição a ser escrita e ordenou que os conselhos municipais no Brasil fizessem o mesmo. Em seguida, ele deixou o Brasil e seu filho Dom Pedro como regente. Em 9 de janeiro de 1822, a pedido da Câmara Municipal do Rio de Janeiro, o príncipe anunciou que permaneceria no Brasil. Esta não foi, no entanto, uma declaração de independência. Em setembro de 1822, mediante a ameaça do envio de tropas ao Brasil, com a acusação de que o regente e seus conselheiros eram traidores e inimigos da Coroa, ficou claro então que o príncipe tinha apenas duas opções: retornar a Portugal sob essas condições ou formalizar a Independência e permanecer no Brasil como rei.151 A Independência do Brasil contou com o suporte das classes interessadas em preservar as estruturas sociais econômicas tradicionais, tendo como objetivo destruir o sistema colonial apenas na medida em que restringisse as oportunidades comerciais e a autonomia administrativa. O Brasil como nação independente continuou a ter uma economia colonial, mas passou da dependência de Portugal para a dependência da Grã- Bretanha.152 Segundo Viotti, o liberalismo brasileiro somente pode ser entendido por referência à realidade brasileira. Afinal, os liberais brasileiros importaram princípios liberais e fórmulas políticas, adaptando-os às suas próprias necessidades. Na Europa, o liberalismo foi originalmente uma ideologia burguesa, relacionada ao desenvolvimento do 150 COSTA, Emília Viotti da. The Brazilian Empire: myths & histories. Revised Edition. The University of North Carolina Press: Chapel Hill and London, 2000, p. 12. Tradução livre. 151 Ibid., p. 15-20. 152 Ibid., p. 23. 56 capitalismo e à crise do mundo senhorial, no seio das lutas da burguesia contra os abusos da autoridade real, dos privilégios do clero e da nobreza.153 Em diferentes momentos do século XIX, as ideias liberais foram usadas por pessoas com propósitos diversos. Ainda assim, por onde quer que os liberais tomassem o poder, o seu principal desafio era traduzir sua teoria em prática. Porém, no Brasil, os principais apoiadores do liberalismo tinham os seus interesses atrelados à economia de exportação e importação. Além disso, muitos deles possuíam grandes extensões de terra e escravos. As estruturas econômicas e sociais que as elites brasileiras queriam manter significavam a sobrevivência de um sistema de clientela e de valores tradicionais que representavam a própria essência contra o que lutavam os liberais europeus. E, nesse sentido, “lidar com essa contradição (entre liberalismo e escravidão e clientelismo) foi o maior desafio que os liberais brasileiros tiveram de enfrentar. O discurso liberal e a prática liberal no Brasil revelaram essa tensão permanente”.154 Somavam-se a situação colonial da economia brasileira, a posição periférica do Brasil no mercado internacional, o sistema de clientela e clientelismo, o uso de mão de obra escrava e a demora da Revolução Industrial. Essas circunstâncias combinadas deram ao liberalismo brasileiro a sua especificidade, definindo as suas questões e contradições e estabelecendo limites para a sua crítica. Isto é, a teoria liberal e a prática liberal no Brasil do século XIX podem ser explicadas pelas peculiaridades da burguesia brasileira e pela ausência de duas outras classes de referência na Europa: a aristocracia e o proletariado.155 Ao contrário do que às vezes se sugere, o compromisso da elite brasileira com as noções liberais não foi um mero gesto de mimetismo cultural, uma expressão de uma cultura colonial e periférica subordinada às ideias europeias e ao mercado europeu. O liberalismo não era apenas uma fantasia das elites brasileiras e slogans liberais não eram apenas emblemas que eles usavam para marcar seu status “civilizado”, embora para algumas pessoas possa ter sido apenas isso. Para a maioria das pessoas, entretanto, as ideias liberais eram armas ideológicas para alcançar alguns objetivos políticos e econômicos muito específicos.156 153 COSTA, Emília Viotti da. The Brazilian Empire: myths & histories. Revised Edition. The University of North Carolina Press: Chapel Hill and London, 2000, p. 53-54. 154 Ibid., p. 55. Tradução livre. 155 COSTA, loc. cit. 156 Ibid., p. 55-56. Tradução livre. 57 Se, de início, as ideias liberais foram um instrumento das elites coloniais brasileiras em sua luta contra a metrópole, as noções liberais também agradavam aos escravos, que sonhavam com a emancipação, e às classes populares urbanas, que esperavam abolir os privilégios que a riqueza havia criado e o governo português. Ou seja, os conflitos de interesses que opunham uma classe a outra foram temporariamente escondidos atrás do que parecia ser uma utopia abrangente, e os objetivos da elite poderiam ser apresentados como os objetivos de todos.157 Enquanto o liberalismo continuou a figurar como uma utopia para as elites, para a grande maioria da população brasileira estagnada no sistema de clientela e clientelismo o liberalismo nada mais era do que retórica vazia. Como consequência, para eles o liberalismo não teve o efeito de mascaramento que teve em outras partes do mundo. E esse papel ideológico foi desempenhado pelo patrocínio ético. Em outras palavras, como explica Viotti, a coexistência da ética do clientelismo com a ética liberal reproduziu, no plano ideológico, a experiência das pessoas que viviam em uma sociedade na qual o capitalismo emergiu dentro de uma rede de clientelismo.158 1.5 DIÁLOGOS ENTRE SCHWARZ, ALFREDO BOSI E CARLOS NELSON COUTINHO Na icônica obra Dialética da Colonização,159 publicada em 1992, Alfredo Bosi realiza uma abordagem do relacionamento entre os fenômenos do culto, da cultura e da colonização, na qual história e literatura são projetadas em diálogo permanente. O autor trabalha um contínuo debate de intérpretes da trajetória social brasileira, incluindo Sérgio Buarque de Holanda e Florestan Fernandes, tratando de questões essenciais para compreender processos de dominação.160 Ao apresentar a formação da colônia do Brasil, ele discorre sobre a “convivência patriarcal e estamental entre os poderosos, escravista ou dependente entre os 157 COSTA, Emília Viotti da. The Brazilian Empire: myths & histories. Revised Edition. The University of North Carolina Press: Chapel Hill and London, 2000, p. 56-60. 158 Ibid., p. 76-77. 159 Comenta Schwarz que a Dialética da colonização de Bosi [1992] “está causando um discreto escândalo” e “aspira a uma visão de conjunto da história do país, sob signo da formação colonial e de suas extensões problemáticas no presente. Algo paralelo ao que em seu momento fizeram Caio Prado Jr., Sérgio Buarque de Holanda e Celso Furtado”. In: SCHWARZ, Roberto. Sequências brasileiras. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 61 e 65. 160 SEREZA, Haroldo Ceravolo. Alfredo Bosi: história, prosa, poesia e resistência. Revista Maracanan, Rio de Janeiro, n. 27, p. 12-20, mai./ago. 2021. Disponível em: https://www.academia.edu/49846563/Alfredo_Bosi_hist%C3%B3ria_prosa_poesia_e_resist%C3%A Ancia. Acesso em: 1 nov. 2021, p. 14-15. 58 subalternos”,161 pontuando o liberalismo como importante instrumento das classes dominantes. Após a morte de Bosi, em 2021, Schwarz declarou que “No trabalho dele de historiador da literatura, sobretudo neste mais ambicioso, ele procurou inventar uma visão do Brasil. Que eu saiba, não tem ninguém parecido”.162 Cuidaremos a seguir dos aspectos mais marcantes de A Dialética da Colonização, segundo Schwarz, o livro “mais original”163 de Bosi no que tange ao liberalismo brasileiro, passando em seguida à sua interlocução com Schwarz, sublinhada na obra Sequências brasileiras deste autor. Conforme Bosi, nas colônias, a dependência e a exploração encontram espaço. O Brasil apresentava uma formação econômica-social na qual predominavam os interesses de uma camada de latifundiários, articulados a grupos mercantis europeus — destacando- se os traficantes de escravos africanos. E a introdução do liberalismo no Brasil ocorreu mediante a abertura dos portos, assinada pelo regente D. João em 1808, com a assessoria do futuro Visconde de Cairu, de tal sorte que nasceu daí uma fusão liberal-escravista, que passaria a ser contestada somente após a escassez da força de trabalho com a extinção do tráfico.164 As ideologias europeias foram transportadas e difundidas para os países de extração colonial, ao exemplo do liberalismo e do positivismo, de modo que os conquistadores trouxeram sua língua, culto e cultura, impondo-os aos povos colonizados e contando com um generalizado processo de aculturação linguística e religiosa.165 A articulação da ideologia liberal com a prática escravista estava relacionada ao modo de pensar dominante da classe política brasileira nos anos da Independência e durante a consolidação do novo Império entre 1831 e 1860. Isto é, na construção do Brasil como Estado autônomo a partir de um ideário de fundo conservador, que contava com um complexo de normas jurídico-políticas para garantir a propriedade fundiária e escrava até o seu limite.166 Entre nós, o processo de Independência desencadeou uma dialética de oposição, fazendo pairar contradições no nível dos interesses materiais circunscritos pelo antigo monopólio e pela vida simbólica, de modo que a tensão entre colônia em emancipação e 161 BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 25. 162 PORTO, Walter. Bosi procurou inventar uma visão do Brasil, diz Roberto Schwarz. Folha de São Paulo, São Paulo, 7 abr. 2021. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2021/04/bosi- procurou-inventar-uma-visao-do-brasil-diz-roberto-schwarz-veja-reacoes.shtml. Acesso em: 1.nov. 2021. 163 Ibid., s/p. 164 BOSI, op. cit., p. 18, 284 e 377. 165 Ibid., p.18. 166 Ibid., p. 295-296. 59 metrópole foi eriçada no Império decadente, persistindo na relação nação/colônia e novo/antigo.167 Nas áreas coloniais conviveram extremos: os projetos mais agressivos do capitalismo ocidental, havendo coabitação do arcaico com o modernizador. E esse seria um fenômeno cíclico na história da colonização.168 Tivemos entre nós a presença ubíqua dos negros, responsável por nivelar, de certa forma, todos os brancos, colocando-os em um espaço, em bloco, oposto à raça subordinada. O trabalho escravo constituiu-se como uma condição para a existência social do branco livre e proprietário.169 Veja-se, porém, que tal como defende Schwarz, de maneira contraditória, a norma liberal contava com a presença de uma ideologia familista, dotada de um sistema de obrigações filiais e paternais abrangendo escravos, dependentes, afilhados etc. O decoro patriarcal era somado a relações escravistas, clientelistas e burguesas.170 E foi instaurado um mal-estar no processo internacional iniciado com a Independência, que se apoiou em ideias e instituições variadamente liberais, com inspiração europeia e posteriormente norte-americana, conservando, concomitantemente, muitas formas econômicas da colônia e gerando um desajuste de base.171 A colonização, tal como assegura Bosi, pode ser interpretada como um processo material e simbólico, no qual as práticas econômicas dos seus agentes estão vinculadas aos seus meios de sobrevivência, sua memória e modos de representação, ou seja, não há condição colonial sem a vinculação de trabalhos, cultos, ideologias e culturas.172 A emancipação política do Brasil, segundo Schwarz, teve caráter eminentemente conservador, embora fizesse parte da transição para a nova ordem do capital. Desse modo, as conquistas liberais da Independência redefiniam as relações estrangeiras, mas não alcançavam o complexo socioeconômico provocado pela exploração colonial, que continuava intacto. Assim, senhor e escravo, bem como o latifúndio e os dependentes, o tráfico negreiro e a monocultura de exportação, permaneciam os mesmos em um contexto local e mundial transformado.173 167 BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 177. 168 Ibid., p. 49-50. 169 Ibid., p. 211-212. 170 SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis. 34 ed. São Paulo: Duas Cidades, 2000, p. 48. 171 SCHWARZ, Roberto. Martinha versus Lucrécia: ensaios e entrevistas. São Paulo, Companhia das Letras, 2012, p. 168. 172 BOSI, op. cit., p. 18 e 377. 173 SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis. 34 ed. São Paulo: Duas Cidades, 2000, p. 26. 60 Para Bosi, se pensarmos nos pilares do liberalismo europeu e nas ideias que ganharam força no começo do século XIX, e no liberalismo brasileiro inaugurado em 1808 e consolidado pela Constituição de 1824, podem ser identificados dois fundamentos correspondentes entre o modelo brasileiro e o europeu: a prática do livre-comércio internacional e a representação parlamentar. O liberalismo econômico da Inglaterra acabou com os seus concorrentes coloniais, de modo a apressar a libertação das colônias da Espanha e de Portugal. Já no Brasil, o liberalismo comercial adentrou no pós-1808 diretamente na economia agroexportadora, isto é, com os senhores de engenho e fazendeiros do café.174 O liberalismo político como conquista da Revolução Francesa foi relativizado pelo conservadorismo burguês na primeira metade do século XIX. Ele se revelava na adoção da prática da representação parlamentar, de modo a cercear o absolutismo dinástico. No Brasil, ele serviu à classe que fez a Independência e teve representantes da burguesia agrária e comercial das províncias. Um diferencial pode ser encontrado na premissa de que na Europa vigorava o trabalho assalariado e aqui o trabalho escravo herdado da economia colonial.175 Sobre isso, pontua Bosi: Assim sendo, a exploração do trabalho escravo não colidia com as práticas do liberalismo econômico, pois este precisava do braço negro para produzir e exportar, nem com as práticas do liberalismo político, pois este era manipulado pelos senhores de engenho e fazendeiros de café que necessitavam ter assento nas câmaras legislativas. Em outros termos: o liberalismo no Brasil não só não foi uma ideologia estranha, postiça ou deslocada, mas, pelo contrário, foi uma ideologia enraizada em nossa vida econômica e política, enquanto necessária à sua sobrevivência.176 Na visão de Bosi, o “transplante” da ideologia liberal de seu nascedouro, rumo aos países emergentes do pacto colonial, ocorreu em um período de crise da formação social receptora.177 E quando falamos da noção de “deslocamento” ou “descentramento” das ideias liberais, esse conceito pode ser compreendido a partir de seus vieses interno e externo, estando particularmente relacionado à noção de desenvolvimento. Isso quer dizer que a aplicação das ideias estrangeiras, para tal processo, ocasionou um descentramento 174 BOSI, Alfredo. Formações ideológicas na cultura brasileira. Estudos Avançados, v. 9, n. 25, p. 275-293, dez. 1995. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ea/a/wwDqYLCPWSbFkR9M5jsF64B/?lang=pt. Acesso em: 16 mar. 2022, p. 285-286. 175 Ibid., p. 285-287. 176 Ibid., p. 287. 177 BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 254. 61 que contribuiu para a reposição de aspectos considerados arcaicos.178 Nesse sentido, nas palavras de Alfredo Bosi: O que pesa e importa quando se pesquisa a vida colonial brasileira como tecido de valores e significados é justamente essa complexa aliança de um sistema agromercantil, voltado para a máquina econômica europeia, com uma condição doméstica tradicional, quando não francamente arcaica nos seus mores e nas suas políticas.179 O descentramento interno pode ser entendido no âmbito das relações sociais do país consoante as características culturais historicamente forjadas. Já o externo está atrelado ao desenvolvimento do capitalismo no Brasil. Esse deslocamento de ideias ganha evidência após a proclamação da Independência e a inserção do Brasil na ordem do capital, refletindo-se na imprensa, arquitetura e mesmo nos hábitos conformadores de nossa cultura.180 Essa construção ajuda a compreender a lógica por trás do conceito de Schwarz e a combater o argumento de uma suposta dualidade simplista, defendido por Carvalho Franco. Em outras palavras, tomando as considerações de Schwarz sobre a teoria da dependência e refletindo acerca da inevitabilidade da absorção de padrões e ideias impostos pela ascensão da nova ordem do capital, nota-se que não houve, dessa maneira, descentramento externo. E a reprodução dessas ideias era fatal à medida que dominava na época o comércio internacional, para o qual a economia brasileira estava voltada.181 Essa perspectiva fica bastante clara na seguinte fala de Schwarz: Partimos da observação comum, quase uma sensação, de que no Brasil as ideais estavam fora de centro, em relação ao seu uso europeu. E apresentamos uma explicação histórica para esse deslocamento, que envolvia as relações de produção e parasitismo no país, a nossa dependência econômica e seu par, a hegemonia intelectual da Europa, revolucionada pelo Capital.182 Relativamente às contribuições de Bosi, Schwarz, em Sequências Brasileiras (1999), traz um tópico específico denominado Discutindo com Alfredo Bosi. Tratando da 178 COSTA, Igor Nunes. A ideia de descentramento em Roberto Schwarz. 2012. 130 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) — Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2012. Disponível em: https://repositorio.ufes.br/handle/10/5832. Acesso em: 20 dez. 2020, p. 70. 179 BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 26. 180 COSTA, op. cit., p. 73 e 105. 181 SCHWARZ, Roberto [org.]. Ao vencedor as batatas. São Paulo: Duas Cidades, 2000 [1992], p. 13-14. 182 Ibid., p. 30. 62 visão de Bosi — que vai de encontro a Coutinho — de que os interesses da classe dominante funcionaram como uma espécie de filtro entre as “ideias” e os “lugares”, Schwarz diz que considerar esses interesses não inviabiliza o argumento das ideias fora do lugar. A presença desses interesses entre as ideias e o ambiente social não faz desaparecer o sentimento de desconforto que elas geram.183 Com relação a Bosi, na referida obra, Schwarz afirma que: No essencial, o seu ponto de vista é o seguinte: não cabe caracterizar o liberalismo no Brasil Império como farsa, disparate, “ideia fora do lugar” etc., pois a ideologia liberal era hegemônica no Ocidente [...]. Até onde vejo, para Bosi as ideias liberais no Brasil estão “no lugar” e não são uma farsa porque têm funcionalidade para a opressão. Ora, uma coisa não exclui a outra e é possível uma ideia ser funcional e grotesca ao mesmo tempo. Aliás o humor negro machadiano depende dessa combinação (por exemplo na extraordinária abertura de “Pai contra mãe”, que glosa a funcionalidade, para a ordem social escravista, de correias e coleiras de ferro, ou de máscaras de folha de flandres, que protegem os negros contra o vício da bebida).184 Ainda sobre seu diálogo com Bosi, Schwarz sublinha que o autor, ao exemplificar o conservadorismo dos proprietários defensores da escravidão, adequado a seus fins, involuntariamente sustenta o repertório das ideias fora do lugar, assim como quando descreve o Marquês de Olinda respondendo a uma consulta de D. Pedro II sobre a conveniência de se abolir o trabalho escravo.185 Carlos Nelson Coutinho, por sua vez, também traz a preocupação com o papel dos interesses das elites dominantes entre ideias e lugares. O autor investiga, em Cultura e sociedade no Brasil: ensaios sobre ideias e formas, a aliança entre os principais setores das classes dominantes, do velho ao novo e a ruptura entre nação e povo, recorrente na história do país.186 Ele também faz uma crítica ao conceito de Schwarz, trazendo pontos interessantes acerca da noção de adequação e inadequação entre ideias e lugares, que 183 RICUPERO, Bernardo. Da formação à forma: ainda as “idéias fora do lugar”. Lua Nova, São Paulo, n. 73, p. 59-69, 2008. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102- 64452008000100003&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 16 dez. 2020, p. 62. 184 SCHWARZ, Roberto. Martinha versus Lucrécia: ensaios e entrevistas. São Paulo, Companhia das Letras, 2012, p. 171-172. 185 Ibid., p. 172. 186 MASSUIA, Rafael da Rocha. Carlos Nelson Coutinho e o Processo de Desenvolvimento do Capitalismo no Brasil. Em Tese, Florianópolis, v. 16, n. 2, p. 30-45, jul./dez., 2019. Universidade Federal de Santa Catarina. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/emtese/article/view/1806- 5023.2019v16n2p30. Acesso em: 1 nov. 2021, p. 31. 63 passamos a analisar subsequentemente. Ambos elaboraram concepções originais acerca do processo de formação e desenvolvimento da sociedade brasileira.187 Coutinho fala da existência no Brasil de uma “reprodução ampliada”, relacionada à subordinação real do país, quando o modo de produção interno se tornou efetivamente capitalista sob o capital industrial ou financeiro internacional.188 Em outras palavras, a dependência para ele é convertida de subordinação formal para real quando o modo de produção interno se torna efetivamente capitalista, submetido não mais ou apenas ao capital mercantil ou comercial, mas também ao industrial ou financeiro internacional.189 Nessa esteira, ele vai de encontro com a noção presente em Schwarz de que no decorrer de sua reprodução social, o Brasil passou a pôr e repor ideias europeias.190 Como é colocado abaixo, ele afirma que Schwarz estava certo em seu diagnóstico do século XIX, mas que o “desconforto” descrito é algo que vai desaparecendo. Cabe-nos discordar, visto que esse desconforto é uma sensação ainda válida e refere-se a, como enunciado por Bosi, um descentramento externo. Coutinho defende que: Quanto mais passa a predominar a subordinação real, tanto mais vai desaparecendo aquele fenômeno que Roberto Schwarz, em sua lúcida análise da cultura brasileira do século 19, chamou de “ideias fora do lugar”. Segundo Schwarz, o mais claro exemplo dessa “inadequação” entre ideia europeia e realidade brasileira é a importação do liberalismo no século 19. O vínculo do modo de produção interno (ainda não capitalista) com o capital mundial, sobretudo na época imediatamente anterior e posterior à Independência, levou o bloco das classes dominantes no Brasil de então — formado pela junção da oligarquia latifundiária e escravocrata com os representantes internos do capital comercial — a adotar uma ideologia liberal burguesa.191 Da interpretação de Schwarz, Coutinho indica que há uma dialética paradoxal entre adequação e inadequação. Isso pois, segundo ele, é inegável que o liberalismo expressa interesses das camadas dominantes, que vão incluir o livre-cambismo no 187 MASSUIA, Rafael da Rocha. Crítica literária, marxismo e interpretação do Brasil: um estudo a partir dos pensamentos de Roberto Schwarz e Carlos Nelson Coutinho. 2017. 163 f. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) — Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Faculdade de Ciências e Letras (Campus Araraquara), São Paulo, 2017. Disponível em: https://repositorio.unesp.br/handle/11449/151142#:~:text=A%20fortuna%20cr%C3%ADtica%20de% 20Coutinho,abrem%20a%20partir%20de%20seus. Acesso em: 31 out. 2021. 188 COUTINHO. Carlos Nelson. Cultura e sociedade no Brasil: ensaios sobre ideias e formas. 4 ed. São Paulo: Expressão Popular, 2011, p. 41-42. 189 COUTINHO, loc. cit. 190 SCHWARZ, Roberto [org.]. Ao vencedor as batatas. São Paulo: Duas Cidades, 2000 [1992], p. 28-29. 191 COUTINHO, op. cit., p. 42-43. 64 comércio internacional, a garantia de igualdade jurídico-formal entre os membros das oligarquias rurais e comerciais etc. Em outro nível, isso também expressa os interesses dos homens livres não proprietários, que se viam assegurados pela ideologia liberal no que tange aos seus direitos formais de igualdade em relação aos senhores, e sua diferença com os escravos. De acordo com Coutinho, o fenômeno da escravidão, ou seja, da desigualdade estabelecida como natural, traz o trabalho sob a coerção extraeconômica e faz o liberalismo brasileiro revelar a sua faceta “inadequada” e “fora do lugar”.192 Porém, conforme argumenta-se nesse trabalho, defendemos que a escravidão por si só não era um diferencial, mas sim o tratamento jurídico conferido ao escravo, o pacto contra os escravos. Somado a isso, tem-se, como indicado por Schwarz, a peculiaridade do favor. Também se sustenta que o caráter abstrato e vago das ideias liberais, tal e qual foram absorvidas aqui, serviu de base e impulso para os acontecimentos que resultaram na Independência, unindo grupos de interesses diferentes, senão diametralmente opostos, para essa meta. Para Coutinho, o favor caracteriza o relacionamento entre os chamados homens “grandes” — de poder — e os homens “livres”, consagrando vínculos de dependência pessoal pré-capitalista e consequentemente um modo de relacionamento autoritário e antiliberal. E essa dialética de adequação e inadequação é então alterada com a passagem à subordinação real.193 Diz Coutinho que: [...] Com o início da industrialização, ou, mais precisamente, com a transição do modo de produção interno à fase propriamente capitalista [...] as ideias importadas vão cada vez mais “entrando em seu lugar”, tornando-se mais aderentes às realidades e aos interesses de classe que tentam expressar. E isso porque a estrutura de classes da sociedade brasileira vai se tornando essencialmente análoga àquela da sociedade capitalista em geral. Com isso, as contradições ideológicas que marcam a vida cultural brasileira do século 20 aproximam-se cada vez mais — ainda que sem jamais se igualarem inteiramente — às contradições ideológicas da cultura universal do período.194 192 COUTINHO. Carlos Nelson. Cultura e sociedade no Brasil: ensaios sobre ideias e formas. 4 ed. São Paulo: Expressão Popular, 2011, p. 42-43. 193 COUTINHO, loc. cit. 194 Ibid., p. 43-44. 65 No trecho acima, seguindo a linha de Bosi, vemos que Coutinho faz referência a um descentramento externo, o qual evidentemente tende a desaparecer considerando a adaptação contínua da ex-colônia à nova ordem do capital. Coutinho destaca que vivíamos um escravismo peculiar que, articulado no nível internacional com o capitalismo e suas exigências, era “capaz de ‘importar’ um certo tipo de cultura (e de instituições) próprias do capitalismo liberal; mas se tratava sempre, no plano interno, de um regime escravista”.195 Na visão do autor, o escravismo criou um grande vazio entre duas classes historicamente fundamentais na sociedade brasileira, os escravos e os latifundiários. E o favor, nesse sentido, foi gerado pela influência dos proprietários, de um lado, e a subordinação pessoal às classes dominantes, de outro.196 Na época do predomínio mercantil, o objetivo primordial do capital era a extorsão de valores de uso produzidos pelas economias não capitalistas, pelos povos colonizados, com o propósito de transformá-los em valores de troca no mercado internacional. Porém, no território brasileiro não havia uma formação econômico-social capaz de fornecer excedentes em relação ao processo de circulação do capital mercantil colonialista. Tinha- se, então, o questionamento sobre como articular o aparelho produtivo diretamente com o mercado mundial. Somado a essa problemática, o elemento escravista significava um traço dominante para a formação econômica, social e jurídica do país.197 Vemos assim que, de um lado, Schwarz, ao cuidar da relação dessas ideias com as suas aparências, refere-se à sua correspondência com a descrição da realidade local, o que não significa que ideias sem sentido (logicidade) possam existir e ser direcionadas a determinada função. De outro, Coutinho argumenta que o desencontro entre as ideias e o ambiente social tende a desaparecer quando o Brasil se torna efetivamente capitalista, com a Abolição e a industrialização. A partir de então a estrutura de classes da sociedade brasileira se tornaria, de certa forma, análoga à de outras sociedades capitalistas. Como consequência, as contradições ideológicas brasileiras se aproximariam das contradições ideológicas da cultura universal.198 Cabe-nos, porém, discordar, afinal, tal como indica a 195 COUTINHO, Carlos Nelson. Cultura e sociedade no Brasil: ensaios sobre ideias e formas. 4. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2011, p. 20. 196 Ibid., p. 21. 197 Ibid., p. 38-39. 198 RICUPERO, Bernardo. O lugar das ideias: Roberto Schwarz e seus críticos. Sociologia & Antropologia, Rio de Janeiro, v. 3, n. 6, p. 525-556, jul./dez. 2013. Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2238- 38752013000600525&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 16 dez. 2020, p. 530-531. 66 revisão de Viotti do período oitocentista, traços como a relação entre Igreja, maçonaria e ideias liberais foram de fato notavelmente diversas do contexto de outras ex-colônias. Bosi, em seu turno, tal como explica Ricupero, assimilou a análise de Schwarz sobre as tensões presentes no liberalismo brasileiro com o fim do Império, isto é, com o período de crise em que Machado de Assis produziu parte considerável de sua obra, também no qual setores da classe dominante se identificaram com a norma liberal moderna, procurando racionalizar o uso do trabalho escravo. Contudo, em sentido diverso, no decorrer do século XIX, a combinação entre escravidão e liberalismo fez sentido para os grandes proprietários rurais brasileiros. E na Independência, o liberalismo, diferentemente dos acontecimentos na Inglaterra e na França, não se identificou com os interesses de classe em conflito, mas com as reivindicações internas que se chocavam com os projetos recolonizadores da metrópole.199 No período oitocentista, os intelectuais brasileiros estavam muito atentos ao que se passava na Europa, em especial na Inglaterra e França. Observa-se que no âmbito do Conselho de Estado,200 por exemplo, as obras dos pensadores liberais e conservadores da época estavam presentes nos debates e eram continuamente citadas. Segundo José Murilo de Carvalho, esse uso assumia a forma de recurso retórico, argumento de autoridade, mas raramente se tratava de uma cópia acrítica, de maneira que a recepção do liberalismo e do positivismo era crítica e seletiva. E a produção que dela resultava poderia ser considerada, no máximo, pouco original, porém não disparate.201 199 RICUPERO, Bernardo. O lugar das ideias: Roberto Schwarz e seus críticos. Sociologia & Antropologia, Rio de Janeiro, v. 3, n. 6, p. 525-556, jul./dez. 2013. Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2238- 38752013000600525&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 16 dez. 2020, p. 531. 200 O Conselho de Estado foi instituição consultiva do governo, oficialmente criada após a Independência e confirmada pela Constituição de 1824. Tal como os antigos conselhos áulicos europeus, possuía membros vitalícios e sua estrutura político-administrativa sofreu influências do regime monárquico no velho continente. O primeiro Conselho teve sua atuação junto ao imperador Pedro I desde 1823, sendo extinto no conjunto das medidas de caráter liberal da reforma constitucional de 1834 e restabelecido em 1841. A sua atuação política excedia as suas atribuições e ele foi suprimido somente com o desaparecimento da Monarquia. Note-se que, no Brasil, o Conselho viria a assumir função arbitral reservada ao Estado conforme a cultura política do Antigo Regime, em outras palavras, tínhamos um modelo que se pretendia liberal, que adotou o princípio do equilíbrio entre os poderes, mas era assolado pelos entraves representados da tradição político-administrativa portuguesa. In: MARTINS, Maria Fernanda Vieira. A velha arte de governar: o Conselho de Estado no Brasil Imperial. Topoi (Rio J.), Rio de Janeiro, v. 7, n. 12, p. 178-221, jun. 2006. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2237- 101X2006000100178&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 30 dez. 2020, p. 179. 201 CARVALHO, José Murilo de. O papel e a complexidade do liberalismo no Brasil. Estudos Avançados, São Paulo, v. 26, n. 76, p. 391-394, dez. 2012. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103- 40142012000300033&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 30 dez. 2020, p. 393. 67 Este capítulo serviu para contextualizar o estado da arte em torno da discussão sobre o caráter peculiar do liberalismo no Brasil, justificando o evento da Independência como ponto essencial para compreender a absorção das ideias liberais no Brasil. A condição inevitável de colônia do Novo Mundo e as exigências do mercado internacional somaram-se aos interesses das elites, que tinham acesso à base teórica circundante. O “esbulho colonial” era visto como obstáculo para as classes interessadas, tal como demonstram Florestan e Viotti, e o escravo nesse contexto não era mais objeto político do cenário que se desenvolvia, sendo tratado pelo Direito como um ponto transitório e em vias de ser descartado para a nova lógica que se fundava. O liberalismo teve apoio da Igreja e não se associou às ideias nacionalistas, como na Europa, visto que não havia comunicação e condições de integração entre as províncias, ainda mais considerando a precariedade do mercado interno. As ideias liberais passaram, assim, a compor um conjunto vago que propiciou a união temporária de grupos com interesses díspares, porém, convergentes para a meta da Independência. Apesar dessa meta, como veremos, o pacto contra os escravos ganhava massa na superestrutura que se formava. E a destituição do sistema colonial ocorreu mantendo-se as estruturas patriarcais, de tal sorte que o favor, o clientelismo e o mandonismo também continuaram presentes. Vemos então que, tal como apresenta Viotti, o Estado autônomo foi constituído a partir de um ideário de fundo conservador, no qual a norma liberal vinha acompanhada de uma ideologia familista. A absorção dessas ideias se deu em resposta a quesitos econômicos, sociais e políticos condicionantes da associação livre, como demonstra Florestan, mas submetidas ao controle do mercado externo, fazendo-se valer os nexos de dependência. Tinha-se a sobreposição entre moderno e arcaico e a ilusão de que o estamento colonial seria facilmente eliminado; de como a utilização das ideias estrangeiras instrumentalizava o descentramento interno e auxiliava na reposição de aspectos arcaicos. Buscou-se tratar de como essas caraterísticas contribuíram exatamente para a sensação de desconforto e a noção de descentramento interno descritas por Schwarz, para o antagonismo entre a realidade revolucionária europeia e a brasileira, na qual essas ideias foram tomadas de maneira generalizada e passaram a integrar o debate entre metrópole e colônia, bem como aos ideais da Monarquia que se constituiu. Desse ponto de partida, passa-se então a analisar, no capítulo subsequente, as ideias liberais no contexto jurídico do período pelas lentes de seus principais corolários e traçando a sua relação com o pacto contra os escravos, tendo como fundamento o paradoxo liberalismo-escravidão. 68 2. ABSORÇÃO DAS IDEIAS LIBERAIS E NASCIMENTO DE UM DIREITO EXCLUDENTE: HEROÍSMO FRUSTRADO E A CONSOLIDAÇÃO DO PACTO CONTRA OS ESCRAVOS No alicerce teórico-político dos movimentos que conduziram à Independência brasileira, formou-se um liberalismo “revolucionário” — ou “heroico”, utilizando-se do termo de Viotti — que tinha certo viés contestatório e mesclava-se com ideias tradicionais, antevendo no liberalismo uma via para a liberdade e para a igualdade.202 O aparecimento do liberalismo no Brasil veio acompanhado da noção de que a Independência era a medida básica para se pensar a liberdade, conceito que foi ressignificado a partir desse evento e dos debates da Assembleia Nacional Legislativa e Constituinte de 1823, criada para elaborar a Carta da nova ordem constitucional. O enlace que se desenvolveu entre ideias liberais, Independência e monarquia constitucional traduziu-se na visão de que liberalismo e constitucionalismo eram sinônimos. As ideias liberais, antes de serem meramente transplantadas para a realidade jurídica brasileira, nela surgiram e foram apropriadas pelas elites econômicas e políticas, servindo para unir e aliciar os mais diversos setores sociais em uma grande utopia: as reivindicações próprias de cada um deles misturavam-se em uma ilusão momentânea, isto é, na promessa de libertação em face do governo português com a melhoria de condições para todos os envolvidos, que foi logo dissipada.203 O brusco desmanche no pós-Independência das ideias heroicas no país faz transparecer como o liberalismo foi visto e utilizado como mecanismo de garantia dos interesses das elites proprietárias e da criação de uma sociedade e de um Direito excludentes em sua base. O liberalismo foi recepcionado como sinônimo de constitucionalismo, confundindo-se liberalismo e Direito no encadeamento do processo de formação do Estado Brasileiro. Foi então realizado um pacto com amplos setores sociais para a garantia da Independência, o que implicava maior poderio — ou 202 SANTIN, Janaína Rigo; LORENZONI, André Luíz. Liberalismo e Poder na Formação dos Bacharéis em Direito e sua Atuação nas Instituições Políticas e Jurídicas do Brasil Imperial. Metis: História & Cultura, v. 12, n. 23, p. 49-64, jan./jun. 2013. Disponível em: https://redib.org/Record/oai_articulo1028971-liberalismo-e-poder-na-forma%C3%A7%C3%A3o-dos- bachar%C3%A9is-em-direito-e-sua-atua%C3%A7%C3%A3o-nas-institui%C3%A7%C3%B5es- pol%C3%ADticas-e-jur%C3%ADdicas-do-brasil-imperial. Acesso em: 2 abr. 2022. p. 50. 203 COSTA, Emília Viotti da. Da Monarquia à República: momentos decisivos. 6. ed. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1999, p. 136. 69 arbitrariedade — nas mãos do Imperador, mediante a salvaguarda dos interesses dos proprietários, que viam na escravidão a subsistência econômica do país. O pacto resultou na separação institucionalizada e legalmente protegida das elites brancas e dos homens pobres brancos de um lado, e dos escravos e ex-escravos de outro. Nesse último grupo, uma segunda cisão foi criada: os ex-escravos ou libertos também foram aliciados e essa é uma especificidade sui generis do Brasil. Ou seja, eles não foram colocados no patamar dos homens brancos, mas passaram a ter alguns direitos reconhecidos — como a cidadania — o que é algo muito distante da realidade de outros países (como o caso da experiência norte-americana, por exemplo). A estrutura criada operava para sustentar uma hierarquia social incentivadora da exclusão permanente e continuada dos escravos. Os libertos muitas vezes passavam a adquirir seus próprios escravos, o que pode ser explicado, dentre outros fatores, pelo temor de retorno à condição cativa. O poder enraizado na sociedade estamental que se colocava vinha da propriedade, em especial aquela sobre os escravos. Portanto, estar em domínio destes era sinal distintivo de poder e posição social. Diferentemente das expectativas do liberalismo heroico sobre o papel do Direito na proteção dos membros da nação recém-formada, alguns acontecimentos representaram uma mudança abrupta de rumos. A utopia do liberalismo como união e fundação de uma ordem jurídica pautada na liberdade e na igualdade foi quebrada, junto com a morte das promessas emancipatórias e de mobilidade social. Neste capítulo, buscamos explicar as causas dessa mudança, a partir de alguns marcos da formação de um Direito excludente, que representou o fim do liberalismo heroico ou revolucionário. Dentre eles, tivemos a dissolução da Assembleia Constituinte de 1823 — cujos efeitos foram consolidados pela subsequente instituição do Conselho de Estado e do Poder Moderador. Motivos específicos conduziram a esse cenário, que incluem as animosidades entre o Imperador e os grupos de tendência liberal mais radical, reforçadas pelos debates sobre o veto do monarca e a proposta de emancipação gradual dos escravos no Projeto de Constituição de Antônio Carlos de Andrada e Silva. A dissolução evidenciou as regras do jogo que passaram a imperar: um contexto no qual a política aproximava-se mais de uma guerra entre famílias da elite local, que privilegiava os grupos proprietários. No pós-Independência, foi desenvolvida uma autodenominação dos intelectuais e políticos da época para dizer quem eram ou não os liberais do Império. Os liberais “exaltados” ou “radicais” traziam as reminiscências do liberalismo heroico e bebiam nas 70 fontes teóricas das revoluções do Atlântico. Já os liberais “moderados” não adotavam essas ideias com a mesma veemência: pretendiam a fundação de uma nova ordem jurídica fazendo uso das ideias liberais, mas sem promover alterações mais profundas nas estruturas sociais existentes. Eles enxergavam o liberalismo como progresso, modernização e civilização, sem renunciar ao sistema escravista. Mas nem por isso o liberalismo brasileiro deixava de ser liberalismo, apesar de ter adquirido fatores distintivos: as bases teóricas do ideário liberal eram mobilizadas, agregando-se inclusive as contradições e paradoxos do liberalismo clássico — como a convivência com a escravidão —, em um processo de apropriação que foi sofisticado no Segundo Reinado. E daí é possível compreender o pacto contra os escravos, através da interpretação que foi disseminada sobre essas ideias: de que elas eram capazes de fundamentar um Estado independente, melhorando a situação política e social dos envolvidos, o que exigia a completa marginalização de um grupo, em prol dos demais, os escravos. Esse arcabouço também explica o desconforto gerado pela aparente dessintonia entre teoria e prática liberal, cujo exemplo concreto é a utilização da retórica para mobilização das massas. No caso dos discursos parlamentares (a partir de 1823), a constante presença da retórica liberal pode ser identificada como estratégia para desviar a atenção da pressão inglesa e popular sobre a escravidão. O liberalismo constituiu-se como fonte de subsídios às elites para que realizassem seus manejos. A absorção das ideias liberais não se sucedeu de maneira inacabada e o liberalismo brasileiro não é resultado da incapacidade das elites de gerir seu conteúdo. De modo diverso, suas especificidades refletem uma ação estratégica e planejada, ainda que para objetivos perversos. Pensando então em como o Direito vai assimilar essas ideias, produzindo e reproduzindo estruturas excludentes, o conceito de cidadania se apresenta como um parâmetro útil para entender essa lógica e o tratamento jurídico conferido ao grupo dos ex-escravos ou libertos. O desenvolvimento do conceito esteve presente nos debates da Assembleia Constituinte, de modo que a tentativa de projeção de um significado mais abrangente foi restringida pela Constituição de 1824, cujo texto final outorgado sequer faz menção aos escravos ou à escravidão, dispondo sobre os libertos ao falar dos cidadãos brasileiros (Art. 6º, I) e daqueles que não podiam ser eleitores e votar nas eleições de deputados, senadores, e membros dos Conselhos de Província (Art. 94, II), categoria que também abarcava os que não tivessem renda líquida anual de duzentos mil réis (Art. 94, 71 I) e os criminosos (Art. 94, III). No recorte deste trabalho, é relevante compreender quem eram os cidadãos para a ordem constitucional que se estabelecia. Nesse passo, cidadania e propriedade caminhavam conjuntamente, e o escravo tomado como coisa não era sequer considerado no espectro do conceito. Portugueses, estrangeiros em geral e os negros africanos não foram abarcados pela categoria de cidadãos. Sobre isso, foi priorizado o nascimento em solo brasileiro, o que pode ser observado posteriormente até mesmo pelo teor da Lei do Ventre Livre — Lei nº 2.040, de 28 de setembro de 1871 —, a qual determinava que “Os filhos de mulher escrava que nascerem no Imperio desde a data desta lei, serão considerados de condição livre” (Art. 1º, grifo nosso).204 A Constituição de 1824 também é um fenômeno à parte. Pelo próprio contexto do liberalismo heroico da Independência, evento que foi seguido pela instituição da nova ordem jurídica, o texto ficou amplamente conhecido em períodos posteriores como “Constituição liberal”, denominação comumente reproduzida pelo ensino jurídico tradicional no Brasil. Apesar de ter aproveitado parcialmente o projeto da Assembleia Constituinte, e consequentemente as ideias liberais que tornearam seus debates, a Carta dava amplos poderes ao Imperador, revelando um hibridismo entre ideias absolutistas e liberais. O autoritarismo da dissolução da Constituinte permaneceu no texto, em especial no que se refere ao Poder Moderador, que estava muito longe de ser aquele idealizado por Benjamin Constant. A barganha realizada entre os liberais moderados — para manter a escravidão — e o Imperador — para garantir suas expectativas pessoais — colaborou para a manutenção da herança colonial e para o amadurecimento de um liberalismo de caráter estamental. Criou-se um discurso legalista, que se utilizava do Direito — isto é, de retórica por trás da norma — para justificar a hierarquia social estabelecida. Para entender essa relação, é necessário ter em mente que as elites intelectuais ocupavam os cargos políticos e que o Direito ia se sedimentando e ganhando suas especificidades através da ação política. Isto para dizer que, tal como argumenta Alonso, as linhagens de explicação dos 204 BRASIL. Lei nº 2.040, de 28 de setembro de 1871. Declara de condição livre os filhos de mulher escrava que nascerem desde a data desta lei, libertos os escravos da Nação e outros, e providencia sobre a criação e tratamento daquelles filhos menores e sobre a libertação annaul de escravos. Rio de Janeiro: Princeza Imperial Regente. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/lim2040.htm#:~:text=Declara%20de%20condi%C3%A 7%C3%A3o%20livre%20os,de%20escravos. Acesso em: 15 fev. 2021. 72 movimentos oitocentistas que separam os campos intelectual e político, e que ignoram as autodefinições doutrinárias dos agentes, resultam em análises simplistas que acabam por menosprezar o fato de que essas esferas eram — e muitas vezes ainda o são no Brasil — preenchidas pelas mesmas pessoas. Assim, os autores de “obras filosóficas” praticaram atividade política contínua, e os “políticos” desenvolveram interpretações a partir de recursos doutrinários.205 Considerando que o Direito oitocentista não era dotado da especificidade e tecnicidade do Direito contemporâneo, a incongruência na separação entre o “intelectual” e o “político” se torna mais evidente. Por isso, optamos por tratar dessas duas frentes, procurando demonstrar que as ideias liberais eram estudadas e difundidas pelas elites intelectuais, ao mesmo tempo que eram articuladas na prática política para alimentar seus interesses. À vista disso, discorreremos sobre o liberalismo heroico e acerca do que a Constituinte e sua dissolução significaram para o Direito que se formava, delineando os caminhos que foram tomados pela nova ordem constitucional instituída, incluindo a consolidação do pacto contra os escravos. Depois disso, trataremos da corrente do liberalismo “doutrinário”, que serviu de substrato às elites para a defesa das ideias liberais, encerrando o capítulo com algumas conclusões preliminares, a partir de um balanço das mudanças sofridas pelo liberalismo no período. Com isso, procuramos o desenvolvimento de dois objetivos específicos neste capítulo: (i) a compreensão do processo que resultou no fim do liberalismo heroico; e (ii) as consequências disso para a composição de um Direito excludente, em especial no que se refere à institucionalização do pacto contra os escravos. 2.1 O LIBERALISMO “HEROICO” DA INDEPENDÊNCIA A retórica liberal atraiu nos movimentos revolucionários de uma primeira fase, além dos setores das elites, grupos como escravos que almejavam a liberdade, a população livre em condições de vida miserável nos núcleos urbanos e comerciantes voltados à extinção dos privilégios instituídos pela situação colonial. Porém, desde as primeiras conspirações em prol da Independência, as discrepâncias de propósitos já se faziam 205 ALONSO, Angela. Crítica e contestação: o movimento reformista da geração 1870. Revista Brasileira de Ciências Sociais [online], v. 15, n. 44, p. 35-55, out. 2000. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbcsoc/a/xCb8knmRgSqgmCLxKYG7qzq/abstract/?lang=pt#ModalArticles. Acesso em: 10 mar. 2022, p. 39. 73 presentes, tendo com um dos exemplos mais claros as aspirações de liberdade, que se chocaram com a indiferença e hostilidade das elites.206 Não se pretende, contudo, defender um posicionamento de que a Independência se deu pela ação única ou pelas “mãos” das elites, tanto que é exatamente sublinhada a participação de peso de outros setores sociais, sem os quais a emancipação não teria sido possível no contexto. O que se busca, em sentido diverso, é demonstrar a peculiaridade do liberalismo que se forma, bem como revelar que suas contradições internas não foram resultado de ingenuidade das elites, e fizeram valer seus interesses, apesar dos percalços, interesses nos quais se incluía o pacto contra os escravos. Afinal, tal como fica evidente a partir do liberalismo doutrinário e da veiculação de informações por diversos jornais no país, para a população letrada, o liberalismo foi absorvido em um nível ideológico pelas elites brasileiras, que captaram o seu potencial retórico e instrumental de controle. O processo de Independência teve papel expressivo na recepção do liberalismo no Brasil, bem como na incorporação do pensamento moderno. Nesse lapso temporal, as ideias liberais se entrelaçaram com a ideia de emancipação. Um ponto interessante a ser observado, que pode ser apreendido em mais detalhes nos debates da Constituinte, é o sentimento “nacionalista”207 — no sentido de defesa do Brasil em relação ao governo português — que uniu os mencionados setores, e que contrapunha a polarização entre metrópole e colônia. Como resultado, tinha-se uma oposição que subdividia os seus defensores em algo que se assemelhava a um “partido português” frente a um “partido brasileiro”. Apesar da existência de contraposições internas, depois da Independência é que se intensificaram os conflitos entre os liberais brasileiros, ao exemplo dos embates entre José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838) e Joaquim Gonçalves Ledo (1781- 1847). Evidentemente, nesse momento ainda não estavam desenvolvidos os partidos políticos brasileiros,208 mas as divergências de acepções e interesses foram ignoradas em um primeiro momento para a meta de “libertação” do Brasil frente ao governo português. 206 COSTA, Emília Viotti da. Da Monarquia à República: momentos decisivos. 6. ed. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1999, p. 138. 207 Ressalta-se, contudo, que a palavra “nacionalismo” não era utilizada na década de 1820, apenas “nação” e “nacional”. In: RIBEIRO, Gladys Sabina. O desejo da liberdade e a participação de homens livres pobres e “de cor” na Independência do Brasil. Cadernos CEDES [online], v. 22, n. 58, p. 21-45, dez. 2002. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ccedes/a/bxjjzk7MbDH5RBXbFgnwZqm/abstract/?lang=pt#. Acesso em: 20 fev. 2022, p. 28. 208 O Partido Liberal foi criado em 1831 e o Partido Conservador, que compunha a sua oposição, foi registrado em 1837. 74 Essa dicotomia contribuiu para uma apropriação conceitual, por parte dos defensores das ideias liberais — em especial, das tendências conservadoras —, do termo “escravidão”. Para esclarecer, o termo passou a ser corriqueiramente utilizado com o intuito de caracterizar o relacionamento entre o governo português e a metrópole, ou fazer menção a ações colonizadoras ou recolonizadoras, analogia que pode ter contribuído para atrair mais segmentos sociais interessados na liberdade dos escravos. Considerando que a emancipação política do país teve como um de seus aspectos motivadores o fato de que a superestrutura do Brasil-Colônia já não correspondia ao estado das forças produtivas e à infraestrutura econômica do país, assim como afirma Caio Prado Jr., a revolução da Independência foi o termo do processo de diferenciação dos interesses nacionais ligados ao desenvolvimento econômico brasileiro, distintos da metrópole e, portanto, contrários a ela.209 No que tange a esse conflito de ideais no cerne das elites, tal como elucida Celso Rodrigues,210 algumas perspectivas consideram que as elites brasileiras da época atuavam como um bloco monolítico, de maneira unívoca, ao exemplo de Oliveira Viana.211 Há também posições intermediárias — como a de Raymundo Faoro em Os donos do Poder212 — que consideram a Independência como fruto da aliança entre comerciantes portugueses, burocratas reinóis e latifundiários — em especial, aqueles de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro. No caso de Faoro, o autor destaca que a opção monárquica se demonstrava como adequada à manutenção da unidade territorial e estabilidade política.213 Segundo Faoro: A hostilidade ao Rio de Janeiro aproximava-os, por um imperativo liberal que os fazia ver na corte, o Rio corte e não o Rio província, o ninho de burocratas e parasitas trazidos pela transmigração, hostilidade com raízes nos humilhados clérigos e fazendeiros e dos funcionários de segunda linha. A obra da Constituinte aniquilaria, ao seu ver, a arrogância dos burocratas, nobres e plebeus, que, vestidos dos hábitos absolutistas, desprezavam e oprimiam as províncias, o nome brasileiro, a opinião nativa. No Brasil, os sucessos corriam com mais velocidade: o príncipe perde, assediado pelas forças locais, o caráter português, absolutista. [...] Os comerciantes, na facção independente — 209 PRADO JÚNIOR, Caio. Evolução política do Brasil e outros estudos. São Paulo: Brasiliense, 1996, p. 44-45. 210 RODRIGUES, Celso. Assembleia Constituinte de 1823: ideias políticas na fundação do Império brasileiro. Curitiba: Juruá, 2008, p. 24. 211 VIANNA, Oliveira. Evolução do povo brasileiro. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1956, p. 248- 249. 212 FAORO, Raymundo. Os donos do Poder: formação do patronato político brasileiro. 3 ed. São Paulo: Globo, 2001, p. 324. 213 RODRIGUES, op. cit., p. 28. 75 portugueses e estrangeiros — percebem que a anarquia se avizinha. Os burocratas reinóis, arrancados de seus empregos com a extinção dos tribunais, engrossam a onda emancipadora.214 De outro lado, a posição de José Honório Rodrigues, que possui mais aderência ao direcionamento aqui adotado, além de reforçar a dicotomia entre brasileiros e portugueses, traz uma diferenciação de posicionamentos. O autor exemplifica essa relação enaltecendo que o periódico dos irmãos Andradas (O Tamoyo) teve como propósito servir à causa brasileira, acusando os portugueses dos males feitos ao ideal da Independência. Ele ressalta que a Assembleia Geral Constituinte (1823) representou forte expressão do nacionalismo liberal brasileiro.215 Rodrigues também sustenta que predominavam três grupos políticos distintos: os portugueses “nativos”, que procuravam evitar a emancipação, mantendo o monopólio oficial e os privilégios a ele inerentes; o de José Bonifácio, representando os interesses da aristocracia rural e da burocracia; e o grupo de Ledo, maçônico liberal, também de caráter burocrático, mas dotado de reformismo, ao menos de início.216 Na “facção brasileira”,217 firmou-se uma disputa de poder entre liberais radicais e moderados, que ganhou força no contexto pós-independência. Na oposição, foi constituída uma espécie de tradicionalismo, contra o liberalismo radical, embasada em ideias empiristas.218 Dentre os moderados, além de José Bonifácio — que posteriormente assumiria ideias de tendência mais radical —, tinha-se Evaristo da Veiga (redator do jornal Aurora Fluminense) e Bernardo Pereira Vasconcelos (do jornal O Universal, em Ouro Preto). No grupo dos exaltados destacavam-se Antônio Borges da Fonseca (jornal Abelha Pernambucana), Francisco de Chagas Oliveira França (Tribuna do Povo) e Luís Augusto May (Malagueta). Tendências mais radicais podem ser atribuídas a Gonçalves 214 FAORO, Raymundo. Os donos do Poder: formação do patronato político brasileiro. 3 ed. São Paulo: Globo, 2001, p. 324. 215 RODRIGUES, José Honório. A Assembleia Constituinte de 1823. Petrópolis: Editora Vozes, 1974, p. 202-203. 216 RODRIGUES, José Honório. Independência: revolução e contra-revolução. 5 volumes. São Paulo: Francisco Alves, 1976, v. 4, p. 118. 217 Há outras posições, como a de Vasconcelos, que assume a existência de um “Partido Republicano”, além do “Partido Brasileiro” e do “Partido Português”. Para o autor, os republicanos eram exaltados no seu liberalismo e opunham-se à forma monárquica. In: VASCONCELOS, Diego de Paiva. O Liberalismo na Constituição Brasileira de 1824. 2008. 83 f. Dissertação (Mestrado em Direito Constitucional) — Universidade de Fortaleza (UNIFOR), Fortaleza, 2008. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/teste/arqs/cp049092.pdf. Acesso em: 10 dez. 2021, p. 60. 218 MACEDO, Ubiratan Borges de. A idéia de liberdade no século XIX: o caso brasileiro. Rio de Janeiro: Editora Expressão e Cultura, 1997, p. 38-39. 76 Ledo e sua inclinação democrática, bem como a José Clemente Pereira, a quem foram atreladas ideias republicanas. Esses dois últimos foram acusados, em outubro de 1822, junto com João Soares Lisboa, de planejar uma conspiração para mudar a forma de governo — sofrendo severas críticas por parte de Bonifácio. Ambos apresentavam tendência democrática e defendiam a soberania da Assembleia Constituinte. Os dois foram absolvidos e João Soares foi desterrado.219 Basicamente, as elites brasileiras, instruídas no estrangeiro, mormente na Universidade de Coimbra, estudavam e disseminavam a doutrina liberal, recorrendo a periódicos que alavancavam a circulação de informações nesse sentido. De início, apresentavam ideais de um “empirismo mitigado” — utilizando-se de pensadores como o filósofo português Luís António Verney (1713-1792), o filósofo italiano Antônio Genovesi (1713-1769) e do francês Étienne Bonnot de Condillac (1714-1780) —, projetando certa visão grosseiramente empirista que era, na verdade, um praxismo focado em resultados. Essas ideias mostraram-se presentes no pensamento de José Bonifácio e Frei Caneca (1779-1825).220 No caso de Frei Caneca e Cipriano Barata (1762-1838), eles são enquadrados pela historiografia tradicional ora como liberais, ora como republicanos, visto que por vezes o republicanismo acabava se misturando com as tendências liberais radicais no Brasil. Relativamente à Caneca, trata-se de figura emblemática, que não se afirmava categoricamente como um republicano e em algumas situações tratou a monarquia constitucional como um bom governo, defendendo o Príncipe Regente — como ocorreu no ano de 1822.221 Caneca participou da Revolução Pernambucana de 1817 e apresentou-se como figura central na Confederação do Equador (1824), que se organizou como revolução constitucionalista. O pensamento de Caneca, nesse tempo, era marcado pelo federalismo e influenciado pela experiência norte-americana.222 Para Caneca, a presença 219 LEITE, Renato Lopes. Republicanos e Libertários: pensadores radicais da Independência — Rio de Janeiro (1822). 1997. 468 f. Tese (Doutorado em História) — Universidade Federal do Paraná (UFPR), Curitiba, 1997. Disponível em: https://www.acervodigital.ufpr.br/bitstream/handle/1884/27029/T%20- %20LEITE,%20RENATO%20LOPES.pdf?sequence=1. Acesso em: 10 fev. 2022, p. 11. 220 MACEDO, Ubiratan Borges de. A idéia de liberdade no século XIX: o caso brasileiro. Rio de Janeiro: Editora Expressão e Cultura, 1997, p. 40-41. 221 LEITE, op. cit., p. 45. 222 LIMA, Kelly Cristina Azevedo de. Frei Caneca: Entre a liberdade dos antigos e a igualdade dos modernos. CAOS — Revista Eletrônica de Ciências Sociais, n. 12, p. 126-196, set. 2008. Disponível em: https://periodicos.ufpb.br/index.php/caos/article/view/46927/28215. Acesso em: 22 fev. 2022, p. 149. 77 metropolitana das Cortes no Brasil simbolizava a dependência do Brasil em relação a Portugal tanto em um viés econômico, quanto cultural. No caso da Confederação, ela adotou o regime republicano, utilizando-se inclusive de projeto de Constituição — escrito por Manoel de Carvalho Paes de Andrade (1774-1855), eleito provisoriamente presidente da Província de Pernambuco —, demonstrando-se como contraposição à arbitrariedade do Imperador, tendo como elemento de tensão a dissolução da Constituinte, iniciando-se em Pernambuco e espalhando-se pelo Nordeste brasileiro.223 Com o movimento constitucionalista, Cipriano Barata — que estivera na Conjuração Baiana de 1798 —, também inclinado às reformas políticas, propôs ainda nos debates das Cortes de Lisboa, o alargamento da noção de cidadania, inclusive para os escravos, a partir de seus direitos de cidadão e de voto. Identificava a nação como corpo de cidadãos da ordem política e, ao lado de Caneca, destacou-se nos esforços para a realização de transformações nos direitos políticos entre 1821 e 1823.224 O fato é que esse conjunto de ideias que se amontoaram em torno da Independência serviram de base para os argumentos contra o Antigo Regime no país, mas não tiveram prevalência no Segundo Reinado, com poucas exceções, ao exemplo de Silvestre Pinheiro Ferreira. No período, foram consumidos intensamente autores radicais como Claude-Adrien Helvétius (1715-1771), Pierre-Jean-Georges Cabanis (1757-1808) e Destutt de Tracy (1754-1836), além dos clássicos como Voltaire, Rousseau, Montesquieu, e constitucionalistas moderados, como o próprio Silvestre Pinheiro Ferreira.225 Dos expoentes liberais da Independência e que intervieram nos acontecimentos políticos que se sucederam em seguida, é válido sublinhar a atuação de José Bonifácio e Gonçalves Ledo, além de José Clemente Pereira (1787-1854) — que se tornou presidente 223 ALARCÃO, Janine Pereira de Souza. O saber e o fazer: República, Federalismo e Separatismo na Confederação do Equador. 2006. 109 f. Dissertação (Mestrado em História) — Instituto de Ciências Humanas, Departamento de História, Universidade de Brasília, Brasília, 2006. Disponível em: https://repositorio.unb.br/bitstream/10482/2509/1/Dissertacao_Janine_Alarcao.pdf. Acesso em: 22 fev. 2022, p. 25. 224 PRADO FILHO, Enock Edson Teixeira do; SOUSA, Maria Aparecida Silva de. Nação e Liberalismo nos escritos de Cipriano Barata (1821-1823). Anais do IX Colóquio do Museu Pedagógico. 5 a 7 de outubro de 2021, p 1917-1929. Disponível em: http://anais.uesb.br/index.php/cmp/article/viewFile/2648/2315. Acesso em: 22 fev. 2022, p. 1926-1927. 225 MACEDO, Ubiratan Borges de. A idéia de liberdade no século XIX: o caso brasileiro. Rio de Janeiro: Editora Expressão e Cultura, 1997, p. 40-41. 78 do Senado da Câmara do Rio de Janeiro. Eles argumentaram para o convencimento de D. Pedro I à causa, ainda que houvesse certa rivalidade entre Bonifácio e os demais.226 Com o advento dos decretos recolonizadores de 1821,227 foram criadas juntas provisórias nas Províncias e extinguiram-se diversos tribunais no Rio de Janeiro. Somado a isso, a ordenação do retorno do príncipe regente a Portugal gerou impactos nos grupos políticos brasileiros. As medidas tiveram como consequência a reunião de comerciantes, burocratas e profissionais liberais e a emergência de importantes lideranças políticas, como as de José Clemente Pereira e Joaquim Gonçalves Ledo, através do Senado da Câmara do Rio de Janeiro, que deram encaminhamento a reivindicações favoráveis à permanência do Príncipe Regente no Brasil.228 Porém, já naquele ano, vinham à tona as confusões geradas pela retórica liberal. Em Ouro Preto, número considerável de escravos reuniu-se para celebrar a liberdade, ouvindo notícias da iminência de outorga do texto constitucional. Logo se dariam conta da comemoração prematura. Com poucas exceções, a elite brasileira não estava inclinada à causa da abolição, ignorando as contradições conceituais entre liberalismo e escravidão.229 Assim como explana Viotti sobre a sequência de eventos relacionados à Constituinte: Alguns chegaram até a sugerir que a Constituição incluísse um parágrafo declarando que o “contrato” entre senhores e escravos seria respeitado! Os que participaram da elaboração da Constituição preferiram, no entanto, uma outra ficção: silenciar sobre a escravidão. A Carta constitucional outorgada pelo imperador em 1824 não mencionava sequer a existência de escravos no país.230 226 COSTA, Emília Viotti da. Da Monarquia à República: momentos decisivos. 6. ed. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1999, p. 138. 227 Os decretos marcaram um período de profundo descontentamento no Brasil, intensificando a agitação em torno de uma nova ordem constitucional pretendida. Dentre eles, o Decreto de 10 de março procurava dar as bases da “Constituição Política da Monarquia Portuguesa” e o Decreto de 24 de abril declarava legítimos os governos estabelecidos, ou que se estabelecessem, nos Estados Portugueses de “ultramar”. In: BRASIL. Decreto de 10 de março de 1821. Dá as Bases da Constituição Politica da Monarchia Portugueza. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Atos/dim/1821/DIM-10- 3-1821.html. Acesso em: 21 fev. 2022; e BRASIL. Decreto de 24 de abril de 1821. Declara legítimos os Governos estabelecidos, ou que se estabelecerem nos Estados Portuguezes de Ultramar, para abraçarem a causa da regeneração política. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Atos/dim/1821/DIM-24-4- 1821.htm#:~:text=DIM%2D24%2D4%2D1821&text=Declara%20leg%C3%ADtimos%20os%20Gov ernos%20estabelecidos,Jo%C3%A3o%20VI. Acesso em: 21 fev. 2022. 228 RODRIGUES, Celso. Assembleia Constituinte de 1823: ideias políticas na fundação do Império brasileiro. Curitiba: Juruá, 2008, p. 55. 229 COSTA, op. cit., p. 137. 230 COSTA, loc. cit. 79 O periódico Reverbero Constitucional Fluminense, que teve como redatores Gonçalves Ledo e Januário da Cunha Barbosa (1780-1846) trazia, em sua edição de abril de 1822, comentários sobre medidas das Cortes de Lisboa em relação ao Brasil, relacionando o liberalismo à justiça e ao fim de arbitrariedades, bem como à procura da igualdade constitucional.231 O denominado Manifesto dirigido ao povo brasileiro, de 1º de agosto de 1822, cuja redação é atribuída a Gonçalves Ledo, considerado liberal autêntico por seus contemporâneos, demonstrava as expectativas das elites brasileiras versus as limitações do seu liberalismo. O texto acusava as Cortes portuguesas de tentarem restabelecer o monopólio português sobre o Brasil, mediante o fechamento dos portos brasileiros aos estrangeiros, assim como a pretensão de libertarem os escravos, armando-os contra os senhores, insinuação de grande efeito dentre proprietários de terras e escravos. Também atribuía às Cortes o intento de destruir a agricultura e as indústrias brasileiras, bem como de reduzir os habitantes do Brasil a “pupilos e colonos”. Interessante observar que o manifesto trazia um programa liberal, que prometia uma legislação adequada às circunstâncias locais.232 Leia-se o trecho abaixo: Desarmava vossas Fortalezas, despia vossos Arsenaes, deixava indefesos vossos Portos, chamando aos de Portugal toda a vossa Marinha; esgotava vossos Thesouros com saqus repetidos para despeza de tropas, que vinham sem pedimento vosso, para verterem o vosso sangue, e destruir-vos, ao mesmo tempo que vos prohibia a introducção de armas, e munições estrangeiras, com que pudesseis armar vossos braços vingadores, e sustentar a vossa Liberdade; Apresentou um projecto de relações commerciaes, que, sob falsas apparencias de chimerica reciprocidade, e igualdade, monopolisava vossas riquezas, fechava vossos portos aos Estrangeiros, e assim destruia a vossa Agricultura, e Industria, e reduzia os Habitantes do Brazil outra vez ao estado de pupillos, e colonos. Tratou desde o principio, e trata ainda com indigno aviltamento, e desprezo os Representantes do Brazil, quando têm a coragem de punir pelos seus direitos, e até (quem ousará dizel-o) vos ameaça com libertar a escravatura, e armar seus braços contra seus proprios Senhores. [...] Dar-vos-hão um Codigo de Leis adequadas á natureza das vossas circumstancias locaes, da vossa povoação, interesses, e relações, cuja execução será confiada a Juizes integros, que vos administrem justiça gratuita, e façam desapparecer todas as trapaças do vosso fôro, fundadas 231 NEVES, Lucia Maria Bastos Pereira das. Nas margens do liberalismo: voto, cidadania e constituição no Brasil (1821-1824). Revista de História das Ideias, v. 37, p. 55-77, 2019. Disponível em: https://impactum-journals.uc.pt/rhi/article/view/2183-8925_37_3. Acesso em: 26 fev. 2022, p. 56. 232 COSTA, Emília Viotti da. Da Monarquia à República: momentos decisivos. 6. ed. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1999, p. 138. 80 em antigas leis obscuras, ineptas, complicadas, e contracditorias. Elles vos darão um Codigo penal dictado pela razão, e humanidade, em vez dessas leis sanguinosas, e absurdas, de que até agora fostes víctimas cruentas. Tereis um systema de impostos, que respeite os suores da Agricultura, os trabalhos da Industria, os perigos da Navegação, e a liberdade do Commercio: um systema claro, e harmonioso, que facilite o emprego e circulação dos cabedaes, e arranque as cem chaves mysteriosas, que fechavam o escuro labyrintho das finanças, que não deixavam ao cidadão lobrigar o rastro do emprego, que se dava ás rendas da Nação.233 O excerto acima ilustra não apenas o antagonismo entre colônia e metrópole, mas também a discussão sobre a adequabilidade de ideais. O liberalismo era difundido, sob a égide das revoluções liberais, como ideário apropriado para as nações emancipadas e como uma espécie de embasamento que propunha trazer mecanismos capazes de alcançar esse objetivo, a Independência. Absorvido pelas elites, passou a ser utilizado em sua generalidade como potencial fórmula para o sucesso. Dentre outras ideias, o manifesto clarificava a noção de que o restabelecimento do sistema colonial era incompatível com o liberalismo. Contudo, tornava evidente que a principal preocupação era contrapor o conceito ao Antigo Regime, abrangendo nessa categoria a situação de colônia. Já o manifesto de 6 de agosto de 1822, Sobre as relações politicas e commerciaes com os governos, e nações amigas, redigido pelo liberal moderado e membro da elite coimbrã José Bonifácio, procurava explanar que a consolidação da liberdade brasileira era um processo que pretendia afastar uma nova classe de tiranos, que integravam as Cortes.234 [...] O vão e ridículo nome da Província de Portugal; e o peio é, os males da guerra civil e da anarquia em que hoje se acha submergida pôr culpa do seu primeiro Governo, vendido aos Demagogos Lisbonense, e de alguns outros homens deslumbrados com idéias anárquicas e republicanas. Porventura ser a Bahia Provincia do pobre e acanhado Reino de Portugal, quando assim pudesse conservar-se, era mais do que ser uma das primeiras do vasto e grandioso Império do Brazil? Mas eram outras as vistas do Congresso. O Brazil não devia mais ser Reino; devia descer do throno da sua cathegoria; despojar-se do manto Real de Sua Magestade; depôr a Corôa e o Sceptro, e retroceder na Ordem 233 BRASIL. Proclamação de 1º de agosto de 1822. Esclarece os Povos do Brazil das causas da guerra travada contra o Governo de Portugal. Coleção de Leis do Império do Brasil — 1/8/1822, v. 1, p. 125 (Publicação Original). Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/procla_sn/anterioresa1824/proclamacao-41282-1-agosto-1822- 575736-publicacaooriginal-99010-pe.html. Acesso em: 07 jan. 2022. 234 NEVES, Lucia Maria Bastos Pereira das. Nas margens do liberalismo: voto, cidadania e constituição no Brasil (1821-1824). Revista de História das Ideias, v. 37, p. 55-77, 2019. Disponível em: https://impactum-journals.uc.pt/rhi/article/view/2183-8925_37_3. Acesso em: 26 fev. 2022, p. 60. 81 política do Universo, para receber novos ferros, e humilhar-se como escravo perante Portugal.235 O conhecido episódio do “Fico”, como um ensaio da Independência, teve impacto nessa lógica, de modo que José Bonifácio de Andrada e Silva foi interiorizado no governo, a partir da reforma ministerial realizada por D. Pedro I. As subsequentes trocas de ministros demonstram a viragem política que estava sendo executada pelo Príncipe Regente. Outro relevante passo foi a criação, em fevereiro de 1822, através de decreto, do Conselho de Procuradores Gerais das Províncias do Brasil, que teve o viés de contribuir para a constituição da unidade política do país. Apesar de dotado de elemento representativo, o Conselho de Procuradores remetia, em suas atribuições, ao Conselho de Estado da dinastia de Bragança e sua tradição monárquica. O Conselho de Procuradores teve como presidente José Clemente Pereira e participaram de sua primeira reunião, dentre outros, Joaquim Gonçalves Ledo e José Bonifácio.236 José Clemente encaminhou petição a D. Pedro para que aceitasse o título de “Defensor Perpétuo” do Brasil, que proferiu sua concordância. O fato é que o caminho da Monarquia estava sendo sedimentado e a convocação da Assembleia Constituinte representou o início de um processo de ruptura nas principais lideranças protagonistas da Independência, mormente Bonifácio e Gonçalves Ledo.237 Gonçalves Ledo, José Clemente e Luiz Pereira Nóbrega defenderam posturas mais democráticas nos episódios de 1822, ao passo que Bonifácio os considerava excessivamente democráticos. No cerne do conflito encontrava-se a soberania política. Ledo pretendia a submissão da autoridade monárquica à nação, o que coincidia com a sua interpretação do liberalismo. Ledo propôs, inclusive, a eleição direta dos deputados, proposta que foi recusada nas reuniões de junho de 1822 do Conselho dos Procuradores. Já para Bonifácio, a partilha da soberania tinha o condão de ameaçar a integridade do Estado. O seu liberalismo voltava-se para o Estado, e não para a sociedade, de modo que concebia aquele como o centro de gravitação dos interesses sociais. Trazia um liberalismo 235 BRASIL. Manifesto de 6 de agosto de 1822. Sobre as relações politicas e commerciaes com os governos, e nações amigas. Coleção de Leis do Império do Brasil — 6/8/1822, v. 1, p. 132 (Publicação Original). Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/manife_sn/anterioresa1824/manifestosemnumero-41437-6- agosto-1822-576171-publicacaooriginal-99440-pe.html. Acesso em: 07 jan. 2022. 236 RODRIGUES, Celso. Assembleia Constituinte de 1823: ideias políticas na fundação do Império brasileiro. Curitiba: Juruá, 2008, p. 55-56. 237 Ibid., p. 55-56. 82 eivado de pragmatismo, no qual a liberdade não podia sacrificar o primado da ordem.238 Tal como ressalta Celso Rodrigues: Além da corrente representada por José Bonifácio, o processo de independência contou, ainda, com a presença de outras tendências. O grupo organizado em torno de Joaquim Gonçalves Ledo e do Senado da Câmara do Rio de Janeiro refletia, em seu ideário, um liberalismo mais radical. Quando Ledo apresentou proposta no sentido de introduzir o voto direto nas eleições constituintes e, logo em seguida, o juramento prévio à Carta Magna que seria elaborada, ficou evidente a posição de seu grupo: impor a soberania da nação ao futuro imperante. José Bonifácio manobrou no sentido de excluir tal possibilidade, consoante sua visão política: um pacto constitucional no qual as prerrogativas monárquicas estariam acima da nação e imunes à instabilidade intrínseca dos conflitos ideológicos e doutrinários.239 Relativamente à Assembleia Constituinte, os Andradas, especialmente José Bonifácio, tiveram relevância nas discussões que se travaram. Inobstante, Bonifácio era politicamente conservador e socialmente progressista. Na segunda seara, defendia a reforma agrária, a abolição gradual da escravidão e a incorporação dos indígenas. Apresentava, contudo, posicionamentos flutuantes, que variavam a depender da desenvoltura dos fatos.240 Nos eventos da Constituinte, o sentimento republicano não logrou sucesso, restringindo-se a alguns focos provinciais.241 A Constituição outorgada, por sua vez, trazia feições absolutistas, instituindo o Poder Moderador e retificando a criação do Conselho de Estado. Com a dissolução da Constituinte, foram presos os irmãos Andradas — Antônio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e Silva, Martim Francisco Ribeiro de Andrada e José Bonifácio. A questão é que as ideias de viés mais “radical” para a época — como a libertação dos escravos, as inclinações democráticas, a separação dos poderes, a conferência de maior autonomia às Províncias e o próprio republicanismo — foram suprimidas após a Independência, o que se tornaria evidente com a dissolução da Constituinte. Nos debates desta, apesar de se colocarem em colisão posições diversas quanto ao liberalismo adotado, 238 RODRIGUES, Celso. Assembleia Constituinte de 1823: ideias políticas na fundação do Império brasileiro. Curitiba: Juruá, 2008, p. 57-60. 239 Ibid., p. 61. 240 RODRIGUES, José Honório. Independência: revolução e contra-revolução. 5 volumes. São Paulo: Francisco Alves, 1976, v. 4, p. 264. 241 RODRIGUES, Celso. Assembleia Constituinte de 1823: ideias políticas na fundação do Império brasileiro. Curitiba: Juruá, 2008, p. 62. 83 predominavam as feições conservadoras. Ainda assim, os posicionamentos mais incisivos foram postos a termo com a dissolução, acabando-se com a utopia criada em 1822. 2.2 SIGNIFICADOS POR TRÁS DA ASSEMBLEIA GERAL CONSTITUINTE DE 1823 E SUA DISSOLUÇÃO Com a proclamação da Independência, segundo Viotti, adveio o fim da fase heroica do liberalismo. As elites alcançaram os objetivos de libertar a colônia da metrópole e assegurar para si o controle da nação.242 Em maio de 1822, membros da elite de tendências mais radicais — em particular, brasiliense, liderada por Gonçalves Ledo, José Clemente Pereira e Januário da Cunha Barbosa — encaminharam uma representação a D. Pedro pugnando pela convocação de uma Assembleia Geral das províncias do Brasil.243 A Constituinte foi convocada em 3 de junho de 1822, instaurando-se em 3 de maio de 1823, no Rio de Janeiro. Em abril de 1823, foi nomeada uma comissão para elaborar um regimento provisório aos trabalhos da Assembleia. Já nesse momento, para a decisão sobre o juramento a ser realizado pelos deputados, a amplitude dos poderes do monarca e do Legislativo era discutida. Isso pode ser ilustrado pelos embates entre o deputado José Custódio Dias, que defendia que o Imperador deveria ser o chefe do executivo e que os legisladores deveriam ter poderes ilimitados, e Antônio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e Silva, que defendia o juramento perante a constituição política e as reformas indispensáveis e urgentes.244 O grupo moderado — o coimbrão — vencera na postura sobre as eleições dos deputados, de forma que a escolha realizada foi pela eleição indireta. O grupo brasiliense, de outro lado, jugava a república inadequada ao Brasil, porém, sustentava uma monarquia de base popular. E, desse modo, vislumbravam-se manifestações de diversas matizes da linguagem do liberalismo. Apesar de ter havido consenso quanto à convocação da 242 COSTA, Emília Viotti da. Da Monarquia à República: momentos decisivos. 6. ed. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1999, p. 138-139. 243 NEVES, Lucia Maria Bastos Pereira das. Nas margens do liberalismo: voto, cidadania e constituição no Brasil (1821-1824). Revista de História das Ideias, v. 37, p. 55-77, 2019. Disponível em: https://impactum-journals.uc.pt/rhi/article/view/2183-8925_37_3. Acesso em: 26 fev. 2022, p. 63. 244 FLORINDO, Glauber Miranda. Rupturas e continuidades na Assembleia Constituinte de 1823: a autoridade do monarca e o lugar do poder local. Revista de Pesquisa Histórica — CLIO, Recife [online], v. 38, p. 162-182, jul./dez. 2020. Disponível em: https://periodicos.ufpe.br/revistas/revistaclio/article/view/244741. Acesso em: 20 out. 2021, p. 165- 166. 84 Constituinte, os dois grupos mencionados colocaram-se em forte disputa até a sua dissolução.245 A Assembleia Geral, Constituinte e Legislativa foi a primeira experiência parlamentar no Brasil, reunindo deputados eleitos para elaborar uma Constituição e um ordenamento jurídico para o país.246 Alguns aspectos de sua composição auxiliam a compreender quais setores seus membros representavam e o que aconteceu com as tendências revolucionárias. A primeira tarefa realizada pelas elites dominantes no poder foi a substituição das instituições coloniais, por outras mais “adequadas” à nação recém-formada. Tal como sublinha Viotti, isso não foi feito por inexperientes. A maioria era como José Bonifácio, homens brancos na faixa de cinquenta anos, com longos anos de serviço público à Coroa portuguesa em muitas funções.247 Com relação aos projetos para o arranjo institucional do Brasil, o grupo mais radical visava a limitação dos poderes do Monarca, que estaria, por sua vez, abaixo da Constituição e do legislativo responsável por elaborá-la. Buscavam limitar o direito de veto do imperador, para que este não tivesse iniciativa na elaboração e execução de leis, ou poder de direção das forças armadas, que pretendiam subordinar à Assembleia.248 Eles pensavam que os poderes do Monarca deveriam estar abaixo da Constituição e do Legislativo, pugnando pela imposição de um juramento, confeccionado pela Assembleia Constituinte, como requisito para aclamação do Imperador. O outro grupo, mais “conservador” ou “moderado”, concebia a autoridade do Monarca em par de igualdade — ou acima do Poder Legislativo. Seus partidários coibiram o mencionado juramento prévio do Monarca, e se consolidaram como grupo vitorioso no primeiro momento do Brasil independente.249 245 NEVES, Lucia Maria Bastos Pereira das. Nas margens do liberalismo: voto, cidadania e constituição no Brasil (1821-1824). Revista de História das Ideias, v. 37, p. 55-77, 2019. Disponível em: https://impactum-journals.uc.pt/rhi/article/view/2183-8925_37_3. Acesso em: 26 fev. 2022, p. 64-65. 246 AGÊNCIA CÂMARA DE NOTÍCIAS. Conheça a história da Assembleia Constituinte de 1823. 17 out. 2018, 18:30. Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/546341-conheca-a-historia-da- assembleia-constituinte-de-1823/. Acesso em: 15 fev. 2022. 247 COSTA, Emília Viotti da. The Brazilian Empire: myths & histories. Revised Edition. The University of North Carolina Press: Chapel Hill and London, 2000, p. 53. 248 COSTA, Emília Viotti da. Da Monarquia à República: momentos decisivos. 6. ed. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1999, p. 138-139. 249 FLORINDO, Glauber Miranda. Rupturas e continuidades na Assembleia Constituinte de 1823: a autoridade do monarca e o lugar do poder local. Revista de Pesquisa Histórica — CLIO, Recife [online], v. 38, p. 162-182, jul./dez. 2020. Disponível em: https://periodicos.ufpe.br/revistas/revistaclio/article/view/244741. Acesso em: 20 out. 2021, p. 163. 85 Os debates mais abrasivos que se seguiram estavam vinculados às delimitações dos poderes, ainda mais quando expressa a intenção do Imperador de adentrar setores não especificados pela Constituinte, como destinadas ao poder real. O grupo mais radical buscava ampliar o poder legislativo em detrimento do poder real. No âmbito da Assembleia Constituinte, também tentaram instituir o princípio da responsabilidade ministerial, que lhe possibilitaria o controle do executivo, autorizando a convocação dos ministros para prestarem esclarecimentos.250 2.2.1 Composição da Constituinte e discurso senhorial Entre os participantes da Assembleia, encontravam-se muitos padres, o que era esperado visto que a Igreja detinha o monopólio da cultura e os clérigos desempenhavam um papel importante na administração. Tinha-se funcionários públicos e profissionais de diversas categorias, como advogados, médicos e professores. Eles eram majoritariamente formados na Universidade de Coimbra ou outra instituição da Europa, já que não existia universidade no Brasil. Também havia comerciantes e proprietários de plantações. Porém, todos eles apresentavam em comum a ligação, através da família ou clientela, com os grupos exportadores-importadores e elites vinculadas à agricultura e ao comércio. A nação foi organizada de acordo com os interesses desses grupos.251 Foram reunidos 84 dos 100 deputados, de 14 províncias, que representavam, conforme citado, a elite política da época.252 O Brasil contava com cerca de 4,5 milhões de habitantes, sendo eles: 800 mil índios, 1 milhão de brancos, 1,2 milhão de negros escravizados e 1,5 milhão de mulatos, pardos, caboclos e mestiços.253 As bancadas mais representativas foram, por ordem de representantes, Minas Gerais, Pernambuco, São 250 COSTA, Emília Viotti da. Da Monarquia à República: momentos decisivos. 6. ed. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1999, p. 138-139. 251 COSTA, Emília Viotti da. The Brazilian Empire: myths & histories. Revised Edition. The University of North Carolina Press: Chapel Hill and London, 2000, p. 53. 252 José Honório Rodrigues aponta 90 deputados. In: RODRIGUES, José Honório. A Assembleia Constituinte de 1823. Petrópolis: Editora Vozes, 1974, p. 27. Já a historiadora Elaine L. V. Sodré esclarece que 88 dos parlamentares foram diplomados e tomaram assento, seja como deputados efetivos ou suplentes. In: SODRÉ, Elaine Leonara de Vargas. Entre nobres e revolucionários: a Assembleia Constituinte de 1823 e o paradoxal nascimento da elite política imperial. Anais do XXIX Simpósio Nacional de História — contra os preconceitos: história e democracia. Brasília: ANPUH, 2018, p. 1- 16. Disponível em: https://anpuh.org.br/index.php/documentos/anais/category-items/1-anais- simposios-anpuh/35-snh29?start=320. Acesso em: 1 fev. 2022, p. 3. 253 AGÊNCIA CÂMARA DE NOTÍCIAS. Conheça a história da Assembleia Constituinte de 1823. 17 out. 2018, 18:30. Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/546341-conheca-a-historia-da- assembleia-constituinte-de-1823/. Acesso em: 15 fev. 2022. 86 Paulo, Bahia, Ceará, Paraíba, Alagoas e Rio Grande do Sul.254 Em tese, todas as províncias deveriam ser representadas, porém quatro não foram: Pará, Piauí, Maranhão e Cisplatina. E cinco delas tinham apenas um deputado: Goiás, Espírito Santo, Mato Grosso, Rio Grande do Norte e Santa Catarina.255 Com relação ao perfil dos parlamentares, vale ressaltar que, tal como esclarece Sodré, a população brasileira, considerando votantes e votados, era composta por significativo número de portugueses. Ainda assim, na Assembleia, eles representavam cerca de 5%, e os brasileiros natos eram aproximadamente 83% dos deputados, dos quais 24% eram mineiros, 13% baianos, 12% pernambucanos e 10% paulistas. Das outras regiões com menor percentual nas representações, 12% dessa parcela foi classificado como de naturalidade desconhecida. Ademais, apenas 22% dos deputados tinham idade inferior a 40 anos.256 Esses números são relevantes para entender o rumo que tomaram os debates e as mudanças econômicas que seriam experimentadas com a cultura do café, sua consolidação e o seu posterior capitaneio pelo Estado de São Paulo. A proeminência da escravidão nas lavouras cafeeiras apresentou fator de impacto para a sua contínua defesa no âmbito do discurso legislativo. Ademais, analisando a formação acadêmica e a profissão dos deputados, eles eram representantes da elite, contando-se com 49 egressos da Universidade de Coimbra, a maioria apresentando grau de bacharel em Direito. Os outros dois maiores grupos consistiam em clérigos e militares.257 A fotografia descrita reforça o argumento que buscamos desenvolver: a própria composição social dos cargos políticos evidenciava que o discurso senhorial seria, de todo modo, reproduzido e que a escravidão continuaria sendo apreendida, de maneira consciente e estratégica pelos grupos dominantes, como subsistência do país. O que os debates da Constituinte efetivamente nos revelam é que o seu prosseguimento, que foi obstado, caminhava para resultados mais progressistas para a época, incluindo a abrangência da cidadania e da situação da liberdade. 254 RODRIGUES, Celso. Assembleia Constituinte de 1823: ideias políticas na fundação do Império brasileiro. Curitiba: Juruá, 2008, p. 26. 255 SODRÉ, Elaine Leonara de Vargas. Entre nobres e revolucionários: a Assembleia Constituinte de 1823 e o paradoxal nascimento da elite política imperial. Anais do XXIX Simpósio Nacional de História — contra os preconceitos: história e democracia. Brasília: ANPUH, 2018, p. 1-16. Disponível em: https://anpuh.org.br/index.php/documentos/anais/category-items/1-anais-simposios-anpuh/35- snh29?start=320. Acesso em: 1 fev. 2022, p. 3. 256 Ibid., p. 4. 257 Ibid., p. 4. 87 Porém, sem a Assembleia, os resultados seriam ainda mais precários, de forma que ela representou importante mobilização para o reconhecimento de direitos através do constitucionalismo, deixando ganhos em seu legado, apesar dos atos de arbitrariedade que sucederam a sua dissolução. A dissolução, como evento em si, transparece as bases sobre as quais a nova ordem jurídica foi fundada: em um ato de violência e a partir de um pacto excludente. Sodré elucida que uma parcela dos parlamentares — praticamente a metade — podia ser classificada como “revolucionários”, visto que dois participaram da Inconfidência Mineira, oito estavam ligados à Revolução Pernambucana e três à Confederação, sendo a maioria nordestinos. Muitos pertenciam ao clero regular. Bahia e São Paulo constituíam oposições entre si, com posicionamentos de maior inclinação liberal e conservadora, respectivamente.258 A bancada de São Paulo ensaiava uma tendência liberal, embora muitos deputados mudassem de opinião conforme o cenário político. Dentre os paulistas, estavam José Bonifácio e Antônio Carlos. Também Souza e Mello (1791-1852) e Nicolau Vergueiro (1778-1859), que eram identificados por seus contemporâneos como liberais.259 O liberalismo brasileiro do grupo paulista antevia a interferência do Estado na economia só tendo sentido caso estimulasse o desenvolvimento econômico e as prerrogativas políticas que acolhessem os seus interesses.260 Os deputados não colocaram na pauta de discussão do plenário temas diretamente ligados à escravidão. Eles presenciavam essas discussões na política de suas localidades e representavam os proprietários de escravos.261 Porém, em nível local, como na Guerra de Independência da então Província da Bahia (1822-1823), houve o recrutamento da força escrava para lutar.262 Conforme Lemos: 258 SODRÉ, Elaine Leonara de Vargas. Entre nobres e revolucionários: a Assembleia Constituinte de 1823 e o paradoxal nascimento da elite política imperial. Anais do XXIX Simpósio Nacional de História — contra os preconceitos: história e democracia. Brasília: ANPUH, 2018, p. 1-16. Disponível em: https://anpuh.org.br/index.php/documentos/anais/category-items/1-anais-simposios-anpuh/35- snh29?start=320. Acesso em: 1 fev. 2022, p. 5-11. 259 Ibid., p. 5-11. 260 SILVA, Tânia Soares da. Paula Souza, “arauto da modernidade”. Um estudo da elite paulista (1843- 1917). 2009. 291 f. Tese (Doutorado em História) — Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), São Paulo, 2009. Disponível em: https://tede2.pucsp.br/handle/handle/13140. Acesso em: 2 fev. 2022, p. 130. 261 LEMOS, Antonio Cleber da Conceição. O discurso senhorial na Assembleia Geral Constituinte de 1823: o caso das sessões preparatórias. Revista de História da UFBA, v. 6, n. 1-2, p. 49-63, 2017. Disponível em: https://periodicos.ufba.br/index.php/rhufba/article/view/27858/16553. Acesso em: 20 fev. 2022, p. 50. 262 KRAAY, Hendrik. Em outra coisa não falavam os pardos, cabras, e crioulos: o “recrutamento” de escravos na guerra da Independência na Bahia. Revista Brasileira de História [online], v. 22, n. 43, p. 88 [...] os deputados sabiam que o novo pacto político se fundamentaria em algumas certezas já instituídas, como, por exemplo, a exclusão das populações africanas. Formando um discurso nacional eurocêntrico, os deputados não tocaram nas diversidades culturais e socais da escravidão no Brasil, alicerçando a segurança de seu pacto.263 A referida segurança buscada não condizia com a realidade, pois os diversos episódios de “rebeldia” contra a instituição expunham as instabilidades da estrutura escravista, resultando na repressão da população escrava estrangeira, não inserida no pacto político e colocada, em muitos momentos, como verdadeira inimiga da nação brasileira. A ideia de nação foi tomada como um pacto de repressão e mantença da ordem, de modo a suprimir tensões internas, abalando a unidade em construção.264 Dessa maneira, estreitavam-se os discursos sobre pertencimento. Os direitos civis e políticos da nação escravista estavam ligados à posse e propriedade, para manutenção do status social. Reconhecer que escravos pudessem ter direito à liberdade tocava nos privilégios das camadas proprietárias. Apesar de terem ocorrido críticas ao regime escravista por parte de setores das elites sociais e políticas, elas serviam para ilustrar a sociedade brasileira, mas remanesciam no plano das ideias. Portanto, a liberdade, para além de ser um direito, era privilégio.265 De acordo com Jaime Rodrigues, os debates da Assembleia Constituinte reunida no Rio de Janeiro em 1823 caracterizaram-se como um terreno de ausências. E nesse sentido, “A mais visível delas seria a ausência de discussões sobre a escravidão no Brasil”.266 Alguns ofícios e requerimentos foram enviados à Assembleia, como foi o caso de Inácio Rodrigues e outros escravos de Águeda Caetana, com o objetivo de garantir- lhes ordem para tratarem livremente de suas vidas. Isso foi “uma exceção à regra do 109-126, 2002. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0102-01882002000100007. Acesso em: 20 fev. 2022, p. 109. 263 LEMOS, Antonio Cleber da Conceição. O discurso senhorial na Assembleia Geral Constituinte de 1823: o caso das sessões preparatórias. Revista de História da UFBA, v. 6, n. 1-2, p. 49-63, 2017. Disponível em: https://periodicos.ufba.br/index.php/rhufba/article/view/27858/16553. Acesso em: 20 fev. 2022, p. 51. 264 Ibid., p. 51-52. 265 Ibid., p. 53-54. 266 RODRIGUES, Jaime. Liberdade, humanidade e propriedade: os escravos e a Assembleia Constituinte de 1823. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo, v. 39, p. 159-167, 1995. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/rieb/article/view/72079. Acesso em: 20 fev. 2022, p. 159. 89 silêncio da Constituinte no que se referia à liberdade e, mais especificamente, às relações entre senhores e cativos”.267 Na linha do que propõe Queiroz, não era recente o medo da guerra dos negros contra os brancos, ainda mais considerando o longo histórico de insurreições com teor abolicionista. Esse medo mobilizava o imaginário e a prática das elites locais e da população subalternizada.268 Passaremos a tratar, no tópico subsequente, de alguns pontos controversos no âmbito da Constituinte que servem à apreensão de como o liberalismo era pensado e frisam o aspecto do silêncio sobre a situação de liberdade dos escravos. 2.2.2 Controvérsias sobre o poder do monarca e limites da Constituinte: qual liberalismo venceu? O resultado da dissolução da Assembleia não aconteceu de maneira isolada, contando com uma série de fatores. Com este item, buscaremos demonstrar que o clima de tensão na Constituinte se fazia presente desde o início dos trabalhos, intensificando-se conforme o monarca sentia-se contrariado, apoiado pelo partido português. Não pretendemos fazer longa digressão dos debates, mas enaltecer que, além da problemática dos limites do poder político, estava em discussão o que era ou não ser liberal e como a Constituição em pauta poderia ser estruturada como uma Constituição liberal. Dentre os temas que impulsionaram o clímax da questão, a amplitude dos poderes do Imperador e os limites da Constituinte estavam nesse conjunto. Segundo Rauter Pereira e Sena, quatro assuntos receberam atenção especial dos parlamentares: os direitos de cidadania (como a cidadania política dos libertos); os mecanismos para se evitar fraude eleitoral; a representação de minorias partidárias (em particular o debate entre os defensores do voto distrital e os partidários do voto provincial); e a influência do executivo nas eleições.269 267 RODRIGUES, Jaime. Liberdade, humanidade e propriedade: os escravos e a Assembleia Constituinte de 1823. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo, v. 39, p. 159-167, 1995. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/rieb/article/view/72079. Acesso em: 20 fev. 2022, p. 160. 268 QUEIROZ, Marcos Vinícius Lustosa Queiroz. Constitucionalismo brasileiro e o Atlântico negro: a experiência constitucional de 1823 diante da Revolução Haitiana. 2017. 200 f. Dissertação (Mestrado em Direito) — Faculdade de Direito, Universidade de Brasília (UnB), Brasília, 2017. Disponível em: https://repositorio.unb.br/handle/10482/23559. Acesso em: 10 fev. 2022, p. 118. 269 RAUTER PEREIRA, Luisa; SENA, Hebert Faria. A historicidade do político: o debate sobre representação e cidadania no Império Brasileiro (1823-1840). História da Historiografia: International 90 Propostas distintas de Constituição foram esboçadas. Do lado dos moderados, representantes da elite coimbrã, ao exemplo de José da Silva Lisboa, criticava-se a ideia de estabelecer a democracia e legitimar a Constituição por meio do consenso do povo. Bonifácio temia a desordem e propunha a criação de um Conselho de Procuradores, como intermediário do povo e do soberano. Para as tendências mais radicais, somente a Constituição poderia estabelecer a autoridade encarregada de formar as leis, fazê-las cumprir e executá-las. Após a dissolução, outros liberais radicais, como por exemplo Cipriano Barata, alertaram sobre os perigos ao redor da Constituinte e acerca da impossibilidade de se aceitar uma Constituição que não emanasse de uma Assembleia.270 A Assembleia constituinte e legislativa271 contou com um projeto de Constituição que ficou sob responsabilidade de uma Comissão de sete deputados, dentre eles, Antônio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e Silva, Antônio Luís Pereira da Cunha, Francisco Muniz Tavares, José Bonifácio Andrada e Silva, José Ricardo da Costa Aguiar, Manoel Ferreira da Câmara e Pedro de Araújo Lima.272 O projeto de Constituição foi apresentado somente em setembro de 1823, pelo deputado e relator Antônio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e Silva (de São Paulo), composto por 272 artigos, distribuídos em 15 títulos, com teor liberalizante e de contenção do poder do monarca.273 Segundo a história, Antônio Carlos teria elaborado sozinho em 15 dias o projeto de Constituição para o Império do Brasil.274 O texto tinha Journal of Theory and History of Historiography, Ouro Preto, v. 9, n. 22, 2017. Disponível em: https://www.historiadahistoriografia.com.br/revista/article/view/1056. Acesso em: 27 fev. 2022, p. 262. 270 NEVES, Lucia Maria Bastos Pereira das. Nas margens do liberalismo: voto, cidadania e constituição no Brasil (1821-1824). Revista de História das Ideias, v. 37, p. 55-77, 2019. Disponível em: https://impactum-journals.uc.pt/rhi/article/view/2183-8925_37_3. Acesso em: 26 fev. 2022, p. 70. 271 Presidiram a Assembleia Constituinte: D. José Caetano da Silva Coutinho, bispo do Rio de Janeiro (maio e agosto de 1823); José Bonifácio de Andrada e Silva (junho); Manoel Ferreira da Camara Bittencourt e Sá (julho); Barão de Santo-Amaro (setembro); Martim Francisco Ribeiro de Andrada (outubro); e João Severiano Maciel da Costa (novembro). In: BRASIL. Senado Federal. Assembléa Constituinte do Imperio do Brazil, 1823. Publicações. Anais do Império digitalizados. Disponível em: https://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/pdf- digitalizado/Anais_Imperio/1823/1823%20Livro%201.pdf. Acesso em: 1 fev. 2022, p. 10. 272 SODRÉ, Elaine Leonara de Vargas. Entre nobres e revolucionários: a Assembleia Constituinte de 1823 e o paradoxal nascimento da elite política imperial. Anais do XXIX Simpósio Nacional de História — contra os preconceitos: história e democracia. Brasília: ANPUH, 2018, p. 1-16. Disponível em: https://anpuh.org.br/index.php/documentos/anais/category-items/1-anais-simposios-anpuh/35- snh29?start=320. Acesso em: 1 fev. 2022, p. 3. 273 AGÊNCIA CÂMARA DE NOTÍCIAS. Conheça a história da Assembleia Constituinte de 1823. 17 out. 2018, 18:30. Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/546341-conheca-a-historia-da- assembleia-constituinte-de-1823/. Acesso em: 15 fev. 2022. 274 VASCONCELOS, Diego de Paiva. O Liberalismo na Constituição Brasileira de 1824. 2008. 83 f. Dissertação (Mestrado em Direito Constitucional) — Universidade de Fortaleza (UNIFOR), Fortaleza, 2008. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/teste/arqs/cp049092.pdf. Acesso em: 10 dez. 2021, p. 48. 91 inspiração liberal, contava com a desvinculação entre Igreja e Estado, garantindo a liberdade religiosa, a descentralização da administração do Estado, além de conceder certa autonomia às províncias e esvaziar a competência do Imperador — acumulando-a nos Gabinetes —, instituindo os três poderes e conferindo atribuições relevantes ao Parlamento. Esboçava contornos de uma monarquia constitucional parlamentarista clássica, o que atraiu negativamente a atenção de Dom Pedro I.275 Exemplo dos mencionados conflitos foi a discussão, nas sessões preparatórias, sobre o projeto do Regimento da Assembleia Geral Constituinte. Logo após a leitura do documento pelo relator Sr. Rodrigues Vellozo (deputado pelo Maranhão), o Sr. Andrada Machado se opôs à votação por escrutínio secreto. Sobre isso, interessante o comentário do Sr. Muniz Tavares (eleito por Olinda e Recife), que demonstrava preocupações quanto a possíveis comparativos entre a nação recém-independente e as nações da Europa: O SR. MUNIZ TAVARES: — Sr. presidente, Deus nos defenda que passasse semelhante methodo de votação. O que dirião as nações cultas da Europa? O que dirião os nossos inimigos? Ah! Eu já prevejo; dirião sem duvida que entre nós havião deputados, que contra a expectativa dos seus constituintes não se animavão a declarar com franqueza o seu voto. Isto é indigno; e eu de nenhuma sorte posso annuir.276 Vemos assim que o liberalismo é tomado nos debates como chave para inclusão do Brasil entre as nações “cultas”, havendo uma grande preocupação quanto à representação dos modernos padrões europeus pelo texto constitucional. Para eles, a absorção dessas ideias significava a abertura de espaços econômicos e políticos. O choque dessas ideias com a realidade nacional exigiu adaptação, flexibilidade, assim como a compreensão do Direito como instrumento de controle. Dois objetivos foram abraçados pelas elites nesse sentido: primeiro, a garantia de seus interesses, com a manutenção da hierarquia social; e, segundo, a abertura econômica do país. 275 VASCONCELOS, Diego de Paiva. O Liberalismo na Constituição Brasileira de 1824. 2008. 83 f. Dissertação (Mestrado em Direito Constitucional) — Universidade de Fortaleza (UNIFOR), Fortaleza, 2008. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/teste/arqs/cp049092.pdf. Acesso em: 10 dez. 2021, p. 48. 276 BRASIL. Senado Imperial. Annaes do Parlamento Brazileiro. Assembléa Constituinte do Império do Brazil. Anais do Senado. Anno de 1823, Livro 1. Secretaria Especial de Editoração e Publicações — Subsecretaria de Anais do Senado Federal. Disponível em: https://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/asp/ip_anaisimperio_digitalizados.asp. Acesso em: 10 fev. 2022, sessão de 30 de abril de 1823, terceira sessão preparatória em 30 de abril de 1823, p. 27. 92 No âmbito das formalidades da Constituinte, proposta também polêmica foi a de que o Imperador recebesse posição distinta, mas no mesmo plano, que o presidente da Assembleia, com relação à qual o Sr. Andrada Machado retrucou-a demonstrando inconformismo. Para ele: “Como se quer nivellar um poder, fonte de todas as honras, que todas as constituições orlão de explendor e de gloria, com o presidente de uma assembléa, cujo melhor ornato é a simplicidade?”277 Tratava-se o monarca com esplendor, próximo do divino, tanto que ficou definido que no topo da sala de sessões ficaria o trono imperial e no primeiro degrau à direita a cadeira do presidente. Em cima da mesa, os Santos Evangelhos. O Sr. Andrada, sobre a regalia da coroa, estava “persuadido que no systema constitucional não só se deve ser liberal, mas até prodigo de honras”.278 Também se discutiu o papel dos ministros e se eles seriam “servos” do Imperador, ideia presente em fala de Andrada Machado e repudiada pelo Sr. Secretário Manoel José de Souza França (Rio de Janeiro), que julgava anticonstitucional a denominação, contrária aos princípios do direito público. Em resposta, o Sr. Carneiro Campos (Bahia) sublinhava o repúdio de se utilizar qualquer termo que pudesse — direta, indiretamente, ainda que por mera alusão — relacionar os deputados à condição servil ou à “criadagem”, conforme segue abaixo. O SR. CARNEIRO DE CAMPOS: — Do mesmo principio a que recorri para mostrar que os ministros de estado não são criados ou officiaes da casa imperial, deduzo que o seu lugar deve ser á direita do throno, como têm na côrte os grandes do imperio, que não são criados.279 Nesse âmbito, interessante frisar que o termo “liberal” era utilizado para indicar que o sistema constitucional deveria ser liberal e honroso ao monarca, o que pode ser notado no discurso de Andrada Machado. Para ele, dever-se-ia ter “economia” de poder, para que o poder fosse apenas o necessário ao desempenho das funções atribuídas 277 BRASIL. Senado Imperial. Annaes do Parlamento Brazileiro. Assembléa Constituinte do Império do Brazil. Anais do Senado. Anno de 1823, Livro 1. Secretaria Especial de Editoração e Publicações — Subsecretaria de Anais do Senado Federal. Disponível em: https://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/asp/ip_anaisimperio_digitalizados.asp. Acesso em: 10 fev. 2022, sessão de 30 de abril de 1823, terceira sessão preparatória em 30 de abril de 1823, p. 28. 278 Ibid., p. 28. 279 Ibid., p. 29. 93 constitucionalmente ao monarca, sem que possibilitasse a opressão dos outros poderes igualmente constituídos.280 Vale observar que em sessões posteriores seria comum a analogia entre o relacionamento entre Brasil e Portugal e a escravidão, falando-se da colônia como escrava da metrópole. Isso pode ser visto, por exemplo, na fala do Sr. José Custodio Dias (Minas Gerais) na sessão de 24 de maio, que trazia essa ideia ao tratar do contexto da Província de Minas, como se segue: [...] A provincia de Minas, pelo vice-presidente de seu governo malfadado, já havia primeiro anunciado em sua deputação a convocação de côrtes no Brazil, pois bem sabião os deputados que indo a Portugal, não fasião mais que assignar a carta de escravidão já exarada quando ainda de boa fé pretendiamos com Portugal uma união que sempre seria perigosa, e opposta ao feliz progresso da causa do Brazil, pela superioridade de votos contrarios ao seu bem naquelle congresso.281 Outro exemplo é a sessão de 26 de maio, na qual o Sr. Carneiro Campos falaria, ao tratar do projeto sobre os governos provinciais, que “povo que de repente passa da escravidão á liberdade, não sabe tomar esta palavra no seu verdadeiro sentido”.282 Assim, o termo “escravo” é também usado figurativamente e de maneira contínua para fazer referência à colonização. A separação entre colônia e metrópole era vista como condição necessária para se pensar a liberdade. Para que os homens fossem livres, era preciso se ter uma nação livre. Essa primeira etapa de ressignificação do conceito de liberdade, que vem de uma tentativa modernizadora, contribuiu para a ilusão passageira de que a Independência viria acompanhada da abolição. Uma segunda etapa é selada com a Constituição de 1824, que dizia quem eram os cidadãos livres e iguais, relacionando o conceito diretamente à noção de propriedade. Como uma via de duas mãos, era necessário ser livre para ser cidadão e consequentemente, o cidadão não podia ser escravo (pois o escravo era coisa). Em outras 280 BRASIL. Senado Imperial. Annaes do Parlamento Brazileiro. Assembléa Constituinte do Império do Brazil. Anais do Senado. Anno de 1823, Livro 1. Secretaria Especial de Editoração e Publicações — Subsecretaria de Anais do Senado Federal. Disponível em: https://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/asp/ip_anaisimperio_digitalizados.asp. Acesso em: 10 fev. 2022, sessão de 30 de abril de 1823, terceira sessão preparatória em 30 de abril de 1823, p. 19. 281 Ibid., sessão de 24 de maio de 1823, p. 154. 282 Ibid., sessão de 26 de maio de 1823, p. 167. 94 palavras, ser livre era estar em poderio de si mesmo — de suas capacidades — e de suas coisas. Era, portanto, ser proprietário, de si mesmo e de seus recursos. Quando entrou em debate a previsão de que o presidente da Assembleia responderia ao discurso do Imperador na Assembleia no dia de sua instalação e abertura — na sessão de 3 de maio —, o Sr. Andrada Machado repudiou imediatamente a ideia, trazendo como exemplos “as nações mais cultas da Europa”.283 O Sr. Dias então repreendeu ao Sr. Andrada acusando-o de utilizar muitos termos iliberais. O Sr. Andrada Machado, exaltado, intitulou-se então de “campeão da liberdade do Brazil”,284 dizendo ser pasmosa a taxação de iliberal e argumentando como o poder do Imperador não podia ser olhado senão como superior. Ao final, decidiu-se que o presidente deveria se pronunciar depois do discurso do Imperador. Nota-se, assim, que um dos principais pontos de choque estava no exercício da autoridade do Imperador. Instalou-se uma competição sobre quem melhor traduzia as ideias liberais — tidas como aquelas revolucionárias e emancipadoras, vindas das “nações cultas europeias” — para a Constituição política do Brasil. O discurso de abertura do monarca para a sessão de 3 de maio falava do prazer em ver representantes de quase todas as Províncias basearem seus interesses em uma “justa e liberal constituição”. Elogiando a representação nacional e tecendo críticas ao partido português, comparava a liberdade que Portugal oferecia ao Brasil à escravidão. Segundo o monarca, ele havia decidido ficar no Brasil como um “simples particular”. Defendeu então, ironicamente, a separação dos três poderes e a eliminação de “caprichos” na Constituição. Dignos representantes da nação brazileira. – E' hoje o dia maior, que o Brazil tem tido, dia em que elle pela primeira vez começa a mostrar ao mundo, que é imperio, e imperio livre. Quão grande é meu prazer, vendo juntos representantes de quasi todas as provincias, fazerem conhecer umas ás outras seus interesses, e sobre elles bazearem uma justa e liberal constituição, que as reja! [...] Os brazileiros, que verdadeiramente amavão seu paiz, jámais tiverão a intenção de se sujeitarem á constituição, em que todos não tivessem 283 BRASIL. Senado Imperial. Annaes do Parlamento Brazileiro. Assembléa Constituinte do Império do Brazil. Anais do Senado. Anno de 1823, Livro 1. Secretaria Especial de Editoração e Publicações — Subsecretaria de Anais do Senado Federal. Disponível em: https://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/asp/ip_anaisimperio_digitalizados.asp. Acesso em: 10 fev. 2022, sessão de 3 de maio de 1823, p. 38-39. 284 BRASIL, loc. cit. 95 parte, e cujas vistas erão de os converter repentinamente de homens livres, em vis escravos.285 Colocou-se também em discussão, na sessão de 6 de maio, o Imperador teria que aprovar a Constituição. O Sr. Dias criticou a ideia de que o Imperador não confiaria nos membros da Assembleia e que precisaria aprovar a Constituição. Então, o Sr. José Antonio da Silva Maia (Minas Gerais) propôs que o Imperador estabelecesse as condições para aprovar a Constituição e a ela se submeter, argumentando que o povo já o tinha eleito Imperador constitucional. Para o Sr. Ignacio Accioli de Vasconcelos (Alagoas), o Imperador jamais deixaria de aceitar uma Constituição liberal, com a separação e equilíbrio dos três poderes. Já o Sr. Francisco Muniz Tavares (Pernambuco) criticava a proposta porque implicaria em limitações à função da assembleia constituinte, o que seria contra as ideias liberais, comparando o Sr. Maia aos “patronos da legitimidade na Europa”, que teriam caído no mesmo “detestável absurdo”.286 No caso do Sr. Andrada Machado, ele também criticou a proposta do Sr. Maia, asseverando que nenhum cidadão era obrigado a entrar no pacto social e se submeter à Constituição, liberdade que também deveria ser garantida ao Imperador. Argumentou que forçar o Imperador a aceitar uma Constituição incapaz de fazer a felicidade do Brasil seria um perjúrio, pois o Imperador não seria obrigado a aceitar uma constituição inepta ou monstruosa. O SR. ANDRADA MACHADO: – Sr. Presidente, ouço fallar muito em liberal, mas muito poucas pessoas sabem o que quer dizer liberal. Ninguem dirá que não é legislação liberal a que admitte sancção do monarcha; despotismo e opposição não quadrão; o mais é ignorar-se o que liberalidade. (A’ ordem! Á ordem!) Mantenhão-se os illustres deputados nos seus limites, que eu não sahi dos meus. A sancção é o direito de fazer passar a lei, mas no direito dado por lei anterior não ha despotismo; uma constituição bem equilibrada, é a constituição, que quer Sua Magestade, é a que nós queremos; não vamos confundir tudo, uma cousa é legislação ordinaria, outra cousa, Sr. Presidente, é 285 BRASIL. Senado Imperial. Annaes do Parlamento Brazileiro. Assembléa Constituinte do Império do Brazil. Anais do Senado. Anno de 1823, Livro 1. Secretaria Especial de Editoração e Publicações — Subsecretaria de Anais do Senado Federal. Disponível em: https://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/asp/ip_anaisimperio_digitalizados.asp. Acesso em: 10 fev. 2022, sessão de 6 de maio de 1823, p. 51. 286 BRASIL, loc. cit. 96 legislação constituinte, e outra cousa é pacto social. Constituição firma o pacto social, e é que marca as formulas do mesmo pacto social.287 No trecho acima, vemos o Sr. Andrada Machado criticando novamente o uso da palavra liberal com o argumento de que as pessoas não sabem o que o termo quer dizer, sustentando que o direito de sanção do Imperador teria sido concedido por lei anterior e, portanto, não havia despotismo na situação. Na sessão parlamentar de 16 de junho de 1823, o Sr. Carneiro de Campos argumentava que a mudança repentina da escravidão para a liberdade e a inteligência errada das expressões liberdade e soberania do povo seriam as principais causas da desordem nas Províncias. Alegou que os povos seriam noviços em doutrinas constitucionais, sem saber do que estavam falando. A mudança repentina da escravidão para a liberdade, e a intelligencia errada da expressão soberania do povo, e do mesmo termo liberdade, espalhada por individuos de tenções sinistras entre os povos, ou dada por estes mesmos, como noviços em doutrinas constitucionaes, têm sido, no meu entender, as causas principaes das desordens que têm desasocegado as provincias. A estas causas ajuntarei a dos partidos diversos que existem nas mesmas provincias, os quaes, posto que diversifiquem em idéas, não têm duvida de ligar-se para fazer causa commum contra a fórma de governo escolhido, e ordem estabelecida; a cujo fim fomentão discordias de que esperão tirar partido para os seus intentos particulares.288 Um ponto interessante a ser citado é que, na sessão de 21 de junho, após argumentação do Sr. Marianno Cavalcanti de que o comandante das armas deveria reconhecer uma autoridade superior na Província, foi discutida a possível colocação da força militar como um dos poderes independentes do Estado (Poder Militar). O Sr. Joaquim Manoel Carneiro da Cunha (Paraíba do Norte), criticando a proposta, argumentava que não havia desonra no fato da força militar responder ao chefe do Poder 287 BRASIL. Senado Imperial. Annaes do Parlamento Brazileiro. Assembléa Constituinte do Império do Brazil. Anais do Senado. Anno de 1823, Livro 1. Secretaria Especial de Editoração e Publicações — Subsecretaria de Anais do Senado Federal. Disponível em: https://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/asp/ip_anaisimperio_digitalizados.asp. Acesso em: 10 fev. 2022, sessão de 16 de junho de 1823, p. 54. 288 BRASIL. Senado Imperial. Annaes do Parlamento Brazileiro. Assembléa Constituinte do Império do Brazil. Anais do Senado. Anno de 1823, Livro 2. Secretaria Especial de Editoração e Publicações — Subsecretaria de Anais do Senado Federal. Disponível em: https://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/asp/ip_anaisimperio_digitalizados.asp. Acesso em: 10 fev. 2022, p. 77-78. 97 Executivo. Para ele: “Só esta duvida mostra quão boçaes somos em materias constitucionaes, e quanto apezar dos muitos roncos e gabos de liberalismo estamos atascados no pegajoso lodaçal das maximas do velho despotismo”.289 Poucos dias depois, tratou-se de um parecer da comissão de legislação acerca do requerimento de Ignacio Rodrigues e outros escravos que pediam a sua liberdade, a partir de uma carta régia. O Sr. França pugnava mantê-los em liberdade, enquanto estivesse em análise recurso de revista. Já o Sr. Lucio Soares Teixeira de Gouvêa (Minas Gerais) argumentava que isso seria oposto à lei, “devendo em consequencia o senhor entrar na posse dos seus escravos, o conserval-os em liberdade, além da infracção da lei, é uma verdadeira violação de uma das garantias concedidas aos cidadãos.”290 O Sr. França alegava ser uma questão de justiça, mencionando a justiça como principal “empreza” de um sistema de governo liberal. No momento, eles estavam julgando se o parecer deveria ou não ser remetido novamente para a comissão de legislação, consideradas as diversas opiniões oferecidas.291 Vejamos que havia posicionamentos que por vezes mostravam ideais com direcionamento mais progressista, contudo, não logravam resultado. A noção de liberdade em um sentido político foi determinada — e ressignificada — em consonância com a cidadania. Foi sedimentando- se o preceito de que ela era cabível aos cidadãos e estes não eram todos os que habitavam o país. Quando estava em debate o atentado cometido por comandantes das tropas do Rio Grande do Sul que teriam usurpado as funções legislativas da Assembleia Geral e Constituinte e feito juramento em Porto Alegre, relativo à doutrina do “veto absoluto”,292 289 BRASIL. Senado Imperial. Annaes do Parlamento Brazileiro. Assembléa Constituinte do Império do Brazil. Anais do Senado. Anno de 1823, Livro 2. Secretaria Especial de Editoração e Publicações — Subsecretaria de Anais do Senado Federal. Disponível em: https://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/asp/ip_anaisimperio_digitalizados.asp. Acesso em: 10 fev. 2022, sessão de 21 de junho de 1823, p. 129. 290 Ibid., sessão de 25 de junho de 1823, p. 143. 291 BRASIL, loc. cit. 292 Essa conformação, de acordo com Hetsper, tem remota origem nas polis monárquicas da Grécia (aproximadamente 350 a.C.) e apresentava como característica a irrevogabilidade. No Brasil, o poder de veto se fez presente com a outorga da Constituição de 1824, por meio do qual o Imperador podia se recusar a prestar consentimento (Art. 64 da Constituição de 1824). O veto podia ser exercido sobre resoluções da Câmara através do Poder Moderador — podendo, inclusive, dissolvê-la. In: HETSPER, Rafael Vargas. O Poder de veto no ordenamento jurídico brasileiro. Revista de Informação Legislativa, Brasília, v. 49, n. 193, p. 215-226, jan./mar. 2012. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/ril/edicoes/49/193/ril_v49_n193_p215.pdf. Acesso em: 1 mar. 2022, p. 220. Ademais, em O espírito das Leis, Montesquieu também mencionava hipótese de intervenção do Poder Executivo no Poder Legislativo. In: MONTESQUIEU, Charles-Louis de Secondat, Barão de La Brède e de. O espírito das Leis: as formas de governo, a federação, a divisão dos poderes, presidencialismo versus parlamentarismo. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 176. Naquele contexto, a referência era feita ao veto absoluto da monarquia inglesa, em relação aos atos do parlamento e não 98 o Sr. Ferreira Araujo (Bahia) mencionou as liberalidades de Sylla e Cesar na sociedade romana para condenar o procedimento objeto de discussão. Determinou-se então que fosse oficiado o governo para que empregasse “exemplares medidas” e providências sobre o atentado cometido pelos comandantes de tropas do Rio Grande do Sul.293 Sobre isso, a demora para início dos trabalhos da Assembleia gerou uma série de manifestações de discordância, junto com a questão do juramento prévio do Imperador à Constituição. Em 19 de junho de 1823, tropas da guarnição de Porto Alegre sob o comando do Tenente Francisco Mena Barreto e do Major José Luís Mena Barreto realizaram manifestação em praça pública com o propósito de ratificar e ampliar o juramento de fidelidade ao Imperador, demonstrando apoio ao veto absoluto. Representantes do governo da Província participaram do ato junto a membros da Câmara da capital, do clero e vários cidadãos.294 O ato foi considerado de caráter anticonstitucional, causado em razão da conivência do governo da Província. Foi realizada, inclusive, após a sessão de 21 de julho, sessão secreta no dia seguinte, imputando-se a responsabilidade ao jornal Diário do Governo da Província — que não estava atrelado a órgão oficial, mas era tomado pela população como se fosse —, que teria publicado informações supostamente incorretas sobre a atribuição do veto absoluto ao Imperador. A discussão sobre o poder de veto do Imperador prosseguia desde o discurso de 3 de maio, na inauguração da Assembleia, por meio do qual o Imperador expressava a restrição do poder constitucional sob sua análise, já que a Constituição deveria, segundo ele, ser digna dele. A manifestação do Rio Grande do Sul, nesse sentido, trazia a noção de que o Imperador teria poder absoluto de veto, o que foi tomado pelo Imperador, e por muitos parlamentares, como uma ofensa. Contudo, ainda que a Constituição de 1824 não tenha consolidado essa terminologia, o poder do Imperador era bastante abrangente.295 somente leis ou normas produzidas e aprovadas. In: DALLARI, Paulo Massi. O instituto do veto presidencial no constitucionalismo brasileiro contemporâneo. 2015. 104 f. Dissertação (Mestrado em Direito) — Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015. Disponível em: https://repositorio.usp.br/item/002706334. Acesso em: 21 fev. 2022, p. 16. 293 BRASIL. Senado Imperial. Annaes do Parlamento Brazileiro. Assembléa Constituinte do Império do Brazil. Anais do Senado. Anno de 1823, Livro 3. Secretaria Especial de Editoração e Publicações — Subsecretaria de Anais do Senado Federal. Disponível em: https://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/asp/ip_anaisimperio_digitalizados.asp. Acesso em: 10 fev. 2022, sessão de 24 de julho de 1823, p. 141. 294 MIRANDA, Márcia Eckert. A Estalagem e o Império: crise do Antigo Regime, fiscalidade e fronteira na Província de São Pedro (1808-1831). 2006. 333 f. Tese (Doutorado em Economia Aplicada) — Instituto de Economia, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2006, p. 164-166. 295 COSTA, Renata Soares. Os homens, os termos e seus significados: a construção do vocabulário político no Rio Grande de São Pedro e na Cisplatina entre os anos de 1821 e 1825. 2016. 161 f. Dissertação 99 Preocupava a Constituinte que as forças armadas fossem utilizadas para uma proposta de organização do Estado oposta aos debates. Por fim, D. Pedro determinou a abertura de devassa — prestação de informações de delito à autoridade competente — acerca do ocorrido, suspendendo do exercício do cargo aqueles considerados diretamente envolvidos nos acontecimentos. O ponto central é que o Imperador se autodenominava e era reconhecido como uma figura liberal. A recepção seletiva que ele realizou das ideias liberais contribuiu para a caracterização sui generis do liberalismo brasileiro, afinal, depois da Independência, o liberalismo heroico foi identificado com a ideia de revolução. Contudo, a revolução da Independência havia acabado e surgia uma nova ordem jurídica, por isso era tempo de se acabar com aquela tendência, suprimindo oposições. No pós-Independência, predominou como vitorioso, portanto, esse liberalismo “moderado”, que se estendia no limite das hostilidades do Imperador, curvando-se a elas. Na sequência, com a decretação da dissolução da Constituinte, a criação do Conselho de Estado e a suspensão da liberdade de imprensa, novos rumos tomaram a distribuição de poder do Estado recém-formado, centrado na pessoa do Imperador, especialmente através do Poder Moderador.296 O domínio do Executivo contribuiu para a crise política que se instaurava e apesar da adaptação forçada das elites intelectuais e políticas a esse cenário, as fragilidades do Imperador não passaram despercebidas e foram guardadas, como uma carta na manga. 2.2.3 O desenvolvimento do conceito de cidadania A cidadania se tornou um ponto fundamental da nova linguagem política do liberalismo desde a Revolução Francesa. No lapso temporal entre a Constituinte e a outorga do texto de 1824, a questão da cidadania teve que encarar o fato de que boa parte da população era composta por homens não livres.297 Aqui tinha-se um problema: como edificar uma Constituição liberal sobre uma população escrava? Somado a isso e à pressão (Mestrado em História) — Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2016. Disponível em: https://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/168997. Acesso em: 21 fev. 2022, p. 71. 296 MIRANDA, Márcia Eckert. A Estalagem e o Império: crise do Antigo Regime, fiscalidade e fronteira na Província de São Pedro (1808-1831). 2006. 333 f. Tese (Doutorado em Economia Aplicada) — Instituto de Economia, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2006, p. 167-169. 297 NEVES, Lucia Maria Bastos Pereira das. Nas margens do liberalismo: voto, cidadania e constituição no Brasil (1821-1824). Revista de História das Ideias, v. 37, p. 55-77, 2019. Disponível em: https://impactum-journals.uc.pt/rhi/article/view/2183-8925_37_3. Acesso em: 26 fev. 2022, p. 65-67. 100 inglesa para o fim do tráfico, as elites precisavam lidar com os conflitos diante do Imperador. No caso dos debates da Constituinte, uma série de propostas seriam colocadas a partir de um conceito bem mais abrangente do que o enfim adotado no texto de 1824. Pensando na relação entre cidadania e liberdade, os políticos foram obrigados a discutir a escravidão para falar de cidadania. Algo que facilitou esse trajeto foi o destaque conferido pelo ideário liberal ao conceito de propriedade e o paradoxo clássico entre liberalismo e escravidão, que faziam parte desse conjunto. A grande e fundamental contradição presente no instituto da escravidão é que ele está baseado na mitologia de que o homem é coisa, mas qualquer sistema jurídico deixa transparecer, mais cedo ou mais tarde, que o homem é sujeito de direitos e/ou deveres. Aqui a saída para contornar a situação, sem tocar em seu ponto chave — o qual sequer era cogitado em um nível concreto (a abolição) — foi institucionalizar o aliciamento de amplos setores sociais em detrimento dos escravos. Para tratarmos da cidadania que foi adotada em 1824, e do pacto contra os escravos, é preciso ter em mente que foi consolidada uma separação legal entre dois grupos subalternizados: os escravos e os ex-escravos/libertos. Os últimos, foram incorporados à cidadania. Ainda que uma série de revoltas e insurreições ocorressem, não havia uma unidade entre esses grupos e a dominação senhorial dependia dessa separação. Ela garantia as desigualdades necessárias para que a classe proprietária mantivesse o modo de produção que a sustentava, ao mesmo tempo que alimentava a esperança da liberdade aos cativos, sem desapegar da escravidão. Dentre as barreiras que a nova Constituição colocou aos grupos escravos, em um primeiro plano, eles eram coisas, bens de propriedade dos senhores; e, de outro, ainda que a lei pudesse deixar transparecer que o homem não é coisa, eles eram estrangeiros. E a lei brasileira, ainda mais depois da Independência, queria proteger os brasileiros. Abordamos neste item o conceito de cidadania de acordo com passagens dos debates da Constituinte que envolvem cidadania e das disposições que foram adotadas pela Carta de 1824. Em meados de setembro de 1823, teve lugar na Constituinte o debate acerca da representação política constitucional e, em especial, das definições dos direitos de cidadania civil e política. Afinal, quem seriam os cidadãos brasileiros? Isso significou delimitar quem teria direito à participação política. No anteprojeto constitucional da comissão liderada por Antônio, o Capítulo 1, Título 2º, fazia menção aos “Membros da Sociedade do Império do Brasil”, conforme segue abaixo: 101 CAPÍTULO I. Dos Membros da Sociedade do Império do Brasil. Art. 5º. São Brasileiros: I. Todos os homens livres habitantes no Brasil, e nele nascidos. II. Todos os Portugueses residentes no Brasil antes de 12 de Outubro de 1822. III. Os Filhos de Pais Brasileiros nascidos em Países estrangeiros, que vierem estabelecer domicílio no Império. IV. Os Filhos de Pai Brasileiro, que estivesse em País estrangeiro em serviço da Nação, embora não viessem estabelecer domicílio no Império. V. Os Filhos ilegítimos de Mãe Brasileira, que, tendo nascido em País estrangeiro, vierem estabelecer domicílio no Império. VI. Os Escravos que obtiverem Carta de alforria. VII. Os Filhos de estrangeiros nascidos no Império, contanto que seus pais não estejam em serviço de suas respectivas Nações. VII. Os estrangeiros naturalizados, qualquer que seja a sua religião.298 É válido notar que, para a sociedade em formação, os seus componentes com poder político eram antes “homens de bem” do Império, defensores de valores. Agora, nesse momento em que o Estado se estabelecia, eles precisavam ser algo diverso. Um apego estrito foi imprimido sobre o detalhamento das terminologias adotadas, pois não podia haver espaço para interpretações diversas da norma, que não aquela pretendida pelos seus produtores. Termos como “súditos” e “membros” foram considerados. Todavia, para entrar no grupo das “nações cultas” da Europa, a Constituição política da nação recém-formada tinha que vislumbrar conceitos modernos, afastados da linguagem nefasta dos Antigos Regimes. O Art. 5º do projeto trazia disposições sobre os brasileiros, mas não definia quem eram os cidadãos brasileiros, sem deixar claro se os escravos nascidos no Brasil e os indígenas eram brasileiros. No caso do Art. 123 do Projeto, a disposição previa a figura dos cidadãos ativos, que eram aqueles aptos ao exercício dos direitos políticos de representação, mas não trazia uma definição e nem mesmo esclarecia, a contrario sensu, quem eram os cidadãos passivos, como se lê abaixo: Art. 123. São Cidadãos ativos para votar nas Assembleias primárias, ou de Paróquias: I. Todos os Brasileiros ingênuos, e os libertos nascidos no Brasil. II. Os Estrangeiros naturalizados. 298 BRASIL. Câmara dos Deputados. Annaes do Parlamento Brazileiro: Assembléa Constituinte 1823. Rio de Janeiro: Typographia do Imperial Instituto Artístico, 1874. Disponível em: https://bd.camara.leg.br/bd/handle/bdcamara/6/browse?value=Brasil.+Assembleia+Nacional+Constitu inte+%281823%29&type=subject. Acesso em: 1 fev. 2022, ano 1823, tomo 5, p. 10. 102 Mas tanto uns como outros devem estar no gozo dos direitos políticos, na conformidade dos Artigos 31, e 32, e ter de rendimento líquido anual o valor de cento e cinquenta alqueires de farinha de mandioca, regulado pelo preço médio da sua respectiva Freguesia, e provenientes de bens de raiz, comércio, indústria, ou artes, ou seja, os bens de raiz próprios, ou foreiros, ou arrendados por longo termo, como de nove anos, e mais. Os alqueires serão regulados pelo padrão da Capital do Império. Art. 124. Excetuam-se: I. Os menores de vinte e cinco anos, nos quais se não compreendem os casados e Oficiais Militares que tiverem vinte e um anos, os Bacharéis formados, e os Clérigos de Ordens Sacras. II. Os filhos famílias que estiverem no poder e companhia de seus Pais, salvo se servirem Ofícios Públicos. III. Os criados de servir, não entrando nesta classe os Feitores. IV. Os libertos que não forem nascidos no Brasil, exceto se tiverem Patentes Militares ou Ordens Sacras. V. Os Religiosos ou quaisquer que vivam em Comunidade Claustral, não compreendendo porém nesta exceção os Religiosos das Ordens Militares, nem os Secularizados. VI. Os caixeiros, nos quais se não compreendem os Guarda-Livros. VII. Os Jornaleiros.299 O projeto previa a limitação do exercício do direito político de voto, a depender da renda anual, tomando como medida a farinha de mandioca — e por isso o texto ficou popularmente conhecido como “Constituição da Mandioca”. Incorporava os libertos nascidos no Brasil e os ingênuos (nascidos livres) na condição de cidadãos ativos. Ou seja, a proposta não apreendia os libertos africanos. Na sessão de 23 de setembro de 1823, Nicolau Pereira de Campos Vergueiro (deputado pela província de São Paulo) apresentou uma emenda ao projeto para que a palavra “membros” do Art. 5º fosse substituída por “cidadãos”. Ocorreu então longo debate sobre a necessidade de incorporar o termo moderno, dotado da universalidade e abrangência que lhes eram próprias, mas sem perder de vista as hierarquias que se convencionaram imprescindíveis entre os elementos do corpo político.300 Tocando no cerne na questão, o Sr. Montezuma (deputado pelo Rio de Janeiro) propôs então que, em modo diverso do sugerido pelo Sr. Vergueiro,301 fossem 299 BRASIL. Câmara dos Deputados. Annaes do Parlamento Brazileiro: Assembléa Constituinte 1823. Rio de Janeiro: Typographia do Imperial Instituto Artístico, 1874. Disponível em: https://bd.camara.leg.br/bd/handle/bdcamara/6/browse?value=Brasil.+Assembleia+Nacional+Constitu inte+%281823%29&type=subject. Acesso em: 1 fev. 2022, ano 1823, tomo 5, p. 11. 300 RAUTER PEREIRA, Luisa; SENA, Hebert Faria. A historicidade do político: o debate sobre representação e cidadania no Império Brasileiro (1823-1840). História da Historiografia: International Journal of Theory and History of Historiography, Ouro Preto, v. 9, n. 22, 2017. Disponível em: https://www.historiadahistoriografia.com.br/revista/article/view/1056. Acesso em: 27 fev. 2022, p. 262. 301 Para o deputado, contudo, mostrava-se latente a exclusão da condição de cidadãos dos índios e dos filhos de estrangeiros. Frisava que “o que é indio, que não está ligado comnosco; os filhos de 103 diferenciados os “brasileiros” dos “cidadãos brasileiros”, com fulcro na ideia de cidadania ativa e passiva — ao invés de simplesmente colocar quem eram os brasileiros e os cidadãos ativos. Continuando a discussão, o Sr. Ferreira França (deputado pela Bahia) seguiu enaltecendo que a diferença deveria ser feita, afinal, entre a população de cativos (os filhos dos negros e os índios, mesmo que nascidos no Brasil), que não entravam — e não poderiam entrar —, conforme a sua visão, na categoria de cidadãos brasileiros.302 Interveio na sequência o Sr. França, introduzindo na discussão a problemática dos nascidos no Brasil, versus os cidadãos. O SR. FRANÇA: – Nós não podemos deixar de fazer esta differença ou divisão de brazileiros, e cidadãos brazileiros. Segundo a qualidade da nossa população, os filhos dos negros, crioulos captivos, são nascidos no territorio do Brazil, mas todavia não são cidadãos brazileiros. Devemos fazer esta differença: brazileiro é o que nasce no Brazil, e cidadão brazileiro é aquelle que tem direitos civicos. Os indios que vivem nos bosques são brazileiros, e comtudo não são cidadãos brazileiros, emquanto não abração a nossa civilisação. Convém por consequencia fazer esta differença por ser heterogenea a nossa população.303 Sobre isso, o Sr. Montezuma frisou que o problema versava sobre os índios e “crioulos captivos”, colocando que estava em discussão quem eram os súditos do Império, sendo eles os únicos que gozariam das comodidades da sociedade brasileira, com direitos e obrigações no pacto social. Sua fala trazia a ideia de que a sociedade era lugar de um seleto grupo de privilegiados que tinham direito a esse espaço. Ainda que assumisse a situação da população escrava como um “cancro tão virulento”, o deputado previa que aquele não era o momento de resolver o problema do que chamou de “mancha negra”.304 estrangeiros, estes, não tratamos delles. A constituição não é feita para elles, é para os membros da sociedade brazileira: dos outros não tratamos”. In: BRASIL. Senado Imperial. Annaes do Parlamento Brazileiro. Assembléa Constituinte do Império do Brazil. Anais do Senado. Anno de 1823, Livro 5. Secretaria Especial de Editoração e Publicações — Subsecretaria de Anais do Senado Federal. Disponível em: https://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/asp/ip_anaisimperio_digitalizados.asp. Acesso em: 10 fev. 2022, p. 211-212. 302 Conforme o deputado Montezuma: “O Ser brazileiro, é ser membro da sociedade brazilica: portanto todo o brazileiro é cidadão brazileiro: convém sim dar a uns mais direitos e mais deveres do que a outros; e eis-aqui cidadãos activos e passivos.” In: BRASIL. Senado Imperial. Annaes do Parlamento Brazileiro. Assembléa Constituinte do Império do Brazil. Anais do Senado. Anno de 1823, Livro 5. Secretaria Especial de Editoração e Publicações — Subsecretaria de Anais do Senado Federal. Disponível em: https://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/asp/ip_anaisimperio_digitalizados.asp. Acesso em: 10 fev. 2022, p. 211. 303 BRASIL, loc. cit. 304 BRASIL. Senado Imperial. Annaes do Parlamento Brazileiro. Assembléa Constituinte do Império do Brazil. Anais do Senado. Anno de 1823, Livro 5. Secretaria Especial de Editoração e Publicações — 104 Notamos aqui a clara e natural exclusão dos grupos socialmente subalternizados, de forma que, para ele, a população cativa eram “homens para não serem tyranisados; mas [...] emquanto ao exercicio de direitos na sociedade são considerados cousa, ou propriedade de alguem; como taes as leis os tratão, e reconhecem”.305 Em poucas palavras, ele colocava que o que estava em debate era a cidadania dos homens de bem que gozavam dos privilégios da sociedade, e não o tratamento jurídico das coisas, categoria em que se enquadravam os escravos, que deveria, portanto, ser discutida em outra ocasião. O Sr. Maia, por sua vez, pontuou que deveria ser entendido que os cidadãos brasileiros eram os membros da sociedade do Império. Não caberia, nesse sentido, diferenciar brasileiros e cidadãos brasileiros, já que todos os membros seriam cidadãos. O Sr. França retrucou de modo combativo a argumentação do Sr. Maia, sublinhando a “inconsequência” do conceito por ele proposto, indicando haver diferença entre a “família brasileira” e os habitantes do Brasil, sugerindo que os índios seriam apenas parte da sociedade se abraçassem os costumes da “civilização”.306 Fica clara aqui a visão paternalista e hierárquica do deputado — que representava a perspectiva de boa parte dos parlamentares. Ele não queria os negros africanos e os índios selvagens como parte da família brasileira. A título de esclarecimento, O Sr. Vergueiro enunciou que a emenda proposta asseverava que os índios e os filhos de estrangeiros não eram destinatários da Constituição, ou seja, membros da sociedade brasileira. Intervindo, o Sr. Dias argumentava que a discussão se referia aos cidadãos ativos, de modo que o cidadão brasileiro sem direitos de representação (passivo) seria qualquer um nascido no Brasil de pessoas livres. O SR. DIAS: — A epigraphe anterior a este artigo denominado – cidadãos brazileiros – abrange cidadãos activos, porque de outro modo eu a supporia ir adequada. Sim, convenho que seja cidadão brazileiro sem direitos de representação qualquer nascido no Brazil de pessoas livres, attentas as subsequentes restricções, e clausulas, que se hão da marcar; pois que não havendo clausulas, seria necessario negar o que já se havia concedido. Não convenho que passe a proposição proferida por Subsecretaria de Anais do Senado Federal. Disponível em: https://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/asp/ip_anaisimperio_digitalizados.asp. Acesso em: 10 fev. 2022, p. 211-212. 305 Ibid., p. 212. 306 Ibid., p. 212. 105 um dos illustres preopinantes que me precedeu, e denominou os escravos — cousas.307 A emenda demonstrava que a cidadania moderna, cuja definição era pretendida, divergia da cidadania de outros momentos da história. Ainda que houvesse claro consenso quanto aos limites para a participação política, as diferenças entre os cidadãos foram tomadas como pressuposto do sistema político moderno.308 Foi se sedimentando a noção de que o cidadão passivo era aquele apto ao exercício dos direitos cívicos e que o cidadão ativo gozava dos direitos cívicos e políticos em sua plenitude. Logo, o Projeto de Constituição não concedia a todos o status de cidadãos. Longe de abranger a totalidade de indivíduos, a cidadania era excludente e consagrava a hierarquia e as desigualdades que sobrestavam na sociedade imperial. A potencialidade estava na ideia de que, refletindo sobre o conceito moderno de liberdade, todos os homens livres precisavam, de alguma forma, ser tomados como cidadãos. Predominou a noção de que a incorporação do liberto na condição de cidadão era uma forma de manutenção da ordem social. Integrando o universo dos homens livres, os libertos distanciavam-se dos escravizados e dos indígenas.309 Estes últimos permaneciam excluídos do corpo político, sendo reconhecidos unicamente como habitantes do território imperial.310 Nesse sentido, tal como coloca Paraiso: [...] O conceito de cidadania e do direito a exercê-la era consoante com as idéias do início do XIX que estabeleciam um nexo direto entre cidadania e propriedade privada de terras, sendo a pátria o local 307 BRASIL. Senado Imperial. Annaes do Parlamento Brazileiro. Assembléa Constituinte do Império do Brazil. Anais do Senado. Anno de 1823, Livro 5. Secretaria Especial de Editoração e Publicações — Subsecretaria de Anais do Senado Federal. Disponível em: https://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/asp/ip_anaisimperio_digitalizados.asp. Acesso em: 10 fev. 2022, p. 211. 308 RAUTER PEREIRA, Luisa; SENA, Hebert Faria. A historicidade do político: o debate sobre representação e cidadania no Império Brasileiro (1823-1840). História da Historiografia: International Journal of Theory and History of Historiography, Ouro Preto, v. 9, n. 22, 2017. Disponível em: https://www.historiadahistoriografia.com.br/revista/article/view/1056. Acesso em: 27 fev. 2022, p. 263. 309 Foi estabelecida à época discussão conflituosa sobre preservar os indígenas ou eliminá-los fisicamente. Para alguns segmentos de proprietários de terras a mão-de-obra indígena era vital. In: PARAISO, Maria Hilda B. Construindo o Estado da Exclusão: os índios brasileiros e a Constituição de 1824. Revista de Pesquisa Histórica — CLIO, v. 28, n. 2, p. 1-17, 2010. Disponível em: https://periodicos.ufpe.br/revistas/revistaclio/article/view/24259/19680. Acesso em: 26 fev. 2022, p. 3. 310 SEIXLACK, Alessandra Gonzalez de Carvalho. Entre "índios bravos" e "selvagens da África": os debates sobre a população nacional e a cidadania na Assembléia Constituinte de 1823. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História — ANPUH, São Paulo, jul. 2011. Disponível em: http://www.snh2011.anpuh.org/resources/anais/14/1300189301_ARQUIVO_AlessandraSeixlack- ANPUH.pdf. Acesso em: 26 fev. 2022. 106 escolhido pelo homem para exercer suas atividades econômicas e compartilhar o exercício da liberdade. Concebia-se o Estado-Nação como o resultado da promoção da unidade territorial e da imposição de uma cultura comum, processo resultante de uma atuação violenta de conquista de espaço e de mecanismos de opressão, alianças e acordos usados para eliminar a diversidade étnica. Nesse contexto, as elites pensavam o conjunto das relações interétnicas pela ótica da dominação voltada para a eliminação, de formas várias, das diversidades sócio-culturais em nome da criação da unidade nacional.311 No caso do deputado Montezuma, ele asseverava que cidadãos ativos seriam os brancos descendentes de europeus, e seriam passivos os libertos.312 Ele alertava a Assembleia sobre o problema de conceder cidadania aos escravos sem um projeto de inclusão desses indivíduos.313 Percebemos que a questão dos escravos como pessoas propícias a se tornarem cidadãs aparece, chega a ser discutida, ainda que sem fortes inclinações de colocá-los no mesmo patamar dos homens brancos, que seriam cidadãos antigos. Essa ideia seria abandonada no advento do texto constitucional. Em sequência, o Sr. Dias argumentava que a discussão se referia de fato aos cidadãos ativos, de modo que o cidadão brasileiro sem direitos de representação (passivo) seria qualquer um nascido no Brasil de pessoas livres. Para ele, “Os escravos entre nós estão sujeitos a todas as leis penaes, e criminaes, bem como protegidos pelas mesmas leis para vingar seus direitos, e conservar suas existencias: logo, não são cousas”.314 O Sr. Maciel Costa (Minas Gerais) se pronunciou dizendo que a questão era quase apenas de nome, cidadãos brasileiros ou meramente cidadãos. Seguiu defendendo que nem todos podiam gozar dos direitos sociais. Para ele, tratava-se de uma questão de inclusão de cidadãos ativos e passivos como membros da família brasileira. Pontuou que 311 PARAISO, Maria Hilda B. Construindo o Estado da Exclusão: os índios brasileiros e a Constituição de 1824. Revista de Pesquisa Histórica — CLIO, v. 28, n. 2, p. 1-17, 2010. Disponível em: https://periodicos.ufpe.br/revistas/revistaclio/article/view/24259/19680. Acesso em: 26 fev. 2022, p. 2. 312 MARTINS, Eduardo. A Assembléia Constituinte de 1823 e sua posição em relação à construção da cidadania no Brasil. 2008. 201 f. Tese (Doutorado em História) — Faculdade de Ciências e Letras de Assis, Universidade Estadual Paulista (UNESP), 2008. Disponível em: https://repositorio.unesp.br/handle/11449/103173. Acesso em: 20 fev. 2022, p. 89. 313 Ibid., p. 96 e 125. 314 BRASIL. Senado Imperial. Annaes do Parlamento Brazileiro. Assembléa Constituinte do Império do Brazil. Anais do Senado. Anno de 1823, Livro 5. Secretaria Especial de Editoração e Publicações — Subsecretaria de Anais do Senado Federal. Disponível em: https://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/asp/ip_anaisimperio_digitalizados.asp. Acesso em: 10 fev. 2022, p. 213. 107 como a linguagem “cidadãos” era conhecida por dar nome aos que gozavam de direitos políticos, o termo brasileiro seria preferível, chamando-se de cidadãos exclusivamente o primeiro grupo.315 Assim, da fala do Sr. Maciel da Costa é possível perceber que, para ele, tratava- se de questão terminológica. Era necessária a distinção entre cidadãos ativos e passivos, e nesta segunda categoria seriam colocados o que denominou de “membros da família brasileira”, incluídos os libertos e os índios. O primeiro grupo gozaria dos direitos políticos, ou de convenção, sendo que o termo cidadão deveria ser dado apenas aos detentores de direitos políticos (cidadãos ativos).316 Nesse sentido, tal como clarifica Eduardo Martins, a noção de cidadão passivo “dá-nos indícios do tipo de cidadania que se deseja para a futura nação. Defendido em quase todos os discursos, essa idéia remete ao desejo de passividade na qual a elite procurava submeter essa parcela da população brasileira”.317 Logo, a diferenciação entre brasileiro e cidadão brasileiro traduz-se no contraponto entre cidadãos ativos e passivos, os que tinham renda mínima para exercer os seus direitos políticos, conforme suas posses e os demais, que não alcançavam esse mínimo e tinham direitos e deveres cívicos, devendo respeitar o dito convívio em sociedade, como cidadãos passivos.318 A argumentação de Maciel da Costa sobre o debate da cidadania realçava a oposição entre o mundo branco e o mundo negro, explicitando um problema racial, descrevendo que os descendentes de africanos gozavam de uma suspeita que os estrangeiros não gozavam. A oposição desdobra-se na questão da segurança política. Contrapondo-se a Maciel da Costa, Silva Lisboa (Bahia) trouxe o exemplo de São 315 BRASIL. Senado Imperial. Annaes do Parlamento Brazileiro. Assembléa Constituinte do Império do Brazil. Anais do Senado. Anno de 1823, Livro 5. Secretaria Especial de Editoração e Publicações — Subsecretaria de Anais do Senado Federal. Disponível em: https://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/asp/ip_anaisimperio_digitalizados.asp. Acesso em: 10 fev. 2022, p. 213. 316 MARTINS, Eduardo. A Assembléia Constituinte de 1823 e sua posição em relação à construção da cidadania no Brasil. 2008. 201 f. Tese (Doutorado em História) — Faculdade de Ciências e Letras de Assis, Universidade Estadual Paulista (UNESP), 2008. Disponível em: https://repositorio.unesp.br/handle/11449/103173. Acesso em: 20 fev. 2022, p. 96. 317 Ibid., p. 102. 318 GOMES, Jônatas Roque Mendes. O conceito de "cidadão" nos debates da Assembléa Geral Constituinte e Legislativa do Império do Brasil - 1823. Revista Escrita Da História — REH, ano IV, v. 4, n. 7, p. 11–37, jan./jun. 2017. Disponível em: https://www.escritadahistoria.com/index.php/reh/article/view/69. Acesso em: 26 fev. 2022, p. 5. 108 Domingos, defendendo um projeto que tinha como elemento central a subordinação de negros e negras.319 De acordo com o Sr. Montezuma, estava marcado o que era necessário: quem eram os “homens” que compunham a sociedade e gozavam de direitos cívicos (isto é, seus membros ou cidadãos passivos). Pontuou que não era a lei da natureza que fazia diferença entre os homens, colocando-os em condição mesquinha, mas que as considerações feitas eram marcadas pela lei do interesse geral e comum utilidade.320 Na sua fala, é possível inferir a influência das ideias de Rousseau acerca das desigualdades entre os homens, colocando que essas diferenças que estavam sendo discutidas não eram aquelas naturais. Aqui, novamente se vê uma potencialidade de mudança, ainda que sutil. As inclinações mais progressistas para a época não passavam sem oposições. O Sr. Albuquerque, deputado pernambucano, lembrou diante de seus colegas, na sessão de 25 de setembro de 1823,321 que na Grécia os libertos não eram cidadãos, nem os seus filhos, visto que não eram gregos. Tentou convencer a Assembleia do “perigo” da extensão da cidadania aos libertos, particularmente os não nascidos no Brasil.322 Foi vitoriosa na Constituinte a interpretação moderna segundo a qual “cidadão” era o membro do corpo social protegido pelas leis do país, ainda que nem todos estivessem habilitados a exercer os direitos políticos, isto é, gozar plenamente desses direitos como cidadãos ativos.323 Nas sessões de 27 a 30 de setembro de 1823 o assunto estendeu-se, com especial atenção ao parágrafo 6º do Art. 5º, que declarava brasileiros os escravos que obtivessem carta de alforria, considerando o ato de emancipação como o de naturalização. Nesse âmbito, para o deputado Pedro José da Costa Barros (Ceará), não era cabível o título de 319 QUEIROZ, Marcos Vinícius Lustosa Queiroz. Constitucionalismo brasileiro e o Atlântico negro: a experiência constitucional de 1823 diante da Revolução Haitiana. 2017. 200 f. Dissertação (Mestrado em Direito) — Faculdade de Direito, Universidade de Brasília (UnB), Brasília, 2017. Disponível em: https://repositorio.unb.br/handle/10482/23559. Acesso em: 10 fev. 2022, p. 164-175. 320 BRASIL. Senado Imperial. Annaes do Parlamento Brazileiro. Assembléa Constituinte do Império do Brazil. Anais do Senado. Anno de 1823, Livro 5. Secretaria Especial de Editoração e Publicações — Subsecretaria de Anais do Senado Federal. Disponível em: https://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/asp/ip_anaisimperio_digitalizados.asp. Acesso em: 10 fev. 2022, p. 213. 321 Ibid., p. 222-234. 322 RAUTER PEREIRA, Luisa; SENA, Hebert Faria. A historicidade do político: o debate sobre representação e cidadania no Império Brasileiro (1823-1840). História da Historiografia: International Journal of Theory and History of Historiography, Ouro Preto, v. 9, n. 22, 2017. Disponível em: https://www.historiadahistoriografia.com.br/revista/article/view/1056. Acesso em: 27 fev. 2022, p. 263. 323 MAMIGONIAN, Beatriz Gallotti. Os direitos dos libertos africanos no Brasil oitocentista: entre razões de direito e considerações políticas. História (São Paulo) [online], v. 34, n. 2, p. 181-205, 2015. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1980-436920150002000064. Acesso em: 30 set. 2021, p. 188- 192. 109 cidadão brasileiro a todo liberto e deveria ser prezado quem tinha um emprego ou ofício, conforme se vê na fala abaixo. O SR. COSTA BARROS: — Eu nunca poderei conformar-me a que se dê o titulo de cidadão brazileiro indistinctamente a todo o escravo que alcançou carta de alforria. Negros boçaes, sem officio, nem beneficio, não são, no meu entender, dignos desta honrosa prerogativa; eu os encaro antes como membros damnosos á sociedade á qual vêm servir de peso quando lhe não causem males.324 Para o deputado, ser cidadão era uma honraria e o trabalho escravo sequer era trabalho. Fica evidente a sua intenção de que os libertos não deveriam ter qualquer porta de inclusão no núcleo social ou nos direitos da cidadania, fossem eles brasileiros ou não. O Sr. Carneiro da Cunha, por sua vez, não compreendia por que os nascidos no território brasileiro seriam mais “felizes” do que os africanos, sendo assim injustificada sua exclusão, afinal para ele “o africano não tem quem o proteja, desde que chega é sempre desgraçado, e o crioulo nascendo no seio d’uma familia gosa de algumas comodidades”.325 Mais tendente ao posicionamento de Costa Barros, o Sr. Almeida Albuquerque seguia inconformado, adicionando a religião à problematização, dizendo: “Fallará o artigo tambem dos escravos que vêm da costa d’Africa? Não lhes obstará o serem elles pagãos, e outros idolatras?”.326 Já o deputado Silva Lisboa insistia que o sentido da disposição deveria ser mais amplo, podendo ser cidadão brasileiro o escravo que obtivesse alforria. Conforme ele, “Quando se trata de causa liberal, não é possivel guardar silencio” devendo a cidadania abranger “não só o escravo que obteve de seu senhor a carta de alforria, mas também o que adquirio a liberdade por qualquer titulo legitimo”.327 Venceu, 324 BRASIL. Senado Imperial. Annaes do Parlamento Brazileiro. Assembléa Constituinte do Império do Brazil. Anais do Senado. Anno de 1823, Livro 5. Secretaria Especial de Editoração e Publicações — Subsecretaria de Anais do Senado Federal. Disponível em: https://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/asp/ip_anaisimperio_digitalizados.asp. Acesso em: 10 fev. 2022, p. 255. 325 Ibid., p. 259. 326 Ibid., p. 259. 327 BRASIL. Senado Imperial. Annaes do Parlamento Brazileiro. Assembléa Constituinte do Império do Brazil. Anais do Senado. Anno de 1823, Livro 5. Secretaria Especial de Editoração e Publicações — Subsecretaria de Anais do Senado Federal. Disponível em: https://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/asp/ip_anaisimperio_digitalizados.asp. Acesso em: 10 fev. 2022, p. 260. 110 na Constituinte, a proposta de Silva Lisboa, segundo a qual os libertos que adquirissem sua liberdade por qualquer título legítimo seriam cidadãos.328 A Constituição de 1824 estendeu a cidadania aos libertos nascidos no Brasil. Entretanto, ambiguidades e exclusões demonstravam a relutância da elite política no reconhecimento de africanos, índios e escravos como membros da nova nação.329 O texto igualou nacionais a cidadãos, reconheceu a cidadania dos libertos nascidos no país e deixou os libertos africanos sem estatuto definido. Não havia delimitação clara entre “cidadania” e “nacionalidade”, que se confundiam em alguns momentos. A Constituição consolidou a ideia de que a cidadania não poderia ser conferida apenas pelo local de nascimento — o princípio do ius soli. Escravos e índios foram excluídos do seu espectro: os primeiros por sua condição de escravizados e os segundos por carecerem de “civilização”, na perspectiva das elites políticas.330 Uma interpretação lógica poderia levar à conclusão de equiparar os libertos africanos aos estrangeiros, porém, a legislação imperial sobre os estrangeiros evidenciava que eles permaneceram em um limbo.331 Exemplo de que os libertos africanos não eram considerados estrangeiros era o Regulamento de Atribuições da Polícia de 1842.332 Até aquele momento, as instruções para a Intendência da Polícia da Corte eram que se mantivesse o controle sobre a entrada e saída de estrangeiros, matriculando-os em livros próprios. Porém, observando as regras sobre a emissão de passaportes, o “lugar” dos libertos africanos ficava claro. Tinha-se artigos em separado do mencionado Regulamento333 que previam que os cidadãos brasileiros podiam viajar dentro do Império sem passaporte, os estrangeiros precisavam de passaporte e os escravos africanos livres e libertos precisavam apresentar passaporte ainda que em companhia de seus “senhores ou 328 MAMIGONIAN, Beatriz Gallotti. Os direitos dos libertos africanos no Brasil oitocentista: entre razões de direito e considerações políticas. História (São Paulo) [online], v. 34, n. 2, p. 181-205, 2015. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1980-436920150002000064. Acesso em: 30 set. 2021, p. 188- 192. 329 MIKI, Yuko. Frontiers of Citizenship. A Black and Indigenous History of Postcolonial Brazil. Cambridge: Cambridge University Press, 2018, p. 29. 330 Ibid., p. 30. 331 MAMIGONIAN, op. cit., p. 195-196. 332 MAMIGONIAN, loc. cit. 333 BRASIL. Regulamento nº 120, de 31 de Janeiro de 1842. Regula a execução da parte policial e criminal da Lei nº 261 de 3 de Dezembro de 1841. Coleção das Leis do Império do Brasil, 1842. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/regulamentos/r120.htm#:~:text=REGULAMENTO%20N%C2% BA%20120%2C%20DE%2031,3%20de%20Dezembro%20de%201841. Acesso em: 20 fev. 2022. 111 amos”, salvo se estivessem transitando entre fazendas. Os africanos libertos não eram cidadãos nem estrangeiros.334 Basicamente, a escravidão em si não era um ponto demasiadamente destoante na discussão da cidadania, mostrando-se essencial para a separação entre o mundo dos escravos e dos livres. Assim, o problema enfrentado era a situação dos libertos nascidos no Brasil. Eles se tornaram cidadãos, contudo, não gozavam de direitos políticos plenos, embora tivessem direito de voto nas eleições primárias (Art. 91 da Constituição de 1824). Isso desde que possuíssem renda mínima de cem-mil-reis (Art. 91, V). O “lugar” inexistente dos libertos africanos no Império implicava uma situação jurídica ambígua,335 visto que frente à concessão de alguns direitos, limitações políticas e econômicas eram inseridas para afastá-los. O seu afastamento era visto como uma questão de “segurança nacional”, para proteger os verdadeiros cidadãos brasileiros. A Constituição acabou, assim, mantendo implícita a diferença entre cidadãos ativos — com direitos de representação — e cidadãos passivos — que estavam aptos a fruir dos direitos cívicos. O Art. 6º da Constituição de 1824 trouxe na definição de cidadãos os ingênuos (nascidos livres) ou libertos, assim como os filhos de pai ou mãe brasileiros nascidos no exterior, os portugueses residentes no Brasil que houvessem aderido à causa da Independência e os estrangeiros naturalizados. Por definição, todos os escravos eram não cidadãos, admitindo-se a aquisição da cidadania àqueles que se alforriassem, porém, limitada aos nascidos no Brasil.336 Art. 6. São Cidadãos Brazileiros I. Os que no Brazil tiverem nascido, quer sejam ingenuos, ou libertos, ainda que o pai seja estrangeiro, uma vez que este não resida por serviço de sua Nação. II. Os filhos de pai Brazileiro, e Os illegitimos de mãi Brazileira, nascidos em paiz estrangeiro, que vierem estabelecer domicilio no Imperio. III. Os filhos de pai Brazileiro, que estivesse em paiz estrangeiro em sorviço do Imperio, embora elles não venham estabelecer domicilio no Brazil. IV. Todos os nascidos em Portugal, e suas Possessões, que sendo já residentes no Brazil na época, em que se proclamou a Independencia 334 MAMIGONIAN, Beatriz Gallotti. Os direitos dos libertos africanos no Brasil oitocentista: entre razões de direito e considerações políticas. História (São Paulo) [online], v. 34, n. 2, p. 181-205, 2015. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1980-436920150002000064. Acesso em: 30 set. 2021, p. 195- 196. 335 Ibid., p. 183. 336 Ibid., p. 184. 112 nas Provincias, onde habitavam, adheriram á esta expressa, ou tacitamente pela continuação da sua residencia. V. Os estrangeiros naturalisados, qualquer que seja a sua Religião. A Lei determinará as qualidades precisas, para se obter Carta de naturalisação.337 Interessante sublinhar que o Art. 1º da Constituição colocava que o Império era uma “associação Politica de todos os Cidadãos Brazileiros” — fazendo referência à ideia de pacto social — que faziam, assim, parte de uma nação “livre, e independente, que não admitte com qualquer outra laço algum de união, ou federação, que se opponha á sua Independencia”.338 O artigo reafirmava as ideias levantadas nos debates parlamentares: a submissão da colônia à metrópole como condição de escravidão e a delimitação dos “privilégios e comodidades” da sociedade aos cidadãos (ativos) brasileiros, os homens brancos, livres e proprietários. Para os indígenas, foi colocado requisito de passagem para o estado civil do pacto social (da condição de brasileiros para cidadãos): eles deveriam deixar de ser silvícolas, isto é, abandonar a sua comunidade e viver na “civilização”. Era como se esses indivíduos não participassem do pacto social e não reconhecessem o Império ou sua autoridade.339 Não eram, assim, considerados “cidadãos brasileiros” escravos, mulheres, índios e homens sem a renda mínima exigida para votarem. A cidadania operou, tal como afirma Queiroz, como “dispositivo regulador de passagem do corpo racialmente marcado do escravo para uma presença subordinada como cidadão dentro do mundo branco do ‘trabalho livre’”.340 Essa frase ilustra o contexto descrito: um mundo no qual ninguém era cidadão, existindo apenas as categorias dos homens de bem, donos do poder, e dos que não tinham nada. Diante da ordem jurídica que estava se formando, houve a percepção de que a liberdade era um conceito moderno fundamental para se ter uma Constituição liberal. Com isso, tinha-se o problema da 337 BRASIL. [Constituição (1824)]. Constituição Política do Império do Brazil (de 25 de março de 1824). Constituição Política do Império do Brasil, elaborada por um Conselho de Estado e outorgada pelo Imperador D. Pedro I, em 25.03.1824. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao24.htm. Acesso em: 15 fev. 2021, artigo 6º. 338 Ibid., artigo 1º. 339 PARAISO, Maria Hilda B. Construindo o Estado da Exclusão: os índios brasileiros e a Constituição de 1824. Revista de Pesquisa Histórica — CLIO, v. 28, n. 2, p. 1-17, 2010. Disponível em: https://periodicos.ufpe.br/revistas/revistaclio/article/view/24259/19680. Acesso em: 26 fev. 2022, p. 3. 340 QUEIROZ, Marcos Vinícius Lustosa Queiroz. Constitucionalismo brasileiro e o Atlântico negro: a experiência constitucional de 1823 diante da Revolução Haitiana. 2017. 200 f. Dissertação (Mestrado em Direito) — Faculdade de Direito, Universidade de Brasília (UnB), Brasília, 2017. Disponível em: https://repositorio.unb.br/handle/10482/23559. Acesso em: 10 fev. 2022, p. 167. 113 cidadania. Quem eram os cidadãos? Os homens brancos livres, homens de bem, foram automaticamente colocados nessa categoria, sem muito esforço. Mas e os demais? Lidar com as questões da cidadania e da liberdade significava categorizar os grupos subalternizados e enfrentar também as ameaças do fim do tráfico negreiro. A saída foi uma separação legal dos grupos a partir da cidadania: tacitamente, os homens de bem — brancos, livres e com recursos financeiros — passaram a ser os cidadãos ativos, enquanto os demais, limitados pela situação da liberdade, raça e nacionalidade eram cidadãos passivos. Os escravos coisificados sequer tiveram lugar no texto constitucional, versando como uma “presença ausente”, isto é, havia uma clareza quanto ao paradoxo da liberdade e dependência do país em relação à escravidão, mas optou-se pelo silêncio constitucional. 2.2.4 Consequências do fim da Constituinte: quais os rumos da nova ordem jurídica? No início do mês de novembro de 1823, grande clamor foi gerado em torno do espancamento do boticário Davi Pamplona por dois oficiais Portugueses. O Sentinela da Liberdade, de Cipriano Barata, havia divulgado um texto que acusava oficiais portugueses de traidores da pátria, conteúdo que foi atribuído a Pamplona pelos agressores. Na sequência, o agredido solicitou providências à Assembleia Constituinte, pelo bem da segurança pública e individual dos cidadãos.341 Sobre isso, pronunciou-se Antônio Carlos, enaltecendo a importância de se apreciar a matéria e colocando que se tornava evidente a divisão da nação em dois partidos — o português e o brasileiro.342 O episódio ficou conhecido por contribuir para o afastamento dos irmãos Andrada e impulsionar a dissolução da assembleia. Os tumultos se intensificaram quando, em novembro de 1823, discutiu-se projeto sobre a liberdade de imprensa e a sessão da Assembleia teve que ser suspensa. Andrada Machado propôs no dia subsequente que a Assembleia se declarasse em sessão permanente e a proposta foi aprovada na reunião conhecida como “A noite da Agonia”. 341 BRASIL. Câmara dos Deputados. Dossiê/Processo 325 — Parecer n. 60 sobre o insulto feito a Davi Pamplona Corte Real. Arquivo Histórico. Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Império do Brasil de 1823. Pareceres. Disponível em: https://arquivohistorico.camara.leg.br/index.php/parecer-n- 60-sobre-o-insulto-feito-davi-pamplona-corte-real. Acesso em: 20 fev. 2022. 342 VASCONCELOS, Diego de Paiva. O Liberalismo na Constituição Brasileira de 1824. 2008. 83 f. Dissertação (Mestrado em Direito Constitucional) — Universidade de Fortaleza (UNIFOR), Fortaleza, 2008. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/teste/arqs/cp049092.pdf. Acesso em: 10 dez. 2021, p. 164. 114 No dia 12 de novembro, o edifício de “Cadeia Velha”, sede da Assembleia, foi cercado pela tropa imperial e os Constituintes deixaram o local, dentre presos e exilados.343 Até este dia, apenas 23 dos 272 artigos foram aprovados, além de 6 dos 38 projetos de lei propostos.344 D. Pedro I encontrou na dissolução uma forma de suprimir oposições. O que também encontrou, na maioria da elite brasileira, foi apoio (ainda que não inconteste) e uma tendência fortemente conservadora, que corroborou com o golpe branco. O monarca foi intolerante aos sobressaltos345 e o Exército assumiu papel fundamental para a “manutenção da ordem”, de maneira que entre os anos de 1822 e 1823 as tropas do Imperador patrulharam o território nacional, maquiando pontos de resistência.346 Os espectros da Revolução Francesa e da rebelião haitiana apresentavam uma ameaça ao poder do Imperador e o perigo de se perder o controle das massas.347 Quanto à Constituinte, os debates demostravam que as elites brasileiras eram antidemocráticas. Ainda assim, o projeto de Antônio Carlos apresentava ideias mais progressistas para a época, o que incluía a emancipação gradual dos escravos. Já na primeira reunião da Assembleia nacional eclodiu o conflito entre o Imperador e as elites brasileiras, que criticavam o seu favoritismo com os portugueses e a falta de liberdade de imprensa, também protestando contra a prisão de dissidentes políticos do governo. A tensão aumentou mediante os debates sobre o direito de veto do imperador. O conflito terminou momentaneamente em novembro de 1823, quando o Imperador enviou as tropas para dissolver a Assembleia.348 No caso dos irmãos Andrada — Bonifácio, Antônio Carlos e Martim Francisco —, eles estavam distantes do núcleo político mais próximo ao Imperador e tinham muitos desafetos, assumindo um “caminho do meio” entre ideias mais progressistas e 343 AGÊNCIA CÂMARA DE NOTÍCIAS. Conheça a história da Assembleia Constituinte de 1823. 17 out. 2018, 18:30. Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/546341-conheca-a-historia-da- assembleia-constituinte-de-1823/. Acesso em: 15 fev. 2022. 344 GOMES, Jônatas Roque Mendes. O conceito de "cidadão" nos debates da Assembléa Geral Constituinte e Legislativa do Império do Brasil - 1823. Revista Escrita Da História — REH, ano IV, v. 4, n. 7, p. 11–37, jan./jun. 2017. Disponível em: https://www.escritadahistoria.com/index.php/reh/article/view/69. Acesso em: 26 fev. 2022, p. 18-19. 345 VASCONCELOS, Diego de Paiva. O Liberalismo na Constituição Brasileira de 1824. 2008. 83 f. Dissertação (Mestrado em Direito Constitucional) — Universidade de Fortaleza (UNIFOR), Fortaleza, 2008. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/teste/arqs/cp049092.pdf. Acesso em: 10 dez. 2021, p. 48-57. 346 Ibid., p. 58. 347 COSTA, Emília Viotti da. The Brazilian Empire: myths & histories. Revised Edition. The University of North Carolina Press: Chapel Hill and London, 2000, p. 53. 348 Ibid., p. 57-60. 115 absolutismo. Porém, após 1823, passaram a sustentar o legislativo acima dos outros poderes.349 Com a dissolução da Assembleia, uma série de levantes aconteceram, incluindo a Confederação do Equador, no Nordeste. Frei Caneca atuou como porta-voz do conflito entre as elites e o Imperador argumentando em seu periódico, o Typhis Pernambucano, que as condições do Brasil, incluindo sua extensão geográfica, variedade de recursos e população apresentavam mais compatibilidade com uma federação do que com um governo centralizado.350 Assim como assevera Queiroz, a Constituinte assumiu uma função frágil e instável, atuando como instrumento de transição ao Brasil Independente. Ao passo que contribuiu para trazer elementos para a formação de um novo Estado-nação, o seu alcance foi limitado no âmbito de medidas liberais igualitárias. Uma sombra revolucionária pairava, desse modo, sobre os parlamentares, constantemente invocada em seus discursos, mas não livre de temores.351 Ao invés de ser convocada uma nova Constituinte, foi instituída comissão especial pelo Imperador, um Conselho de Estado formado por 10 membros, que elaborou outro projeto. Este não foi votado por uma Assembleia Nacional, apenas outorgado no início de 1824.352 José Severiano Maciel da Costa, José Joaquim Carneiro de Campos e Antônio Luís Pereira da Cunha fizeram parte do Conselho responsável por elaborar o novo projeto, na qualidade de Ministro do Império e Conselheiros, respectivamente.353 Apesar dos fatos que se sucederam, o trabalho realizado pela Assembleia não foi inteiramente descartado. Houve incorporação parcial do projeto da Assembleia à Constituição de 1824, além dos projetos de lei, sete requerimentos, 157 indicações, 237 pareceres, um Regimento interno e a Proclamação aos Povos do Brasil, que foram 349 RIBEIRO, Gladys Sabina. Nação e cidadania no jornal Tamoio. Algumas considerações sobre José Bonifácio, sobre a Independência e a Constituinte de 1823. In: RIBEIRO, Gladys Sabina [org.]. Brasileiros e cidadãos: modernidade política 1822-1930. São Paulo: Alameda, 2008, p. 37 e 52. 350 COSTA, Emília Viotti da. Da Monarquia à República: momentos decisivos. 6. ed. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1999, p. 144. 351 QUEIROZ, Marcos Vinícius Lustosa Queiroz. Constitucionalismo brasileiro e o Atlântico negro: a experiência constitucional de 1823 diante da Revolução Haitiana. 2017. 200 f. Dissertação (Mestrado em Direito) — Faculdade de Direito, Universidade de Brasília (UnB), Brasília, 2017. Disponível em: https://repositorio.unb.br/handle/10482/23559. Acesso em: 10 fev. 2022, p. 130. 352 LOPES, Luciana Suarez. Notas Sobre a Assembleia Constituinte de 1823 e a Elaboração do Projeto Constitucional. Economia & história: relatos de pesquisa, informações fipe, p. 51-55, mar. 2018. Disponível em: https://downloads.fipe.org.br/publicacoes/bif/bif450-51-55.pdf. Acesso em: 15 fev. 2022, p. 53. 353 SCHULTZ, Kirsten. La independencia de Brasil, la ciudadanía y el problema de la esclavitud: la Assembléia Constituinte de 1823. In: RODRÍGUEZ, Jaime E. [coord.]. Revolución, independência y las nuevas naciones de America. Madrid: Fundación MAPFRE TAVERA, 2005, p. 426. 116 votados pelos constituintes.354 O projeto constitucional da Assembleia foi considerado por muitos — ao exemplo de Melo (1863)355 — progressista para a época, o que não pode ser dito com relação ao texto de 1824. Essa mudança de rumos, de acordo com Lopes,356 está atrelada à constante reação do governo imperial, como se fosse ainda governo metropolitano. Construiu-se, assim, um imaginário em torno da Independência, logo dissipado com uma boa dose de autoritarismo. A Constituinte teve apenas seis meses de existência, entretanto, isso não anula a sua relevância no processo político que estava em curso. Das interações entre um corpo legislativo eleito e um Poder Executivo de fortes matrizes patrimoniais, a diversidade de posicionamentos resumiu-se na dicotomia entre a modernidade e a tradição nas discussões constitucionais. A construção do Estado-nação do Brasil é resultado da expressão de processos político-jurídicos específicos, que estão relacionados a transformações de caráter universalizante, em especial, o liberalismo.357 Vimos que o caráter generalizante das ideias liberais foi utilizado para a união de variados setores sociais em prol da Independência. Dentre as tendências marcantes nesse processo, o liberalismo heroico e suas reminiscências expressava-se nos posicionamentos radicais, traduzindo-se em algo mais próximo do liberalismo das revoluções do Atlântico. Porém, não foi exatamente sobre essa base que se solidificou o Direito brasileiro, de forma que a dissolução da Constituinte representou um marco na fundação de uma ordem jurídica com base na violência, na arbitrariedade e no poder pessoal. Instituía-se um Estado liberal sob o aspecto econômico e monárquico constitucional sob o aspecto político, em cima de pilares de uma estrutura política tirânica, de maneira que a Constituição remanesceu como um produto híbrido entre liberalismo e absolutismo.358 Considerando as tendências que se fizeram presentes na Assembleia, o 354 AGÊNCIA CÂMARA DE NOTÍCIAS. Conheça a história da Assembleia Constituinte de 1823. 17 out. 2018, 18:30. Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/546341-conheca-a-historia-da- assembleia-constituinte-de-1823/. Acesso em: 15 fev. 2022. 355 MELO, Francisco Ignacio Marcondes Homem de. A constituinte perante a história. Rio de Janeiro: Typographia da actualidade, 1863. 356 LOPES, Luciana Suarez. Notas Sobre a Assembleia Constituinte de 1823 e a Elaboração do Projeto Constitucional. Economia & história: relatos de pesquisa, informações fipe, p. 51-55, mar. 2018. Disponível em: https://downloads.fipe.org.br/publicacoes/bif/bif450-51-55.pdf. Acesso em: 15 fev. 2022, p. 53. 357 RODRIGUES, Celso. Assembleia Constituinte de 1823: ideias políticas na fundação do Império brasileiro. Curitiba: Juruá, 2008, p. 13-14. 358 VASCONCELOS, Diego de Paiva. O Liberalismo na Constituição Brasileira de 1824. 2008. 83 f. Dissertação (Mestrado em Direito Constitucional) — Universidade de Fortaleza (UNIFOR), Fortaleza, 2008. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/teste/arqs/cp049092.pdf. Acesso em: 10 dez. 2021, p. 63-64. 117 resultado não seria uma Constituição democrática, o que pode ser inferido pela sua composição e discursos articulados. O que mudou foi a arbitrariedade escrita dentro da própria estrutura e arcabouço político do Império, dando ao Imperador poderes de exceção. A dissolução foi um meio de suprimir oposições — o que não aconteceu sem resistência e insurreições nas Províncias, ao exemplo das revoltas federalistas —, tanto que remanesceram presos e exilados os parlamentares que desagradaram o Imperador. Do mesmo modo, apesar da barganha realizada pelo Imperador com as tendências liberais “moderadas”, a dominação do Imperador não foi aceita de bom grado, tanto que ele seria forçado a abdicar subsequentemente. Os ganhos não foram, todavia, nulos. A Assembleia exerceu importante papel na consolidação das instituições, bem como no gerenciamento da instabilidade política e fragmentação territorial. Os debates resultaram no enriquecimento do conceito de cidadania e potencialidades de mudanças também estiveram presentes nas pautas. Exemplo disso é a Representação á Assemblea Geral Constituinte e Legislativa do Império do Brasil sobre a Escravatura, elaborada por Bonifácio para apresentação na Constituinte, antes de sua dissolução, na qual apresentava 32 artigos que compunham uma proposta de abolição do tráfico e do que chamou de emancipação gradual imperiosa para qualquer que fosse a sorte futura do Brasil, cortando o “cancro mortal” da escravidão.359 Para ele, “Se os negros são homens como nós, e não formão huma espécie de brutos animaes; se sentem e pensão como nós, que quadro de dor e de miséria não apresentam elles á imaginação de qualquer homem sensível e christão?”.360 Curiosamente, Bonifácio tinha muitos posicionamentos conservadores e autocráticos, mas trouxe algumas ideias avançadas para a época, ainda que o projeto não tenha sido concretizado após os acontecimentos vinculados à Constituinte. Tínhamos, assim, potencialidades, cujo debate não foi levado à frente com a dissolução. Sem a Assembleia, a situação da liberdade teria permanecido ainda mais precária: ela possibilitou os debates sobre os conceitos de cidadania e, de maneira mais incidental, 359 No texto, Bonifácio propunha a cessação do comércio dentro de 4 a 5 anos, com sanções para os infratores (Art. 1º). Tinha-se normas para regular a alforria (como nos artigos 3º e seguintes) e o impedimento de proibição do casamento dos escravos pelos senhores (Art. 20). No texto do Art. 40, colocava-se que não poderia haver civilização nem sólida riqueza sem liberdade individual. In: BONIFÁCIO, Jose Bonifácio D’Andrada e Silva. Representação à Assemblea Geral Constituinte e Legislativa do Império do Brasil sobre a escravatura. Paris: Na Typhographia de Firmin Didot, 1825. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4674340/mod_resource/content/1/SILVA%2C%20J.Bonifaci o%20A.%20e.%20Sobre%20a%20escravatura.pdf. Acesso em: 10 fev. 2022. 360 Ibid., p. 9. 118 liberdade para falar quem eram os cidadãos do país e quais eram os seus direitos. Isso os obrigou a falar da humanidade dos escravos, ainda que não tenham resultado normas concretas sobre isso. 2.3 DOIS PASSOS A FRENTE E UM PASSO ATRÁS: ARBITRARIEDADE, AUTORITARISMO E IDEIAS LIBERAIS NA CONSTITUIÇÃO OUTORGADA DE 1824 Mesmo com as arbitrariedades do Imperador, que culminaram na dissolução da Constituinte e na outorga da Constituição de 1824, as ideias liberais não foram liquidadas e foi mantida a preferência pela monarquia constitucional. Assim como assevera Paim, o liberalismo era enaltecido ou inimizado pelo governo, conforme seus interesses.361 A Carta de 1824, ainda que representasse a expressão dos interesses pessoais do Imperador, exprimindo o seu autoritarismo, não deixava de trazer em suas disposições resquícios das lutas anteriores e dos anseios populares. O manifesto Crítica à Constituição outorgada (1824) do pernambucano Frei Caneca — revolucionário de 1817362 — firmava que “O poder moderador de nova invenção maquiavélica é a chave mestra da opressão da nação brasileira e o garrote mais forte da liberdade dos povos”.363 Caneca também falava da Constituição como ilegalmente feita, confeccionada de modo avesso ao inicialmente proclamado e jurado. A criação do Império no Brasil foi acompanhada da promessa de uma Constituição escrita que expressasse a soberania da nação, que definisse direitos e liberdades dos cidadãos dentro de um quadro institucional de freios e contrapesos.364 Entretanto, após os volumosos debates políticos na Constituinte, com a sua dissolução, o Conselho nomeado 361 PAIM, Antônio. História do liberalismo brasileiro. São Paulo: Mandarim, 1998, p. 35-36. 362 A Revolução Pernambucana de 1817 caracterizou-se como movimento anticolonial, de viés republicano e separatista, que teve como um de seus motores o desejo da Independência, alcançando elevado número de partidários e sendo reprimidos por milicianos da Bahia e do Alagoas. In: ALARCÃO, Janine Pereira de Souza. O saber e o fazer: República, Federalismo e Separatismo na Confederação do Equador. 2006. 109 f. Dissertação (Mestrado em História) — Instituto de Ciências Humanas, Departamento de História, Universidade de Brasília, Brasília, 2006. Disponível em: https://repositorio.unb.br/bitstream/10482/2509/1/Dissertacao_Janine_Alarcao.pdf. Acesso em: 22 fev. 2022. 363 CANECA, Frei. Crítica à Constituição outorgada [1824]. In: JUNQUEIRA, Celina [ed.]. Textos Didáticos do Pensamento Brasileiro. v. 3. Rio de Janeiro: Editora Documentário, 1976. Disponível em: http://www.cdpb.org.br/antigo/ensaios_politicos_frei_caneca.pdf. Acesso em: 2 fev. 2022, p. 100. 364 SCHULTZ, Kirsten. La independencia de Brasil, la ciudadanía y el problema de la esclavitud: la Assembléia Constituinte de 1823. In: RODRÍGUEZ, Jaime E. [coord.]. Revolución, independência y las nuevas naciones de America. Madrid: Fundación MAPFRE TAVERA, 2005, p. 426. 119 pelo Imperador365 elaborou o novo projeto, que foi distribuído às Câmaras Municipais do Império para que se manifestassem. Porém, no clima de tensão instaurado, as Câmaras não exerceram grande influência para a realização de modificações,366 apesar de algumas manifestações, como foi o caso da Câmara de Recife, por meio da qual argumentou-se que o Imperador não tinha poderes para escrever uma Constituição.367 Outorgada a Constituição de 1824, além de reafirmar o Conselho de Estado, a Carta trazia um sistema político excessivamente centralizado, com a subordinação das províncias ao governo central e dos governos municipais às províncias. O Judiciário, a Igreja e o Exército foram colocados à mercê do controle dos políticos do Conselho.368 A Carta de 1824 perdurou de 25 de março de 1824 a 15 de novembro de 1889, representando a Constituição que vigorou por mais tempo no país. Apesar de ter apresentado aspectos liberais, ela não concebeu um liberalismo mais incisivo, como o presente no projeto de Antônio Carlos.369 Como atributos de natureza liberal “moderada”, o texto estabelecia uma monarquia constitucional e restringia as noções de liberdade e igualdade aos grupos elitizados.370 O Conselho de Estado instituído por D. Pedro I era composto por dez membros, além dos ministros de Estado,371 considerados conselheiros natos.372 O órgão foi 365 O projeto da Constituição de 1824, redigido pelo conselho de políticos designados por D. Pedro I, foi assinado por João Severiano Maciel da Costa, Luiz José de Carvalho e Mello, Clemente Ferreira França, Marianno José Pereira da Fonseca, João Gomes da Silveira Mendonça, Francisco Villela Barboza, Barão de Santo Amaro, Antonio Luis Pereira da Cunha, Manoel Jacinto Nogueira da Gama e José Joaquim Carneiro de Campos. Muitos deles tornaram-se posteriormente senadores do Império. In: BRASIL. Senado Federal. Projecto de Constituição para o Imperio do Brasil. Institucional. Biblioteca Digital. Rio de Janeiro: Na Typ. Nacional, 1823. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/item/id/185587. Acesso em: 20 fev. 2022. 366 VASCONCELOS, Diego de Paiva. O Liberalismo na Constituição Brasileira de 1824. 2008. 83 f. Dissertação (Mestrado em Direito Constitucional) — Universidade de Fortaleza (UNIFOR), Fortaleza, 2008. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/teste/arqs/cp049092.pdf. Acesso em: 10 dez. 2021, p. 60-61. 367 LEITE, Renato Lopes. Republicanos e Libertários: pensadores radicais da Independência — Rio de Janeiro (1822). 1997. 468 f. Tese (Doutorado em História) — Universidade Federal do Paraná (UFPR), Curitiba, 1997. Disponível em: https://www.acervodigital.ufpr.br/bitstream/handle/1884/27029/T%20- %20LEITE,%20RENATO%20LOPES.pdf?sequence=1. Acesso em: 10 fev. 2022, p. 91. 368 COSTA, Emília Viotti da. The Brazilian Empire: myths & histories. Revised Edition. The University of North Carolina Press: Chapel Hill and London, 2000, p. 59. Tradução livre. 369 VASCONCELOS, op. cit., p. 62. 370 NEVES, Lucia Maria Bastos Pereira das. Nas margens do liberalismo: voto, cidadania e constituição no Brasil (1821-1824). Revista de História das Ideias, v. 37, p. 55-77, 2019. Disponível em: https://impactum-journals.uc.pt/rhi/article/view/2183-8925_37_3. Acesso em: 26 fev. 2022, p. 70. 371 Conforme a Constituição imperial, os ministros eram os agentes do Poder Executivo e o Imperador, como titular desse poder, tinha liberdade de escolhê-los. Com a introdução da figura do presidente do Conselho de Ministros (1847), o Imperador se limitava geralmente à escolha do presidente, que por sua vez escolhia seus auxiliares em consultas com o chefe do governo. In: CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a elite política imperial. Rio de Janeiro: Campus, 1980, p. 57. 372 De acordo com a Lei nº 234, de 23 de novembro de 1841, responsável pela criação do Conselho de Estado, este era “composto de doze Membros Ordinarios, além dos Ministros de Estado, que ainda o 120 ratificado e regulamentado pela Constituição Imperial de 1824 (Título 5º, Capítulo VII: “Do Conselho de Estado”). Ficava a cargo do Conselho de Estado a preparação dos projetos de lei, posteriormente apreciados pelo Poder Legislativo.373 Os Conselheiros eram vitalícios, nomeados pelo Imperador (Art. 137) e deviam prestar a este juramento para “manter a Religião Catholica Apostolica Romana; observar a Constituição, e às Leis; ser fieis ao Imperador; aconselhal-o segundo suas consciencias, attendendo sómente ao bem da Nação” (Art. 141).374 O preâmbulo constitucional trazia o seguinte texto: DOM PEDRO PRIMEIRO, POR GRAÇA DE DEOS, e Unanime Acclamação dos Povos, Imperador Constitucional, e Defensor Perpetuo do Brazil : Fazemos saber a todos os Nossos Subditos, que tendo-Nos requeridos o Povos deste Imperio, juntos em Camaras, que Nós quanto antes jurassemos e fizessemos jurar o Projecto de Constituição, que haviamos offerecido ás suas observações para serem depois presentes á nova Assembléa Constituinte mostrando o grande desejo, que tinham, de que elle se observasse já como Constituição do Imperio, por lhes merecer a mais plena approvação, e delle esperarem a sua individual, e geral felicidade Politica: Nós Jurámos o sobredito Projecto para o observarmos e fazermos observar, como Constituição, que dora em diante fica sendo deste Imperio a qual é do theor seguinte: [...]375 Depois de toda a discussão sobre os termos adequados a serem utilizados no texto constitucional, não foi por acaso que ele era iniciado tratando dos “súditos” do Império, palavra que estava ali para reafirmar os poderes de exceção do Imperador e dar um aviso aos dissidentes. Falava também em aprovação do texto, cujo procedimento havia sido ignorado com a dissolução da Constituinte, passando pelas Câmaras provinciais apenas para manter uma aparência de legitimidade, que vinha acompanhada de ameaças diretas aos opositores do Imperador. A outorga realizada sem a instituição de uma nova Assembleia, com a prisão e exílio dos políticos escolhidos pelo próprio governo, foi vinculante quanto ao não sendo, terão assento nelle” (Art. 1º). In: BRASIL. Lei nº 234, de 23 de novembro de 1841. Criando um Conselho de Estado. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/lim234.htm#:~:text=Art.,seus%20Membros%2C%20ou %20em%20Sec%C3%A7%C3%B5es. Acesso em: 10 jan. 2022. 373 SILVA, Claudia Christina Machado e. Escravidão e grande lavoura: o debate parlamentar sobre a lei de terras (1842 - 1854). 2006. 146 f. Dissertação (Mestrado em História) — Departamento de História, Setor de Ciências Humanas Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2006. Disponível em: https://acervodigital.ufpr.br/handle/1884/6666. Acesso em: 10 dez. 2021, p. 6. 374 BRASIL. [Constituição (1824)]. Constituição Política do Império do Brazil (de 25 de março de 1824). Constituição Política do Império do Brasil, elaborada por um Conselho de Estado e outorgada pelo Imperador D. Pedro I, em 25.03.1824. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao24.htm. Acesso em: 15 fev. 2021, artigo 141. 375 Ibid., preâmbulo constitucional. 121 clientelismo, isto é, produziu uma lealdade necessária (pelo menos em um âmbito imediato) daqueles que foram beneficiados. Nesse momento, o Imperador não foi ovacionado, mas foi reconhecido o compromisso que se estabelecia para que as elites dominantes pudessem ter parcela do poder político e seus interesses garantidos. Dessa maneira, as elites eram forçadas a agir com flexibilidade e realismo para a sua permanência. Elas foram obrigadas a se adaptar ao novo contexto que se impunha. Analisando a influência do liberalismo no texto, vale ressaltar que essa era a ideologia política dos donos do capital e, em consequência, colocava-se a serviço dos detentores de propriedade. Quanto à classe proprietária brasileira, ela estava fracionada de maneira mais significativa entre liberais moderados e exaltados, de tal sorte que o conservadorismo predominava no ambiente liberal da elite econômica, em especial, aquela próxima do Imperador.376 A nova Constituição outorgada pelo Imperador não fazia qualquer menção aos escravos — ou mesmo à palavra “escravidão” — em seu texto. Relativamente aos libertos, eram citados apenas no Título 2º, que tratava “Dos Cidadãos Brasileiros”, colocando-os nessa categoria desde que nascidos no Brasil; e no Art. 94, que os excluía das eleições secundárias. Ainda que o Art. 179 da Carta Constitucional definisse que “A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos Cidadãos Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Imperio”,377 milhões de negros e negras continuaram escravizados. Para Queiroz, o medo da onda negra foi elemento fundante tanto na prática quanto na teoria jurídica nacional. Os deputados e o próprio processo de formação do Império apresentavam-se como um núcleo político anti-negro, voltado ao escravismo e à supremacia branca.378 Outra peculiaridade foi a inclusão de artigos reproduzindo passagens da Declaração dos Direitos do Homem da França de 1789, com algumas estratégicas 376 VASCONCELOS, Diego de Paiva. O Liberalismo na Constituição Brasileira de 1824. 2008. 83 f. Dissertação (Mestrado em Direito Constitucional) — Universidade de Fortaleza (UNIFOR), Fortaleza, 2008. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/teste/arqs/cp049092.pdf. Acesso em: 10 dez. 2021, p. 62. 377 BRASIL. [Constituição (1824)]. Constituição Política do Império do Brazil (de 25 de março de 1824). Constituição Política do Império do Brasil, elaborada por um Conselho de Estado e outorgada pelo Imperador D. Pedro I, em 25.03.1824. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao24.htm. Acesso em: 15 fev. 2021. 378 QUEIROZ, Marcos Vinícius Lustosa Queiroz. Constitucionalismo brasileiro e o Atlântico negro: a experiência constitucional de 1823 diante da Revolução Haitiana. 2017. 200 f. Dissertação (Mestrado em Direito) — Faculdade de Direito, Universidade de Brasília (UnB), Brasília, 2017. Disponível em: https://repositorio.unb.br/handle/10482/23559. Acesso em: 10 fev. 2022, p. 179. 122 supressões. Esse é o caso do Artigo II da Declaração, o qual prevê que “O fim de toda a associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem. Esses Direitos são a liberdade. a propriedade, a segurança e a resistência à opressão”,379 que foi reproduzido omitindo-se as últimas seis últimas palavras.380 Isto é, no Artigo 133, IV, foi colocada menção somente a “Liberdade, segurança, ou propriedade dos Cidadãos”. A supressão reafirma o uso da legalidade de maneira retórica, na tentativa de esconder o autoritarismo por trás do texto. Sobre a organização dos poderes, o texto constitucional adotou a seguinte fórmula: “Os poderes políticos reconhecidos pela Constituição do Império do Brasil são quatro: o Poder Legislativo, o Poder Moderador, o Poder Executivo e o Poder Judicial” (Art. 10), declarando que “todos estes poderes do Império são delegações da Nação” (Art. 12).381 Assentou também como representantes da nação o Imperador e a Assembleia Geral (Art. 11), composta pela Câmara de Deputados e Câmara de Senadores ou Senado (Art. 14). O Poder Moderador atuou como configuração conservadora do governo e instrumento de intervenção do Imperador em todos os assuntos do governo, mesmo os judiciários. No âmbito prático, representou a centralização do poder. Se o constitucionalismo foi relevante para estabelecer uma ordem liberal, o Poder Moderador certamente trouxe limites a essa liberdade.382 No título 5º, Capítulo I (“Do Poder Moderador”), a Constituição descrevia, no Art. 99, que “A Pessoa do Imperador é inviolavel, e Sagrada: Elle não está sujeito a responsabilidade alguma”.383 Também determinava que seus títulos eram de Imperador Constitucional e Defensor Perpétuo do Brasil, cabendo-lhe o tratamento de Majestade Imperial (Art. 100). O discurso de Benjamin Constant — em particular na obra Princípios Políticos, publicada em 1814 — pretendia afastar o monarca do exercício direto do Poder 379 BRASIL. Ministério Público Federal. Declaração dos Direitos do Homem da França de 1789. Temas de Atuação. Legislação Internacional. Versão em português. Disponível em: http://www.mpf.mp.br/pfdc/temas/legislacao/internacional/declar_dir_homem_cidadao.pdf/view. Acesso em: 2 fev. 2022. 380 COSTA, Emília Viotti da. The Brazilian Empire: myths & histories. Revised Edition. The University of North Carolina Press: Chapel Hill and London, 2000, p. 57-59. 381 PAIM, Antônio. História do liberalismo brasileiro. São Paulo: Mandarim, 1998, p. 61. 382 VASCONCELOS, Diego de Paiva. O Liberalismo na Constituição Brasileira de 1824. 2008. 83 f. Dissertação (Mestrado em Direito Constitucional) — Universidade de Fortaleza (UNIFOR), Fortaleza, 2008. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/teste/arqs/cp049092.pdf. Acesso em: 10 dez. 2021, p. 69-71. 383 BRASIL. [Constituição (1824)]. Constituição Política do Império do Brazil (de 25 de março de 1824). Constituição Política do Império do Brasil, elaborada por um Conselho de Estado e outorgada pelo Imperador D. Pedro I, em 25.03.1824. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao24.htm. Acesso em: 15 fev. 2021. 123 Executivo, conferindo-lhe somente a função de árbitro do poder político. O seu papel, para Constant, era impedir o choque entre os demais poderes e assegurar a estabilidade do Estado liberal e dos direitos civis e políticos dos cidadãos.384 A apropriação do conceito no Brasil não adotou a teoria de Constant conforme sua proposta. De maneira diversa, a ideia aqui mobilizada resultava exatamente em uma permissão legal para o exercício do poder pessoal, dando tônica para que o Poder Executivo fosse inflado. A instituição de uma monarquia constitucional comungada com um conceito próprio de Poder Moderador, que nada tinha a ver com a proposta de Benjamin Constant, trazia ambiguidades para a nova ordem jurídica instaurada: ela era liberal e oligárquica; autoritária e modernizadora.385 Cabia ao Imperador, exercendo o Poder Moderador (Art. 101, caput e incisos I a IX), nomear os senadores; convocar a Assembleia Geral extraordinariamente; sancionar Decretos e Resoluções da Assembleia; aprovar e suspender interinamente Resoluções dos Conselhos Provinciais. Dentre outras previsões válidas de destaque quanto a esse poder, tinha-se a possibilidade de o Imperador prorrogar, adiar e dissolver a Câmara dos Deputados nos casos “em que o exigir a salvação do Estado; convocando immediatamente outra, que a substitua”386 (Art. 101, V); nomear e demitir livremente os Ministros de Estado — que podiam assistir e discutir propostas de lei, mas não votá-las e nem estar presentas na votação, salvo se fossem Senadores ou Deputados (Art. 54) —; suspender os Magistrados; perdoar e moderar penas impostas a réus condenados por sentença; e conceder anistia. Ele garantia, assim, a concentração e a amplitude do Poder do Imperador, viabilizando legalmente o seu exercício. Com a crise política que se instaurava, o Poder Moderador foi uma tentativa do Imperador de manter seu domínio e permanência, tanto quanto possível, no pós-Independência. Das principais diferenças nos textos do projeto de Antônio Carlos e o conteúdo aprovado para a Constituição, é substancial o aspecto dos limites entre os poderes. Na 384 LYNCH, Christian Edward Cyril. O Poder Moderador na Constituição de 1824 e no anteprojeto Borges de Medeiros de 1933. Um estudo de direito comparado. Revista de Informação Legislativa, Brasília, ano 47, n. 199, p. 93-111, out./dez. 2010. Disponível em: http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/documentacao_e_divulgacao/doc_biblioteca/bibli_servicos _produtos/bibli_boletim/bibli_bol_2006/ril_v47_n188.pdf#page=94. Acesso em: 2 fev. 2022, p. 93-94. 385 LYNCH, Christian Edward Cyril. O discurso político monarquiano e a recepção do conceito de poder moderador no Brasil (1822-1824). Dados [online]., v. 48, n. 3, p. 611-653, 2005. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0011-52582005000300006. Acesso em: 2 fev. 2022, p. 612. 386 BRASIL. [Constituição (1824)]. Constituição Política do Império do Brazil (de 25 de março de 1824). Constituição Política do Império do Brasil, elaborada por um Conselho de Estado e outorgada pelo Imperador D. Pedro I, em 25.03.1824. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao24.htm. Acesso em: 15 fev. 2021. 124 representação nacional, propunha-se três poderes — Legislativo, Executivo e Judiciário — e no texto outorgado teve-se quatro poderes, com o Moderador, sendo ele descrito como “chave de toda a organisação Politica, e é delegado privativamente ao Imperador, como Chefe Supremo da Nação, e seu Primeiro Representante, para que incessantemente vele sobre a manutenção da Independencia” (Art. 98).387 Ao passo que o projeto original continha 15 títulos, o que o tornava um documento extenso, o texto outorgado por D. Pedro abrangia oito títulos. Em suma, o Projeto de Antônio Carlos encontrou o seu grande impasse no antilusitanismo e no apoio recebido pelo Imperador do partido português, assim como das tendências brasileiras liberais “moderadas” ou “conservadoras”.388 Apesar da sua inspiração e fraseologia liberais, tal como sublinha Viotti, a Constituição de 1824 concretizava um sistema de clientela e patronagem, oriundo do período colonial. Ao Catolicismo concedeu o status de religião oficial do Estado, coibindo o culto público de outras religiões e conferindo à Igreja católica o direito de controlar registros de nascimento, casamento e morte. Note-se que o Art. 5º da Constituição trazia a religião católica romana como a religião do Império, permitidas as demais somente em culto doméstico ou particular.389 A Carta trazia um sistema baseado em eleições indiretas e censitárias, reservadas a homens livres maiores de 25 anos, com determinada renda. Privilegiava a classe dominante, já que os escravos remanesciam escravos e as camadas de trabalhadores não desfrutavam do direito ao voto. A representação foi dividida na Câmara dos Deputados, temporária e eletiva, e na dos Senadores, eletiva e vitalícia. Cabe, contudo, ressaltar que 387 BRASIL. [Constituição (1824)]. Constituição Política do Império do Brazil (de 25 de março de 1824). Constituição Política do Império do Brasil, elaborada por um Conselho de Estado e outorgada pelo Imperador D. Pedro I, em 25.03.1824. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao24.htm. Acesso em: 15 fev. 2021. 388 VASCONCELOS, Diego de Paiva. O Liberalismo na Constituição Brasileira de 1824. 2008. 83 f. Dissertação (Mestrado em Direito Constitucional) — Universidade de Fortaleza (UNIFOR), Fortaleza, 2008. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/teste/arqs/cp049092.pdf. Acesso em: 10 dez. 2021, p. 62. 389 Segundo o Art. 5º da Constituição de 1824: “A Religião Catholica Apostolica Romana continuará a ser a Religião do Imperio. Todas as outras Religiões serão permitidas com seu culto domestico, ou particular em casas para isso destinadas, sem fórma alguma exterior do Templo”. Interessante observar que após o preâmbulo constitucional e anteriormente ao Título 1º, constava “Em nome da santíssima trindade”. In: BRASIL. [Constituição (1824)]. Constituição Política do Império do Brazil (de 25 de março de 1824). Constituição Política do Império do Brasil, elaborada por um Conselho de Estado e outorgada pelo Imperador D. Pedro I, em 25.03.1824. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao24.htm. Acesso em: 15 fev. 2021. 125 o próprio modelo clássico de liberalismo não nasce como apelo à inclusão, mas instrumento protetivo das elites proprietárias.390 Especificamente com relação aos eleitores (Título 4º, Capítulo VI), tinham direito ao voto nas eleições primárias os cidadãos brasileiros, no gozo dos seus direitos políticos e os estrangeiros naturalizados (Art. 91, caput e incisos I e II). Excluíam-se das eleições nas Assembleias Paroquiais os “criados de servir”, religiosos e os que não tivessem de renda líquida anual cem mil réis (Art. 92). Os que não podiam votar, não estavam também aptos a serem membros nem votar na nomeação de qualquer autoridade eletiva nacional ou local (Art. 93). Para serem eleitores e votarem nas eleições de Deputados, Senadores e Membros dos Conselhos de Província estavam incluídos aqueles com direito ao voto na Assembleia Paroquial, salvo os que não tivessem renda líquida anual de duzentos mil réis; os libertos e os “criminosos” (Art. 94, caput e incisos I a III). Não podiam votar nas eleições secundárias, para escolher deputados, senadores e membros dos Conselhos de Província, aqueles que não tivessem uma renda líquida de pelo menos quatrocentos mil réis, fossem brasileiros e professassem a religião católica (Art. 95). Assim, o corpo eleitoral era muito restrito, de modo que deputados foram eleitos com um pouco mais de uma centena de votos.391 No Primeiro e Segundo Impérios, apesar das várias reformas eleitorais (1846, 1855, 1862, 1876 e 1881), o sistema foi controlado por uma minoria. Os eleitores representavam entre 1,5% e 2% da população total, o que favorecia a possibilidade de manipulação e o controle das eleições pelos chefes locais, a partir do clientelismo e patronagem.392 Portanto, a Constituição não manifestava apenas o autoritarismo de D. Pedro, mas também despontava a face das elites brasileiras, assustadas com a ameaça democrática e do fim do tráfico — o que não significa que não aspirassem aos ideais liberais —, cuja maior preocupação era a preservação da propriedade.393 A opção pela monarquia teve como uma de suas importantes causas o clima de terror provocado pelas Revoluções do Atlântico — em especial a Haitiana — e as 390 VASCONCELOS, Diego de Paiva. O Liberalismo na Constituição Brasileira de 1824. 2008. 83 f. Dissertação (Mestrado em Direito Constitucional) — Universidade de Fortaleza (UNIFOR), Fortaleza, 2008. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/teste/arqs/cp049092.pdf. Acesso em: 10 dez. 2021, p. 65. 391 COSTA, Emília Viotti da. Da Monarquia à República: momentos decisivos. 6. ed. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1999, p. 143. 392 COSTA, loc. cit. 393 VASCONCELOS, op. cit., p. 60-61. 126 facilidades que essa forma de governo propiciava para o reconhecimento da emancipação política. República e democracia eram conceitos novos e pouco experimentados, causadores de antipatia para as elites em geral. Nesse sentido, o escravismo não se consolidou como imposição do Imperador à sociedade brasileira, mas como condição infligida pelos senhores de escravos. Tanto que após a Abolição, o regime monárquico durou pouco mais de um ano, tendo como um de seus abalos a desafeição da aliança com os senhores de escravos.394 2.4 UM POR TODOS E TODOS CONTRA OS ESCRAVOS A Independência contou com a união de amplos setores sociais, com suas próprias pautas, para libertação em face do governo português. O aliciamento desses setores contava com a ideia de que a Independência era necessária para se pensar a liberdade e que os envolvidos se beneficiariam dos resultados. O liberalismo heroico serviu para propiciar essa união, lançando a utopia da igualdade e da liberdade. Porém, enquanto os liberais “exaltados” traziam ideias mais progressistas, inclusive no cerne da Constituinte, o Imperador, conhecido como uma figura liberal e tomado como defensor da pátria, mostrava-se avesso às tentativas de limitação do Poder Executivo, recebendo apoio do partido português e das tendências liberais “moderadas”. As elites proprietárias se deram conta de que precisariam se adaptar a esse cenário. O próximo passo para a formação da nova ordem jurídica era necessário, pois a Independência era um caminho sem volta, e o momento não era propício para alimentar as animosidades diante do Imperador. Havia a consciência, portanto, de que a nação recém-independente precisava de uma Constituição, assim como tinha-se clareza da importância econômica do escravismo. O Imperador também percebia o descontentamento crescendo e as fragilidades que expunha na iminência de uma crise política, e por isso precisava do suporte das elites. Foi realizado então um compromisso para fazer valer esses interesses: o Imperador garantia o seu poder através da centralização, e as elites proprietárias ficavam com seu subsídio. A retórica liberal foi constantemente utilizada para lançar promessas e os ganhos do liberalismo heroico foram estrategicamente utilizados para esse aliciamento, de forma 394 VASCONCELOS, Diego de Paiva. O Liberalismo na Constituição Brasileira de 1824. 2008. 83 f. Dissertação (Mestrado em Direito Constitucional) — Universidade de Fortaleza (UNIFOR), Fortaleza, 2008. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/teste/arqs/cp049092.pdf. Acesso em: 10 dez. 2021, p. 60-61. 127 que os acontecimentos pós-Independência, em destaque a dissolução da Assembleia, contribuíram para a sua supressão. Para compreender o que está por trás dessa dinâmica e como se chegou a este ponto, é preciso ter em mente que desde a chegada da Corte no Brasil, estabeleceu-se um clima de tensão. Com o recebimento, pelo governo português, de empréstimo da Inglaterra em 1809, seguido da assinatura de Tratado de Comércio e Navegação em 1810395 — que impunha limitação ao tráfico de africanos —, seus respectivos termos foram legados ao Brasil após a sua emancipação política. Em sequência, como condição de reconhecimento da Independência, o governo inglês impôs a abolição do tráfico de escravos a partir da assinatura, em novembro de 1826, de Tratado no qual o Brasil396 comprometeu-se a findar o comércio ilegal de escravos em um prazo de três anos, contados da ratificação.397 Inobstante, tal como demonstra Herbert S. Klein, considerando o fluxo de escravos para o Brasil entre os séculos XVIII e XIX, houve significativa intensificação no fim da década de 1820, o que possui relação direta com as ameaças de abolição do tráfico, do mesmo modo que no primeiro quinquênio da década de 1830 ocorreu queda abrupta, o que pode ser atribuído à preocupação dos importadores com a fiscalização de suas atividades.398 Logo, com a ameaça inglesa, mais cativos eram trazidos ao Brasil e isso significa que recursos eram empregados no transporte, na compra e venda de escravos, e na colocação desses escravos nas terras, de modo que os envolvidos não estavam dispostos a perder esse investimento. Para as elites políticas, o momento não era “propício” para a abolição, dada a sua significância para a grande lavoura, de modo que, conforme Machado e Silva, “o processo 395 A resistência no cumprimento do respectivo Tratado culminou na apreensão de 17 navios do governo português. Depois disso, com outro Tratado assinado em 1815 no Congresso de Viena, a Inglaterra comprometeu-se a indenizar o governo português. Em 1817, novo acordo acrescentou itens que limitaram a legalidade do comércio escravo, incluindo o direito para ambos os países de investigarem mutuamente suas embarcações. Apesar disso, apenas a Inglaterra tinha navios disponíveis para tanto. In: SILVA, Claudia Christina Machado e. Escravidão e grande lavoura: o debate parlamentar sobre a lei de terras (1842 - 1854). 2006. 146 f. Dissertação (Mestrado em História) — Departamento de História, Setor de Ciências Humanas Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2006. Disponível em: https://acervodigital.ufpr.br/handle/1884/6666. Acesso em: 10 dez. 2021, p. 16. 396 BRASIL. Carta de Lei de 23 de Novembro de 1826. Ratifica a Covenção entre o Imperio do Brazil e Grã-Bretanha para a abolição do trafico de escravos. Legislação Informatizada. Coleção de Leis do Império do Brasil - 1826, v. 1, pt. II, p. 71 (Publicação Original). Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/carlei/1824-1899/cartadelei-39883-23-novembro-1826-570862- publicacaooriginal-93948-pe.html. Acesso em: 10 fev. 2022. 397 SILVA, op. cit., p. 4. 398 KLEIN, Herbert S. A demografia do tráfico atlântico de escravos para o Brasil. Estudos Econômicos, São Paulo, 17(2), p. 129-149, mai./ago. 1987, p. 134. 128 de desagregação do escravismo foi muito lento, já que, a despeito dos tratados, os legisladores procuravam prolongar-lhe ainda mais a existência”.399 O sistema escravista manteve sua força a partir da dependência criada em relação aos escravos e em virtude dos interesses mantidos por essa dependência.400 Nessa linha, a questão da escravidão apareceu nos debates parlamentares — ainda que não fosse diretamente abordada como pauta principal — a partir da analogia entre colonização e escravidão; por meio de solicitações à Assembleia; e através de debates sobre cidadania, sobre aqueles que tangenciavam o conceito de humanidade e o “lugar” dos escravos e libertos na sociedade. No fim das contas, ocorreu uma separação legal dos grupos de escravos e libertos. Para além de retificar a hierarquia social estabelecida, a Constituição de 1824 tornava menos precária a situação de liberdade dos ex-escravos, mas sem lhes dar condições de inclusão política e econômica. Esse contexto seria intensificado por leis posteriores, como a Lei de Terras. Aconteceu assim um avanço e uma potencialidade de melhoria, ao mesmo tempo que se buscava não perder o grupo do controle, não o incorporando na categoria implícita de cidadãos ativos. De outro lado, a separação era um fator necessário para a dominação, daí a ideia de dois passos a frente e um atrás. Os libertos eram economicamente desinteressantes aos proprietários de escravos e era mais seguro especificar onde se encaixavam, para que não tivessem lugar no espaço dos homens brancos de bem. Ademais, era sabido que em algum momento a escravidão acabaria, mas esse era um problema para a posteridade. O reconhecimento da cidadania dos libertos gerava a esperança da liberdade, de certa forma apaziguando os ânimos temporariamente. A liberdade, assumida em seu teor moderno e vinculada desse modo à propriedade, foi tomada como linha divisora para delimitar os “membros da nação”, junto com a raça e a nacionalidade — além, evidentemente, do gênero — que operavam como fatores institucionalizados de exclusão. A separação contribuía para o isolamento dos escravos e os africanos não tinham os mesmos direitos dos libertos nascidos no Brasil, de maneira que foram deixados à míngua em um limbo jurídico. Sendo assim, quando falamos de “libertos” ou “ex- escravos” em geral, estamos nos referindo àqueles de nacionalidade brasileira. Em 399 SILVA, Claudia Christina Machado e. Escravidão e grande lavoura: o debate parlamentar sobre a lei de terras (1842 - 1854). 2006. 146 f. Dissertação (Mestrado em História) — Departamento de História, Setor de Ciências Humanas Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2006. Disponível em: https://acervodigital.ufpr.br/handle/1884/6666. Acesso em: 10 dez. 2021, p. 19. 400 Ibid., p. 19-20. 129 resumo, a Constituição trouxe uma série de restrições à cidadania, considerando cidadão brasileiro, além do conterrâneo, o liberto nascido no país ainda que de pai estrangeiro, desde que este não residisse por serviço de sua nação (art. 6º, I). Nada mais dizia sobre os libertos africanos, bastante numerosos. Em outras palavras, no Brasil, o escravo liberto de qualquer etnia africana tornava-se estrangeiro.401 A população escrava era vista como um problema que o Direito teria que lidar pela tangente. Eles respondiam por crimes, ao mesmo tempo que tratados como coisas (por exemplo, podiam ser hipotecados), vivendo no Império uma instabilidade jurídica constante quanto à sua situação, maleável conforme era conveniente às elites proprietárias. A ambiguidade na afirmação da cidadania de escravos — e índios — estava no fato de que as possibilidades para uma futura inclusão foram deixadas em aberto. Estudiosas como Yuko Miki402 e Andréa Slemian403 notam que este apoio não se baseava no princípio da universalidade da cidadania, mas sim em uma defesa liberal da escravidão. Afinal, os seus representantes calcularam que o reconhecimento da liberdade individual e da cidadania dos libertos brasileiros ajudaria, em última instância, a manter a ordem social estabelecida e a sociedade escravista. Quanto aos libertos africanos, eles eram desprezados abertamente. Segundo Miki: [...] A maior sociedade escravista da América Latina concedeu assim a cidadania a todas as pessoas livres e anteriormente escravizadas nascidas em Brasil. Tão notáveis quanto sua inclusividade, no entanto, foram os silêncios da Constituição. Não houve menção às qualificações de gênero. Nem havia qualquer critério racial pelo qual a cidadania foi disponibilizada a um brasileiro nascido liberto. Essa cidadania desracializada contrastava com a exclusão de negros e indígenas nativos nos Estados Unidos. Os libertos africanos, no entanto, foram completamente excluídos da Constituição. Embora eles pudessem potencialmente se naturalizar como europeus imigrantes, eles eram considerados apátridas incentivados a se autodeportar ao invés de reivindicarem a cidadania brasileira.404 401 CHALHOUB, Sidney. Precariedade estrutural: o problema da liberdade no Brasil escravista (século XIX). História Social (IFCH/UNICAMP), Campinas, n. 19, p. 33-62, 2010. Disponível em: https://www.ifch.unicamp.br/ojs/index.php/rhs/article/view/315. Acesso em: 1 fev. 2021, p. 33-40. 402 MIKI, Yuko. Frontiers of Citizenship. A Black and Indigenous History of Postcolonial Brazil. Cambridge: Cambridge University Press, 2018, p. 31. 403 SLEMIAN, Andréa. Seriam todos cidadãos? Os impasses na construção da cidadania nos primórdios do constitucionalismo no Brasil (1823-1824). In: JANCÓ, Rafael. Independência: história e historiografia. São Paulo: Ed. Instaván Jancó, 2005, p. 846. 404 MIKI, op. cit., p. 33. Tradução livre. 130 Os direitos políticos e civis estavam restritos às camadas elitizadas e os discursos liberais camuflavam a reiteração do regime escravista, enquanto instituição base das relações sociais. Também se evidenciava o desconforto dos parlamentares, que buscavam muitas vezes se distanciar da escravidão em suas falas, já que o assunto tinha o viés de inferiorizar o Brasil diante das nações constituídas a partir das ideias liberais.405 Uma questão que vale a pena ser comentada é que o Art. 253 do projeto original de Antônio Carlos tratava de alguns cuidados a serem tomados pela Assembleia, como a conservação do aumento de estabelecimentos como hospitais. Por sua vez, o Art. 254 seguia tratando desses cuidados, acrescentando que: “Terá igualmente o cuidado de criar estabelecimentos para a catequese e civilização dos índios, emancipação lenta dos negros, sua educação religiosa e industrial” [grifo nosso].406 O artigo não ganhou lugar na Constituição de 1824. As elites nacionais buscavam se inserir no grupo das nações modernas a partir da continuidade e mesmo aprofundamento das formas de exploração colonial do trabalho. Porém, em lugar de sua superação, a persistência histórica de institutos arcaicos seria parte da nova pátria e seu “progresso”, em contradição ao que a palavra prometia.407 A continuidade do regime escravista após a abertura comercial e depois da independência política fazia parte do alicerce da ordem social brasileira, de maneira que o liberalismo operava como uma solução estrutural para que tal ordem se mantivesse e prosperasse no século XIX.408 E, assim, tal como afirma Bosi, a sua “matéria-prima são ideias afetadas de valores, e ideias e valores se formam lentamente com idas e vindas, no curso da história, na cabeça e no coração dos homens”.409 Pensando na ameaça da legislação antitráfico imposta pela Inglaterra, ela era capaz de comprometer, a curto prazo, a produção do país. Mas considerando que não havia intenção de se abandonar o regime escravista, poucos esforços foram empregados para o cumprimento de Tratados assinados com o governo inglês e muitos esforços foram 405 LEMOS, Antonio Cleber da Conceição. O discurso senhorial na Assembleia Geral Constituinte de 1823: o caso das sessões preparatórias. Revista de História da UFBA, v. 6, n. 1-2, p. 49-63, 2017. Disponível em: https://periodicos.ufba.br/index.php/rhufba/article/view/27858/16553. Acesso em: 20 fev. 2022, p. 51. 406 BRASIL. Comissão de Constituição. Projecto de Constituição para o Imperio do Brazil. Sessão do 1º de setembro de 1823. Arquivo Histórico da Câmara dos Deputados. Disponível em: https://arquivohistorico.camara.leg.br/atom/AC1823/A/AC1823-A-3-2012.pdf. Acesso em: 10 fev. 2022, p. 34. 407 SCHWARZ, Roberto. Martinha versus Lucrécia: ensaios e entrevistas. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 168. 408 BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 284 e 377. 409 Ibid., p. 222. 131 imprimidos para mascarar o seu descumprimento, o que contou com o auxílio de instrumentos legais para tanto. Apesar de termos insistido na potencialidade da Constituinte e na premissa de que sem ela a situação da liberdade seria ainda mais precária, em geral, mesmo os políticos considerados mais progressistas na década de 1820 sustentavam uma suspensão gradual do tráfico, e não a sua proibição imediata.410 À vista disso, segundo Lemos: O que definia a exclusão dos indivíduos dos pactos do Estado Imperial do Brasil era a aproximação desses indivíduos em relação à condição da escravidão, ou seja, em relação à perda total da liberdade. Dessa forma, esse Estado reiterou a hierarquia escravista também na forma simbólica como representava a nação, suprimindo as diferenças e diversidades oriundas da realidade escravista. Assim, a nação do Brasil não era identificada com toda a população que vivia em seu território. Pertencer à nação não se resumia a nascer nela, mas também, significava estar distante dos estratos mais subalternos da sociedade.411 A onda negra trazia o constante medo das rebeliões nas ruas. E os políticos “brasileiros” invocavam discursos de barbárie sobre os africanos e negros em geral, atormentados pelos episódios de São Domingos. Do lado português, também constantes ameaças eram feitas para a “proteção” da população branca e “bem-nascida”.412 O escravo era visto como problema de segurança nacional. O seu desejo de liberdade era perigoso para a hierarquia existente. Sob o argumento de se garantir a ordem e a segurança do Estado que se formava, os escravos passaram a ser, conforme a perspectiva vencedora de 1824, considerados inimigos da nação. E aos inimigos era cabível o cativeiro e o isolamento.413 410 SILVA, Claudia Christina Machado e. Escravidão e grande lavoura: o debate parlamentar sobre a lei de terras (1842 - 1854). 2006. 146 f. Dissertação (Mestrado em História) — Departamento de História, Setor de Ciências Humanas Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2006. Disponível em: https://acervodigital.ufpr.br/handle/1884/6666. Acesso em: 10 dez. 2021, p. 129. 411 LEMOS, Antonio Cleber da Conceição. O discurso senhorial na Assembleia Geral Constituinte de 1823: o caso das sessões preparatórias. Revista de História da UFBA, v. 6, n. 1-2, p. 49-63, 2017. Disponível em: https://periodicos.ufba.br/index.php/rhufba/article/view/27858/16553. Acesso em: 20 fev. 2022, p. 54. 412 RIBEIRO, Gladys Sabina. O desejo da liberdade e a participação de homens livres pobres e “de cor” na Independência do Brasil. Cadernos CEDES [online], v. 22, n. 58, p. 21-45, dez. 2002. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ccedes/a/bxjjzk7MbDH5RBXbFgnwZqm/abstract/?lang=pt#. Acesso em: 20 fev. 2022, p. 30. 413 MAMIGONIAN, Beatriz Gallotti. Os direitos dos libertos africanos no Brasil oitocentista: entre razões de direito e considerações políticas. História (São Paulo) [online], v. 34, n. 2, p. 181-205, 2015. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1980-436920150002000064. Acesso em: 30 set. 2021, p. 183- 191. 132 O próprio Bonifácio, conhecido por propor a “abolição” gradual, quando no cargo de Secretário de Estado dos Negócios do Reino, ficava à espreita de ameaças de atos de rebeldia. Em 5 de agosto, por meio de ofício ao intendente-geral da Polícia, indicava a necessidade de que o governo tomasse medidas vigorosas contra os que ameaçassem a tranquilidade pública414 e seduzissem os escravos com promessas de liberdade.415 A obtenção da liberdade tinha meios variados e incertos, como concessão por testamentos e inventários, alforrias, alguns modos onerosos como a indenização pelo escravo do seu preço ao senhor (conhecida por “auto compra”), o estabelecimento de condições a serem cumpridas pelos libertos e a exigência da prestação de serviços por tempo determinado ou não.416 Aqui, notamos que os libertos eram submetidos a uma situação controlada pelos senhores, de quem dependia a concessão da liberdade. Refletindo acerca dos grupos de escravos e libertos, eles eram desse modo isolados e controlados, respectivamente, o que era viabilizado e chancelado pelas normas jurídicas da nação recém-formada. Os elevados números da população escrava e a sedimentação da base da economia cafeeira foram também fatores determinantes. Do aprendizado extraído pelas elites da experiência de dissolução da Constituinte, absorveu-se que não tratar diretamente da escravidão e se utilizar da norma jurídica para a manipulação de interesses era um caminho efetivo de manobra. Nesse entremeio, o liberalismo concebido na própria noção de direito trazia flexibilidade e generalizações suficientes para justificar legalmente essas estratégias. O Brasil se tornou o país que mais importou africanos escravizados e que perpetuou a escravidão mais do que em qualquer outro lugar do Ocidente. O Direito, nesse sentido, em sua qualidade de ferramenta de controle social e amarrado com o liberalismo — ou “constitucionalismo”, visto como sinônimo — foi utilizado em seu potencial supostamente legitimador. Ou seja, as ideias liberais tomadas como o núcleo das revoluções emancipatórias alijaram-se com a noção de que as normas jurídicas formais advinham com a promessa de assegurar direitos e liberdades. As normas 414 RIBEIRO, Gladys Sabina. O desejo da liberdade e a participação de homens livres pobres e “de cor” na Independência do Brasil. Cadernos CEDES [online], v. 22, n. 58, p. 21-45, dez. 2002. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ccedes/a/bxjjzk7MbDH5RBXbFgnwZqm/abstract/?lang=pt#. Acesso em: 20 fev. 2022, p. 35. 415 BRASIL. Ministério do Reino e Estrangeiros. Ofício de José Bonifácio de Andrada e Silva, ministro e secretário de Estado dos Negócios do Reino, para o intendente-geral da Polícia. IJJ 1 167. Ministério do Reino e Estrangeiros, 5 ago. 1822, A.N. 416 CHALHOUB, Sidney. Precariedade estrutural: o problema da liberdade no Brasil escravista (século XIX). História Social (IFCH/UNICAMP), Campinas, n. 19, p. 33-62, 2010. Disponível em: https://www.ifch.unicamp.br/ojs/index.php/rhs/article/view/315. Acesso em: 1 fev. 2021, p. 43. 133 vinham dotadas de certa presunção de legitimidade, já que emitidas pelo Estado. No caso, um Estado soberano e independente que havia alcançado esse status com o amparo de variados setores sociais. Medidas efetivas contra o tráfico foram tomadas apenas no fim da década e os compromissos assumidos com a Inglaterra a partir do reconhecimento da Independência foram desrespeitados sistematicamente nas duas décadas seguintes, que se constituíram em um período de pesado tráfico ilegal.417 A escravidão que foi afirmada, diferentemente daquela da Antiguidade, compreendia viés racial, trazendo de maneira mais expressiva a desumanização e reificação das pessoas pertentes ao grupo dos “não livres”, tomados como mercadorias.418 Liberdade e escravidão passaram, dessa forma, a definir-se mutuamente. A liberdade legítima era a do cidadão, livre de restrições aos seus bens e capacidades, enquanto a escravidão demonstrava-se como valor positivo, “inquestionado”, ordenando o mundo das relações sociais.419 A liberdade como a aptidão de estar em pleno controle de suas capacidades e de sua propriedade era interessante na medida que esse sujeito podia contribuir economicamente nas relações de troca. O tráfico negreiro continuava a ser alto negócio. A sua supressão definitiva ocorreria apenas na década de 1850. Com a prosperidade do ciclo do café, assentado na escravidão e depois no trabalho semiforçado, o qual trazia a ligação do país com a ordem do capital, buscava-se trazer os pressupostos modernos, enquanto o estatuto colonial do trabalho funcionava em proveito da recém-constituída classe dominante nacional.420 As elites proprietárias e consequentemente os grupos nos núcleos políticos de poder já tinham conhecimento da impossibilidade de manter para sempre o instituto e da necessidade de realizar transformações na mão de obra para adequação à nova lógica e demanda internacional, quando o governo brasileiro se comprometeu diante do governo inglês a findar o comércio negreiro.421 Esta foi, contudo, uma decisão calculada e 417 CHALHOUB, Sidney. Precariedade estrutural: o problema da liberdade no Brasil escravista (século XIX). História Social (IFCH/UNICAMP), Campinas, n. 19, p. 33-62, 2010. Disponível em: https://www.ifch.unicamp.br/ojs/index.php/rhs/article/view/315. Acesso em: 1 fev. 2021, p. 46-49. 418 CASTELLS, Manuel. Ruptura: a crise da democracia liberal. Zahar, E-book Amazon, 2018, p. 54. 419 LARA, Silvia Hunold. O espírito das leis: tradições legais sobre a escravidão e a liberdade no Brasil escravista. Africana Studia, n. 14, edição do Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto, p. 73-92, 2010. Disponível em: https://ojs.letras.up.pt/index.php/1_Africana_2/article/view/7319. Acesso em: 15 fev. 2021, p. 77-78. 420 CHALHOUB, op. cit., p. 57-58. 421 SILVA, Claudia Christina Machado e. Escravidão e grande lavoura: o debate parlamentar sobre a lei de terras (1842 - 1854). 2006. 146 f. Dissertação (Mestrado em História) — Departamento de História, 134 consciente para blindar juridicamente o escravismo (já que, nesse plano, havia em tese um compromisso estabelecido) e os interesses jurídico-econômicos envolvidos nesse sentido. Acima disso, o Direito assumia o compromisso da exclusão. A relação jurídica entre liberalismo e escravidão no Brasil pode ser compreendida dentro de alguns ciclos. Um primeiro ciclo vai se estabelecer dos movimentos rumo à Independência até o fim do liberalismo heroico, marcado pela dissolução da Assembleia e advento da Carta de 1824, com a falsa promessa emancipatória e a institucionalização do pacto contra os escravos. Vimos que, relativamente ao pacto social estabelecido, os escravos não fariam parte dele e os libertos foram contra estes aliciados. A condição escrava era vista em oposição à liberdade e os homens não livres e os estrangeiros não faziam parte do acordo da nação independente. Os libertos precisavam se desvincular dessa condição para terem algum reconhecimento jurídico. Em seguida, a denominada “Lei Feijó” (antitráfico), foi representante da expressão “para inglês ver”, constituindo medida paliativa e norma não respeitada, para aliviar e despistar a pressão inglesa. A única disposição da lei observada foi a proibição do desembarque de libertos.422 Um próximo ciclo se estabeleceria aqui, marcado pelo silêncio do Direito em relação à pauta emancipatória, que seria quebrado apenas no Segundo Reinado, na década de 40, quando se começa a discutir as políticas de terras, ganhando relevo o conceito jurídico de propriedade e sua delimitação. Ainda que no início desse período não tenham sido tomadas quaisquer medidas efetivas sobre a situação jurídica dos escravos, o debate passa a ser visto como algo cuja procrastinação perpétua seria inviável, culminando na aprovação da Lei de Terras de 1850.423 Um último ciclo vai abarcar o advento das leis “abolicionistas” e as transformações da década de 1870. Viotti descreve o abolicionismo em algumas fases. Uma primeira fase, que chamaremos de embrionária (1850-1871), na qual tivemos a Lei Setor de Ciências Humanas Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2006. Disponível em: https://acervodigital.ufpr.br/handle/1884/6666. Acesso em: 10 dez. 2021, p. 4. 422 MAMIGONIAN, Beatriz Gallotti. Os direitos dos libertos africanos no Brasil oitocentista: entre razões de direito e considerações políticas. História (São Paulo) [online], v. 34, n. 2, p. 181-205, 2015. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1980-436920150002000064. Acesso em: 30 set. 2021, p. 197. 423 Conforme o preâmbulo da Lei, ela dispõe sobre as terras devolutas no Império, das que são possuídas por título de sesmaria sem preenchimento das condições legais e por simples título de posse mansa e pacífica; e determina que, medidas e demarcadas as primeiras, elas sejam cedidas a título oneroso, para empresas particulares e para o estabelecimento de colônias de nacionais e de estrangeiros. BRASIL. Lei nº 601, de 18 de setembro de 1850. Dispõe sobre as terras devolutas do Império. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l0601- 1850.htm#:~:text=LEI%20No%20601%2C%20DE,sem%20preenchimento%20das%20condi%C3%A 7%C3%B5es%20legais. Acesso em: 15 fev. 2021. 135 Eusébio de Queirós e não se podia ainda falar propriamente de movimento abolicionista, mas na qual as propostas a favor da emancipação começam a ser discutidas com um pouco mais de entusiasmo, apesar de corriqueiramente se perderem no Senado, na Câmara ou nas várias comissões. Depois, uma segunda fase emplacada pela Lei do Ventre Livre, que vai trazer a discussão sobre os nascituros (crianças no ventre de mães escravas); uma terceira fase ligada à Lei dos Sexagenários, que trazia o debate sobre os escravos em idade avançada; e por fim uma base insurrecional no início da década de 1880. Desse ciclo, tratado no capítulo subsequente, muito poderia ser extraído, mas no recorte deste trabalho, vão nos interessar as relações entre liberalismo e Direito por trás das normas emancipatórias e quais mudanças ocorreram, capazes de penetrar na esfera jurídica, para que a Abolição efetivamente se concretizasse. 2.5 A RECEPÇÃO DO LIBERALISMO E A CORRENTE DOUTRINÁRIA Frisamos no início deste capítulo a impossibilidade de separação da atividade intelectual da prática política no Brasil oitocentista, considerando que os cargos políticos eram ocupados exatamente pela elite intelectual e que os frequentadores das Universidades europeias traziam e disseminavam teorias vindas daquele continente para justificar a ação política, com destaque ao liberalismo. Com este item, buscamos trazer um vislumbre sobre o liberalismo “doutrinário” que serviu de subsídio às elites intelectuais e políticas e permaneceu sendo mobilizado no Segundo Reinado. Pretendemos aqui também nos encaminharmos para algumas conclusões preliminares sobre a recepção do liberalismo no Brasil, a apropriação de conceitos e o desenvolvimento de um pensamento próprio que vai se consolidar no Segundo Reinado. A experiência do liberalismo brasileiro, segundo Antonio Paim, apresenta momentos marcantes que se destacam em sua recepção e implementação: (i) as reformas pombalinas realizadas pela elite portuguesa no plano político, inobstante o fato de que os referenciais de que dispunham não traziam molde propício para o adequado desenvolvimento da tarefa; (ii) a construção da passagem, de Lisboa para o Rio de Janeiro, que resultou no domínio da doutrina liberal a partir de três pontos focais: o jornal Correio Brasiliense, a atuação de Silvestre Pinheiro Ferreira e o “liberalismo 136 doutrinário”424; e (iii) o amadurecimento, no final da década de 1830, da perspectiva sobre o arranjo institucional a ser adotado. O autor destaca esses três marcos como um primeiro ciclo nítido do liberalismo no Brasil, sublinhando que o Segundo Reinado (1840-1889) foi uma vivência sui generis na história brasileira, acompanhado de cerca de meio século de estabilidade política.425 Neste item, focaremos nessa passagem da doutrina liberal ao Brasil e em como essas ideias foram sendo absorvidas pelos intelectuais brasileiros. Esse exercício é válido para a compreensão das bases que fundamentaram a ação liberal. Com a Revolução do Porto, exaltaram-se os ânimos tanto do Brasil como de Portugal, advindo dois decênios de turbulência. Uma das fontes pelas quais a elite imperial teve acesso à doutrina liberal consistiu no chamado “liberalismo doutrinário” — como o denomina Antonio Paim —, também chamado de ecletismo ou liberalismo eclético — como o concebe Ubiratan Macedo426 —, o nome que faz referência à corrente francesa427 baseada na filosofia do espiritualismo eclético. Esse pensamento acabou tornando-se vertente dominante no Brasil em grande parte do século XIX, em especial no Segundo Reinado, identificando-se com a monarquia constitucional que se estabeleceu.428 A adoção do Poder Moderador no Brasil foi pautada em uma releitura própria (e diversa) da teoria de Constant, que concebia a liberdade como conceito central de seu sistema e trazia em sua proposta a monarquia constitucional, de governo representativo. O liberalismo doutrinário se desenvolveu em contrapartida a Constant, reunindo um grupo de intelectuais que abarcava, dentre outros, François Guizot (1787-1874) e Pierre- Paul Royer-Collard (1763-1845). Collard foi o fundador da Escola Eclética, sendo seus discípulos Victor Cousin (1792-1867) e Théodore Jouffroy (1796-1842). Note-se que os 424 No que tange à recepção da teoria liberal pelas elites brasileiras, A. Paim frisa a importância de duas figuras, sendo elas, Hipólito da Costa (1774-1823) e Silvestre Pinheiro Ferreira (1769-1846). Ressalta o autor que de 1808 até a proclamação da Independência, o Correio Braziliense foi editado por Hipólito da Costa mensalmente com o propósito de familiarizar a elite ao novo regime. O jornal era montado em Londres e encaminhado ao Brasil, de modo que a abertura dos portos ocorrida em janeiro de 1808, por exemplo, foi comentada somente no número de agosto. Em virtude dessas circunstâncias, desvestiu-se o liberalismo de caráter doutrinário, trazendo comentários sobre obras de interesse da elite brasileira. Desde já essa dinâmica sublinharia o papel dos jornais para veiculação das ideias liberais. In: PAIM, Antônio. História do liberalismo brasileiro. São Paulo: Mandarim, 1998, p. 36-41. 425 Ibid., p. 6-8. 426 MACEDO, Ubiratan Borges de. A idéia de liberdade no século XIX: o caso brasileiro. Rio de Janeiro: Editora Expressão e Cultura, 1997, p. 119. 427 Em sua matriz, a corrente francesa constituiu-se em uma versão do liberalismo inglês, porém não como simples transplante, pois os doutrinários franceses que o trouxeram não estavam centrados no horizonte de preocupações da liderança liberal inglesa. Vale destacar que na obra dos doutrinários e de Kant foi construída a base argumentativa para a crítica do cartismo, expressão inglesa do democratismo continental. In: PAIM, op. cit., p. 41. 428 Ibid., p. 41-42. 137 brasileiros Domingos Gonçalves de Magalhães (1811-1882) e Salustiano José Pedrosa, Visconde de Uruguai (fim do século XVIII-1858), foram alunos de Jouffroy, em Paris.429 O ecletismo de Victor Cousin foi recepcionado no país a partir da busca de uma filosofia secular, enfrentando forte oposição católica, que foi intensificada na década de 60. Ofereceu a corrente uma filosofia política para justificar a forma de governo, trazendo a defesa das teses principais do cristianismo, sem implicar vinculação com a Igreja. A Escola Eclética Brasileira separava filosofia de religião e ciência, contrapondo-se, respectivamente, aos tradicionalistas e naturalistas.430 Era caracterizada pelo empirismo, constituindo suas principais teses com base na liberdade, imortalidade de alma e teísmo. A sua doutrina permaneceu com o nome conferido por seus adversários posteriores.431 Entre 1843 e 1844, foram publicados e traduzidos para o português (por Antônio Pedro de Figueiredo) os dois volumes do Curso de História da Filosofia Moderna de Cousin, em Recife. No Brasil, as referências passariam a estar presentes em sermões, aulas e discursos, como nos trabalhos de Gonçalves de Magalhães — Fatos do Espírito Humano (1858); A Alma e o Cérebro (1876); e Comentários e Pensamentos (1880) — e Antônio de Figueiredo — com demonstração expressiva na revista O Progresso (1846- 1848).432 Em 1859, Frei Monte Alverne (1784-1858) enalteceu, em seu Compêndio de Filosofia, o trabalho de Victor Cousin, trazendo uma das primeiras manifestações inclinadas ao espiritualismo, ainda que estivesse mais próximo do sensualismo433 de Condillac.434 Os traços do liberalismo moderado de Monte Alverne e de Evaristo da Veiga (1799-1837), redator do jornal Aurora Fluminense, tiveram influência na afirmação do 429 PAIM, Antônio. História do liberalismo brasileiro. São Paulo: Mandarim, 1998, p. 42-43. 430 MACEDO, Ubiratan Borges de. A idéia de liberdade no século XIX: o caso brasileiro. Rio de Janeiro: Editora Expressão e Cultura, 1997, p.72-76. 431 Ibid., p.64-65 e 72. 432 DURAN, Maria Renata da Cruz. Ecletismo e retórica na filosofia brasileira: de Silvestre Pinheiro Ferreira (1769-1846) ao frei Francisco do Monte Alverne (1784-1858). Almanack [online], n. 9, p. 115- 135, jan./abr. 2015. Disponível em: https://doi.org/10.1590/2236-463320150909. Acesso em: 21 fev. 2022, p. 119. 433 Para Monte Alverne, “O sensualismo, e o idealismo, a escola de Locke, e a phiosophia escosseza dorão- se as mãos; e a razão pura de Kant sentando-se no lugar da reflexão de Locke, ofereceu os verdadeiros elementos do espirito humano, as legitimas fontes das idéias, e resolveu os mais difficeis problemas da Psycologia, que dividião o mundo phiosophico”. In: ALVERNE, Fr. Francisco do Monte. Compendio de Philosophia. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1859. Disponível em: https://archive.org/details/MontAlverne-CdF-1859/mode/2up?q=locke. Acesso em:21 fev. 2022, p. 105. 434 MACEDO, op. cit., p.78. 138 princípio da liberdade435 contra a tirania, traços oferecidos por Magalhães.436 Gonçalves de Magalhães, por sua vez, endereçou diversas cartas a Monte Alverne contendo referências a esse pensamento.437 Relativamente ao ecletismo político, encontramos os discursos de Bernardo Pereira de Vasconcelos (1795-1850); a ação política do estadista e diplomata brasileiro Honório Hermeto, Marquês do Paraná (1801-1856); e de Joaquim José Rodrigues Torres, Visconde de Itaboraí (1802-1872). Os primeiros artigos de Tobias Barreto, em 1868, assumiam uma feição inclinada ao eclético.438 Conforme A. Paim, as obras de Pimenta Bueno — Direito Público Brasileiro (1857) — e Paulino José Soares de Souza, Visconde de Uruguai — Ensaio sobre o Direito Administrativo (1862) —, estavam entre as mais significativas no período acerca das instituições imperiais.439 Também podem ser apontados os trabalhos de Justiniano José da Rocha (Ação, Reação e Transação, 1855); e de José de Alencar (O Sistema Representativo, 1868).440 Nesta última obra, é relevante observar que José de Alencar pontuava que o princípio da representação era a base da Constituição do Estado e que a democracia se tornaria possível quando as nações atingissem justa e perfeita delegação da soberania. Para ele, a divisão dos poderes e as formas de governo não passavam de complementos, pois a essência da liberdade estaria no governo de todos para todos.441 Porém, permanecia uma visão conservadora e restritiva sobre a participação política. Na visão de Alencar, o voto era elemento da soberania, mas a representação era meio de concentrar a vontade nacional para se organizar o poder político, de maneira que 435 Na obra A Alma e o Cérebro, Gonçalves de Magalhães abordava a questão da liberdade, que para ele teria sido despojada pelos cientificistas, defendendo que o lugar da liberdade precisava ser repensado como elemento da construção moral do homem. Para ele, essa construção moral clarificava a formação da ordem social e a ideia de nação que emergia. In: KODAMA, Kaori. Um discurso sobre ciência, religião e liberdade no Segundo Reinado: A Alma e o Cérebro, de Gonçalves de Magalhães. Revista da SBHC, Rio de Janeiro, v. 3, n. 2, p. 146-155, jul./dez. 2005. Disponível em: https://www.sbhc.org.br/arquivo/download?ID_ARQUIVO=137. Acesso em: 21 fev. 2022, p. 151. 436 VIEIRA, Lidiane Rezende. Evaristo da Veiga e a recepção do liberalismo francês nas páginas do jornal Aurora Fluminense (1827-1835). 2016. 119 f. Dissertação (Mestrado em Ciência Política) — Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016. Disponível em: https://www.bdtd.uerj.br:8443/handle/1/12491. Acesso em: 18 fev. 2022, p. 30-31. 437 Além dos nomes citados, algumas figuras vinculadas à corrente foram João da Veiga Muricy — em Compêndio de Filosofia Elementar (1846); Manoel Maria de Moraes e Valle — Elementos de Filosofia (1851); Eduardo Ferreira França — Investigações de Psicologia (1854); e Pedro Américo — La Science et les Systhémes (1869). In: MACEDO, Ubiratan Borges de. A idéia de liberdade no século XIX: o caso brasileiro. Rio de Janeiro: Editora Expressão e Cultura, 1997, p.79-80 e 85. 438 Ibid., p.78-84. 439 PAIM, Antônio. História do liberalismo brasileiro. São Paulo: Mandarim, 1998, p. 67. 440 MACEDO, op. cit., p.78-84. 441 ALENCAR, José de. O systema representativo. Rio de Janeiro: B. L. Garnier, 1868. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/185589. Acesso em: 21 fev. 2022, p. 9. 139 os princípios dessa personalidade política seriam imutáveis e concernentes tanto aos liberais quanto aos conservadores nos países representativos, e não propriedade de um em detrimento do outro.442 As tendências conservadoras prevaleceriam no pós- independência, inclusive entre os liberais. Silvestre Pinheiro Ferreira (1769-1846) foi estudado por A. Paim como o primeiro dos ecléticos. O seu empenho especulativo, contudo, derivou efetivamente do ecletismo português do século XVIII e Silvestre Pinheiro Ferreira deixou o Brasil antes da Independência. Ele se tornaria amigo de Cousin.443 Em Manual do cidadão em um governo representativo (1834) — correspondente à versão popular, em forma de diálogo, do Curso de Direito Público Interno e Externo (1830) —, o autor comentava temas como liberdade individual, segurança pessoal, direitos políticos e o que denominou como “poder conservador”.444 Esse poder seria, segundo ele, responsável por assegurar aos cidadãos a harmonia e independência entre os poderes. Tal ideia, contudo, não trazia a concentração do poder na pessoa do Imperador — como ocorreu com o Poder Moderador —, mas o diluía nas instituições.445 Silvestre Pinheiro Ferreira teve como principal contribuição sua doutrina da representação política, que foi abraçada pela liderança liberal do Império. Para o autor, a representação era de interesses. A sua visão sobre o “direito constitucional”, como então se chamava o liberalismo político, tratava-o como um amplo sistema filosófico. Ele era amigo de José da Silva Lisboa, Visconde de Cairu. A maneira como entendia a doutrina liberal — contraposta tanto ao democratismo (designado, por vezes, de liberalismo radical) como ao conservadorismo católico — foi abraçada pelo grupo vitorioso no pós- independência. De acordo com A. Paim446 e Ubiratan Macedo,447 as principais teses dos doutrinários estavam fundamentadas nas seguintes premissas: (i) a ideia de que a Revolução Francesa era um evento a ser aceito com suas consequências, como um 442 ALENCAR, José de. O systema representativo. Rio de Janeiro: B. L. Garnier, 1868. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/185589. Acesso em: 21 fev. 2022, p. 9. 443 MACEDO, Ubiratan Borges de. A idéia de liberdade no século XIX: o caso brasileiro. Rio de Janeiro: Editora Expressão e Cultura, 1997, p.78. 444 Para Ferreira, o exercício desse poder, no que diz respeito à manutenção dos direitos civis, pertencia a “todos os cidadãos, e e1les a exercem fazendo uso do direito de petição, ou dà resistencia legal”. In: PINHEIRO-FERREIRA, Silvestre. Manual do cidadão em um governo representativo, ou, Principios de direito constitucional, administrativo e das gentes. Tomo I. Paris: Rey e Gravier, 1834. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/item/id/555729. Acesso em: 21 fev. 2022, p. 322. 445 PAIM, Antônio. História do liberalismo brasileiro. São Paulo: Mandarim, 1998, p. 40. 446 Ibid., p. 43. 447 MACEDO, op. cit., p. 118-128. 140 caminho prático e teórico, sem volta para o Antigo Regime; (ii) a noção de que o referido evento não falhou, porém a doutrina teórica do democratismo era falha; (iii) o constitucionalismo era condição indispensável de organização do Estado, concebendo direitos e liberdades individuais, como resultado de circunstâncias históricas concretas; (iv) a soberania popular era como um mito — e daí a discordância frontal com Benjamin Constant —, de maneira que à Câmara cabia a representação de interesses e correntes de opinião, mas não a ideia abstrata de povo; e (v) no que tange ao sistema representativo, a perspectiva de que não era sua incumbência representar interesses, mas todas as instituições do país, a Monarquia incluída. No mais, inadmitia-se o Poder Moderador. O ecletismo foi corrente teórica de importância para conferir suporte filosófico ao liberalismo da Constituição de 1824, familiarizando a elite imperial com as teses liberais448 e provendo o ensino oficial do Segundo Reinado.449 A larga circulação de jornais, principalmente a partir da abertura dos portos e o comentarismo sobre o arcabouço teórico liberal da época revestiram o liberalismo de um caráter doutrinário, trazendo apontamentos sobre obras de interesse da elite brasileira. O liberalismo foi abraçado pelas elites brasileiras, com traços de contraposição a Constant e ao democratismo, o que teve consequências para as ideias adotadas na nova ordem constitucional e para o cenário pós-Independência. É crucial ter em vista o papel da imprensa na veiculação das ideias liberais, que contribuiu para ampliar o seu escopo. A recepção do ideário liberal, até pela condição geopolítica em que o Brasil se encontrava e considerando a busca das elites intelectuais pelas Universidades europeias, era inevitável. Em um primeiro momento, as ideias liberais eram tomadas como argumentos de autoridade para justificar a ação política. Já no Segundo Reinado, transformações políticas e sociais possibilitaram o desenvolvimento de visões próprias. O fato é que houve antes apropriação de ideias, em detrimento de um transplante de ideias, o que pode ser notado pelas estratégias que se faziam valer pela retórica liberal. Antes de passarmos ao capítulo seguinte e abordarmos a desenvoltura desse pensamento próprio e as mudanças experimentadas pelo liberalismo e pelo Direito nesse sentido, faremos uma ponderação sobre o fim do liberalismo heroico e o liberalismo pós- Independência, tendo em vista a construção de uma ordem jurídica excludente. 448 PAIM, Antônio. História do liberalismo brasileiro. São Paulo: Mandarim, 1998, p. 67. 449 MACEDO, Ubiratan Borges de. A idéia de liberdade no século XIX: o caso brasileiro. Rio de Janeiro: Editora Expressão e Cultura, 1997, p. 38-39. 141 2.6 UM BALANÇO DAS TRANSFORMAÇÕES NO LIBERALISMO BRASILEIRO PÓS-INDEPENDÊNCIA O liberalismo no Brasil não era revestido, em um primeiro momento, de significado específico, sendo identificado como liberalidade.450 Os políticos que receberam a tarefa de organizar a nova ordem jurídica não eram inexperientes, mas depararam-se com uma série de conceitos que prometiam trazer o país recém- independente para o grupo das nações “cultas” e “civilizadas”. Um primeiro significado estava vinculado à ideia de libertação da metrópole. O papel do liberalismo revolucionário foi trazer a esperança emancipatória: em relação ao governo português e a partir da promessa de melhoria na situação de liberdade e de mobilidade social. A utopia criada em torno da Independência unia amplos setores sociais para esse objetivo, ignorando momentaneamente propósitos internos e por vezes contraditórios de uns grupos em relação aos outros. O processo de Independência contou com o apoio do herdeiro do trono português, que visava, contudo, a satisfação de seus próprios anseios. Alcançada a separação entre metrópole e colônia, um caminho aparentemente linear se seguia para a fundação da ordem constitucional. Vencido na Independência o partido português, as diferenças logo começaram a se fazer notar nos segmentos do partido brasileiro. Nos debates da Constituinte, o partido brasileiro se cindiu preponderantemente em duas tendências, que passaram a ser denominadas de moderadas ou conservadoras e exaltadas ou radicais. Estas últimas traziam as reminiscências do heroísmo e estavam mais aproximadas do liberalismo das revoluções, ao passo que as primeiras adotavam as ideias liberais, mas como intenção clara de conservar as estruturas existentes, com a forte insistência no instituto da escravidão. D. Pedro simbolizava a mantença do conservadorismo, centralização política, elitismo e estrutura escravocrata. Esse foi um dos fatores que gerou a aproximação e a aliança entre ele e as tendências não radicais, garantindo a vitória de um liberalismo autoritário.451 Nesse sentido, na linha do que argumenta Gladys Sabina Ribeiro, o 450 NEVES, Lucia Maria Bastos Pereira das. Nas margens do liberalismo: voto, cidadania e constituição no Brasil (1821-1824). Revista de História das Ideias, v. 37, p. 55-77, 2019. Disponível em: https://impactum-journals.uc.pt/rhi/article/view/2183-8925_37_3. Acesso em: 26 fev. 2022, p. 57. 451 MARTINS, Eduardo. A Assembléia Constituinte de 1823 e sua posição em relação à construção da cidadania no Brasil. 2008. 201 f. Tese (Doutorado em História) — Faculdade de Ciências e Letras de Assis, Universidade Estadual Paulista (UNESP), 2008. Disponível em: https://repositorio.unesp.br/handle/11449/103173. Acesso em: 20 fev. 2022, p. 141. 142 processo de Independência não reflete uma lógica natural dos fatos. Houve um movimento geral de simpatização com a “causa do Brasil” e, de outro lado, ocorreu intensa repressão dos expressivos movimentos de escravos e libertos, que tiveram importante papel nos acontecimentos.452 Dessa maneira, o liberalismo oitocentista, em uma primeira fase, “associava os descontentamentos brasileiros ao despotismo do Antigo Regime e à sua forma de administrar o território americano”.453 A noção de liberdade que se formou nos caminhos da Constituinte de 1823 estava, em grande medida, ligada à ideia de autonomia, colocando Brasil e Portugal um de cada lado. Tanto que os próprios termos “escravidão” e “escravizados” foram utilizados incessantemente no cerne dos debates parlamentares para remeter aos “colonizados” e à condição de colônia como uma forma de escravidão. O liberalismo pós-Independência passou a ser então relacionado com a qualidade de ser liberal, sendo utilizado para se referir ao “bem da pátria” e à liberdade de forma genérica, ao respeito da ordem e das leis e mesmo ao respeito à figura do monarca.454 Em março de 1824, quando Dom Pedro I outorgou a Constituição e acabou a aventura liberal da primeira Constituinte, pairava uma certa impressão de “farsa” quanto ao liberalismo, em razão da adequação social de seu uso.455 Politicamente, a liberdade ou “liberalidade” sobre si e seus bens passou a compor a definição de quem eram os cidadãos brasileiros. A ideia de Estado no Brasil chegou antes do conceito efetivo de nação. Definiu-se quem eram ou não os cidadãos brasileiros, antes mesmo que eles formassem o desejo de serem cidadãos.456 O isolamento do escravo e o pacto realizado se fizeram valer e foram institucionalizados a partir da Constituição de 1824, a partir da escolha deliberada de estabelecer que o Direito não repousaria sobre a sua figura, visto que o escravo não era 452 RIBEIRO, Gladys Sabina. O desejo da liberdade e a participação de homens livres pobres e “de cor” na Independência do Brasil. Cadernos CEDES [online], v. 22, n. 58, p. 21-45, dez. 2002. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ccedes/a/bxjjzk7MbDH5RBXbFgnwZqm/abstract/?lang=pt#. Acesso em: 20 fev. 2022, p. 21. 453 Ibid., p. 25. 454 NEVES, Lucia Maria Bastos Pereira das. Nas margens do liberalismo: voto, cidadania e constituição no Brasil (1821-1824). Revista de História das Ideias, v. 37, p. 55-77, 2019. Disponível em: https://impactum-journals.uc.pt/rhi/article/view/2183-8925_37_3. Acesso em: 26 fev. 2022, p. 58-62. 455 SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis. 34 ed. São Paulo: Duas Cidades, 2000, p. 49 e 79. 456 MARTINS, Eduardo. A Assembléia Constituinte de 1823 e sua posição em relação à construção da cidadania no Brasil. 2008. 201 f. Tese (Doutorado em História) — Faculdade de Ciências e Letras de Assis, Universidade Estadual Paulista (UNESP), 2008. Disponível em: https://repositorio.unesp.br/handle/11449/103173. Acesso em: 20 fev. 2022, p. 106. 143 pessoa e, portanto, não era sujeito de direitos. Para ter uma pequena fatia de mínimos “privilégios” sociais, era preciso o afastamento máximo do mundo dos escravos. O liberto nascido no Brasil precisava ser separado dos escravos, já que a liberdade foi tomada como uma das marcas divisórias da cidadania. Mas ele não tinha lugar no mundo dos brancos, então outras barreiras, como as econômicas e políticas (quanto ao direito de representação, por exemplo) precisavam ser colocadas para impedi-lo de acessar locais que não lhe eram devidos aos olhos das elites. Os libertos não queriam ser confundidos com os escravos, e manter a sua condição significava o total afastamento do mundo onde a liberdade não imperava. Um Direito de bases excludentes se consolidou e, ao lado dele, um liberalismo autoritário e de caráter estamental. A ordem que se estabeleceu era pretensamente nova, mas continuava como algo velho, ao exemplo da mão de obra escrava. A retórica jurídica fabricada reinventou ou readequou o liberalismo às condições políticas, econômicas e sociais em que se fundamentava o Brasil.457 A “corrida” dividida entre D. Pedro — com o auxílio do partido português — e o partido brasileiro no espaço da Constituinte pode claramente ser interpretada como a aceitação de que a Constituição, naquele momento, conotava poder na lógica política que se estabelecia. Todo esse movimento que engloba a sua instituição até o seu fim traz esse significado e a noção de se legitimar os meios utilizados através da norma. É exatamente por isso que a Constituição vai ser posta como parâmetro do debate.458 A partir da dissolução da Constituinte, eram suprimidas ideias como a emancipação — ainda que gradual — dos escravos, a conferência de maior autonomia às províncias e a adoção de três poderes. Foram refutadas, assim, ideias mais radicais, em especial aquelas vinculadas a tendências democráticas. O liberalismo heroico captado para o objetivo da Independência deu o seu último suspiro. As definições constitucionais eram bastante estritas e refletiam uma preocupação minuciosa com a terminologia, ao exemplo das palavras “cidadão” e “brasileiro”. Esse direcionamento tinha o viés de buscar o impedimento de qualquer uso das disposições constitucionais para além daquelas vislumbradas pelo monarca e o Conselho. 457 MARTINS, Eduardo. A Assembléia Constituinte de 1823 e sua posição em relação à construção da cidadania no Brasil. 2008. 201 f. Tese (Doutorado em História) — Faculdade de Ciências e Letras de Assis, Universidade Estadual Paulista (UNESP), 2008. Disponível em: https://repositorio.unesp.br/handle/11449/103173. Acesso em: 20 fev. 2022, p. 96 e 121-125. 458 VELLOZO, Júlio César de Oliveira. Aula Magna — Constitucionalismo e Independência do Brasil. Aula ministrada à Universidade Metodista. 7 mar. 2022. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=h0iyqF6YWKo. Acesso em: 7 mar. 2022. 144 Em última instância, o pacto que era celebrado na Constituição de 1824 era aquele dos proprietários de escravos. Fica evidente o interesse por trás das tendências conservadoras que se fizeram valer, que permaneceria protegido mesmo após a abdicação de D. Pedro I. O conhecimento adquirido pelo grupo beneficiado abrangia, assim, a ideia das normas como forma de organização social e seu poder instrumental de controle. A exclusão dos grupos “subalternos” teve a sua instituição pela via legal e o estabelecimento de direitos ocorreu, contudo, pela mesma via, mas de maneira lenta e calculada, quando dentro desse espectro de controle. Pensando na recepção das ideias liberais, não houve ingenuidade das elites brasileiras na sua absorção ou instrumentalização. O paradoxo entre liberdade e escravidão foi levado ao seu extremo, tornando-se cada vez mais uma contradição normalizada. Essas ideias vão, dessa maneira, ocupar lugar central na forma de se conceber o próprio Direito e as normas que predominariam até o fim do século. Portanto, o caminho que foi traçado estava construindo um liberalismo estamental. Ainda que as ideias liberais não tenham sido adotadas em seu sentido puramente clássico, elas não eram contrárias ao ideário liberal, assumindo suas contradições e paradoxos inerentes — como o relacionamento com a escravidão — e ajustando-se à organização do poder estabelecida. Para manterem seus recursos e interesses, as elites precisaram se flexibilizar e se adaptar, aceitando as arbitrariedades possibilitadas pela instituição do Poder Moderador. O liberalismo depois de 1824-33 acabou se domesticando e se curvando em relação a uma estrutura política mais autoritária do que as elites proprietárias esperavam e aceitavam. D. Pedro II era conhecido como uma figura liberal, mas a supressão dos levantes e o ato de arbitrariedade de dissolução da Constituinte provocou resistência, cuja pacificação e derrota representaram o fim do heroísmo, do liberalismo heroico, e o nascimento de um Direito excludente, misturado com um liberalismo estamental que se formava. 145 3. LIBERALISMO DO SILENCIAMENTO: MANUTENÇÃO E REFORMA DA ORDEM JURÍDICA As reminiscências de um liberalismo de tendência mais radical — que responsabilizava a nova política econômica pelos privilégios da elite, pugnava pela reforma agrária e pelo fim da escravidão — não tardaram ao silenciamento na inconstância política e social da Regência (1831-1840).459 Conflitos contínuos entre as Províncias e o governo central reuniam as preocupações políticas no medo do separatismo, suprimindo o espaço para debates mais abrasivos dos legisladores, especialmente no que se diz respeito à mão-de-obra. Nos anos subsequentes, prevaleceu o entendimento de que a questão a ser resolvida era a organização da representação.460 O Segundo Reinado (1840-1889), com a ascensão de Dom Pedro II ao trono — sendo ele o governante que ficou mais tempo no poder na história do Brasil —, foi caracterizado por intensas transformações e, além do uso das referências europeias, formou-se um pensamento brasileiro próprio. Estabeleceram-se os partidos políticos, cuja formação se estendeu ao longo das duas primeiras décadas após a Independência, de tal modo que liberais e conservadores se revezaram no poder em um período de aparente estabilidade, que era pautado por inflamadas disputas entre quatro paredes no Parlamento.461 Tal como explica Angela Alonso, é recorrente a tese fundamentada em desajustes entre sistemas de pensamento importados versus a realidade brasileira, sem uma maior atenção para modulações contextuais. Esse sentimento de importação que paira entre nós é acompanhado pela referência ao desenvolvimento do capitalismo no Brasil e pela dicotomia centro-periferia, apontando para um “descompasso” de ideias. Porém, mais do que mera importação, ocorreu a apropriação de ideias. Daí temos perspectivas, como a de Schwarz, que anteveem novas funções para o liberalismo, apesar de não trazerem, muitas vezes, ações concretas de seus atores ou a conjuntura da qual emergiram.462 459 COSTA, Emília Viotti da. Da Monarquia à República: momentos decisivos. 6. ed. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1999, p. 150. 460 PAIM, Antônio. História do liberalismo brasileiro. São Paulo: Mandarim, 1998, p. 48-50. 461 MACEDO, Ubiratan Borges de. A idéia de liberdade no século XIX: o caso brasileiro. Rio de Janeiro: Editora Expressão e Cultura, 1997, p. 38. 462 ALONSO, Angela. Apropriação de ideias no segundo reinado. In: GRINBERG, Keila; SALLES, Ricardo. [org.]. Coleção O Brasil Império. v. III (1870-1889). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. p. 1-31. Disponível em: https://www.academia.edu/3958211/Apropria%C3%A7%C3%A3o_de_id%C3%A9ias_no_segundo_r einado. Acesso em 10 abr. 2022, p. 1-2. 146 As bases intelectuais do início do liberalismo brasileiro podem, segundo Thomas Flory, ser compreendidas em duas partes: de um lado, tinha-se certo compromisso filosófico formal extraído da Europa; e, de outro, os liberais daqui desenvolveram as suas mudanças com base em visões próprias da realidade brasileira.463 Para o autor, após a Independência, a primeira geração de líderes políticos do Brasil começou a construir um Estado que se fortaleceu quase até o final do século, porém: [...] A explicação do próprio intervalo liberal, no entanto, permanece obscura. Certamente, o termo liberal sugere alguns correlatos ideológicos genéricos no mundo atlântico do século XIX. Até certo ponto, as contribuições intelectuais para o liberalismo brasileiro podem ser lucrativamente atribuídas a fontes estrangeiras, mas a questão mais ampla da praticabilidade em termos puramente brasileiros também precisa ser levantada. Em si mesmo um corpo de pensamento e comportamento de transição, o liberalismo brasileiro era de fato menos dependente de modelos estrangeiros do que era uma resposta prática e reflexiva às condições políticas e socioeconômicas de transição do início do período nacional.464 Flory clarifica, desse modo, que é inegável a mobilização dos referenciais estrangeiros, o que decorre do próprio contexto político em que o país se inseria e do desejo de ter “uma fatia do bolo” no âmbito das relações e oportunidades políticas e econômicas que surgiam em um momento de profundas transformações na esfera internacional, que influíam na realidade local. Em uma primeira etapa, essas ideias surgem e são absorvidas sem demonstrar um encaixe com as particularidades brasileiras e, em uma segunda etapa, para além de serem utilizadas meramente como argumentos de autoridade e espelhos para o pensamento nacional, passam a ser apropriadas e digeridas, inclusive, e principalmente, nas relações de exploração e dominação. O que pretendemos frisar, na linha de Alonso, é que (i) as análises que tomam o movimento de ideias como algo estritamente intelectual, em um campo autônomo, acabam gerando resultados distorcidos, já que no Brasil dos Oitocentos não existiam instituições intelectuais em sentido estrito, senão uma carreira pública única para os seus atores. Não há como cindir, assim, intelectuais de ativistas políticos. Por isso que viemos abordando a teoria e prática do liberalismo em conjunto, buscando compreendê-lo em seu viés doutrinário e por meio da ação jurídico-política. Além disso, (ii) não se pode dizer 463 FLORY, Thomas. Judge and Jury in Imperial Brazil, 1808-1871. Austin: University of Texas Press, 2014. E-book Amazon, posição 360. Tradução livre. 464 Ibid., posição 128. Tradução livre. 147 que havia uma distância intransponível entre as realidades metropolitanas e coloniais ao ponto de que quaisquer ideias “emprestadas” ficariam deslocadas. Essa simplificação anula as semelhanças e padrões compartilhados na cultura ocidental. Também retira a perspicácia e capacidade de discernimento dos atores envolvidos, colocando as ideias como sujeitos do processo. Vale abandonar a perspectiva de mera imitação, em favor da apropriação de ideias, admitindo a capacidade de escolha interessada desses agentes, conforme as experiências e dilemas que os afetaram.465 Apresentada a proposta de Schwarz como ponto de partida, seguimos argumentando que apesar do aparecimento de ideias estrangeiras — em especial, das liberais — ter sido um processo inevitável pela própria lógica econômica na qual o país estava inserido, não é condizente admitir um simples transplante apático de ideias. E quais implicações isso traz para a compreensão do Direito no Brasil a partir do liberalismo? A primeira delas é que o ideário liberal era visto como sinônimo de constitucionalismo e quando da sua primeira manifestação aqui, tinha-se um Brasil colônia, sem sociedade civil formada. A construção do Estado a partir da Independência vai fazer uso das ideias liberais, de modo que as próprias noções de liberalismo e Direito se entrelaçarão nesse processo. Como motor da Independência, o liberalismo funcionou como uma “liga” dos interesses da população brasileira, aliciando os mais diversos setores para esse objetivo, cada um com suas próprias pautas. Se liberalismo e Direito passariam a ser vistos quase como “irmãos” nesse início, isso significa que entender a constituição do liberalismo e o seu papel é também, em última instância, compreender o Direito brasileiro em sua concepção. Em razão dessa falta de especificidade do Direito pré-contemporâneo — que difere do Direito atual, com suas próprias técnicas, rituais e atributos — teoria e ação política andavam intimamente ligadas na construção do pensamento jurídico brasileiro. Extraímos então desse cenário a premissa de que o liberalismo e o Direito são diferentes no Brasil em relação à realidade dos países “centrais”, possuindo particularidades em sua realidade material que nos auxiliam no entendimento do contexto nacional e das causas de exclusão e reiteração de desigualdades, primordialmente da população negra. 465 ALONSO, Angela. Apropriação de ideias no segundo reinado. In: GRINBERG, Keila; SALLES, Ricardo. [org.]. Coleção O Brasil Império. v. III (1870-1889). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. p. 1-31. Disponível em: https://www.academia.edu/3958211/Apropria%C3%A7%C3%A3o_de_id%C3%A9ias_no_segundo_r einado. Acesso em 10 abr. 2022, p. 3. 148 Colacionando essas particularidades, falamos da patronagem, clientelismo e passagem para o status da Independência sem o abandono de estruturas arcaicas e coloniais, prevalecendo uma ideia contraditória de modernização — tal como vimos em Viotti. Schwarz falou do favor e do sentimento de desconforto no uso dessas ideias frente à realidade nacional. Outra característica marcante foi o apego à escravidão, que seguia como contradição própria do liberalismo, reafirmada pelo Direito que se consolidava. Mas o paradoxo liberalismo-escravidão não é único do Brasil. Então por que conferir ênfase à sua relação com liberalismo no Brasil oitocentista? A particularidade não está na convivência com a escravidão, mas na realidade material brasileira, que revela a longevidade do instituto e um tratamento jurídico de aliciamento contra os escravos, conferido aos grupos subalternizados. Os libertos brasileiros foram aliciados contra os escravos através das ideias do liberalismo, em uma estratégia arquitetada pelas elites nacionais, da qual outros setores fizeram parte — comerciantes, profissionais autônomos etc. Houve benefícios mútuos provenientes desse pacto para os envolvidos, à exceção de um setor marginalizado que não teria a sua situação jurídica mudada, de forma estrutural, até os fins do século. Foi contornada a pressão estrangeira para o fim da escravidão, diante de manobras teórico-políticas, inclusive por meio da atividade legislativa. Algumas razões foram determinantes na adoção e impulsionamento de medidas jurídicas voltadas para os grupos de libertos, e depois de escravos, na segunda metade do século XIX (ainda que por vezes essas medidas legais fossem ambíguas, lentas e graduais), que se chocavam com os interesses das elites dominantes, sendo elas: (i) a pressão popular e os movimentos contestatórios; (ii) a pressão estrangeira, em especial, da Inglaterra; (iii) as transformações econômicas e sociais, dentre as quais, o crescimento da população e da vida urbana; e, em virtude delas, (iv) a diversificação de interesses, até mesmo no âmago das elites, com mais intensidade nos fins do século. Contudo, o que essa interpretação de corte jurídico-político das particularidades do liberalismo tem a dizer sobre o Direito brasileiro? Desse arcabouço é possível aferir que, se o capitalismo se alimenta das desigualdades, será também sobre elas que o liberalismo e o Direito brasileiro vão se fazer valer em seus pilares. O Direito funcionou como uma chave de regulação entre liberalismo e escravidão, afastando e aproximando ambos a depender das necessidades dos grupos ocupantes de posições de poder. 149 Longe de ser um ingênuo transporte de ideias, os liberais — membros das elites intelectuais brasileiras — vão se utilizar do ideário para instrumentalizar a garantia de seus interesses, com fulcro na escravidão para tanto. Afinal, os setores que ascenderam e permaneceram no poder eram os proprietários de escravos e terras. Foi sendo realizada uma “modernização” em cima de bases arcaicas, no próprio Direito, adotando-se o constitucionalismo a partir de uma estrutura de cunho absolutista. O Conselho de Estado e o Poder Moderador foram suprimidos no auge do liberalismo heroico da Independência, para depois serem retomados e extinguidos somente com o fim da Monarquia. Não interessavam mudanças estruturais aos liberais, nem mesmo as animosidades do Imperador, desde que seus interesses estivessem garantidos, o que foi realizado através do pacto contra os escravos — argumento que defendem Almeida e Vellozo. Do ponto de vista jurídico, trouxemos alguns marcos para esse sentimento de desconforto proveniente da modernização sob estruturas em estado de degradação e que serviram para consolidar o pacto, sob as bases de um Direito altamente excludente. Dentre esses marcos, falamos das repercussões da dissolução da Constituinte e do advento da ordem constitucional de 1824 que, ao revés das promessas realizadas, ignorava a figura dos escravos, trazendo um conceito de cidadania que abrangia, em alguma medida, os libertos, mas sem conferir-lhes voz política ou mesmo oportunidades reais de inserção econômica e social. A Constituição trazia, fazendo uso do termo de James Holston, um tratamento “inclusivamente desigual”,466 estendendo a cidadania ao mesmo tempo em que se baseava em uma distribuição desigual de direitos. Sobre isso, Yuko Miki elucida que em nenhum lugar isso foi mais evidente do que na ausência do termo “igualdade” na Constituição de 1824. A cidadania no Brasil diferia dos modelos norte-americanos e franceses, fundamentados em uma distribuição de direitos “tudo ou nada”.467 Com a divisão dos direitos de cidadania em civis e políticos, estes últimos estavam reservados apenas para alguns, de modo que se tinha a bifurcação constitucional implícita entre cidadãos passivos e cidadãos ativos (votantes e eleitores).468 A grande maioria da população era de cidadãos passivos, sem direito de voto. Ainda assim, os libertos 466 HOLSTON, James. Insurgent Citizenship: disjunctions of democracy and modernity in Brazil. Princeton, New Jersey: Princeton University Press, 2008. 467 MIKI, Yuko. Frontiers of Citizenship. A Black and Indigenous History of Postcolonial Brazil. Cambridge: Cambridge University Press, 2018, p. 35. 468 MIKI, loc. cit. 150 atingiram importantes ganhos, como o direito de ter propriedade, manter uma família, ter direito à herança, podendo, contudo, votar apenas nas eleições primárias, sendo inelegíveis para trabalhar como funcionários públicos. Da Independência até a abdicação de D. Pedro I em 1831, fortes conflitos ocorreram no período de organização constitucional, no qual três facções extremadas se destacavam: os liberais radicais; os chamados autoritários, defensores da monarquia absoluta; e os conciliadores, que buscavam as fórmulas que permitissem a estruturação de uma monarquia constitucional.469 Destarte, o liberalismo operou como legitimador da política de tendência moderna. O grupo liberal radical identificava o liberalismo com o progresso, trazendo a tensão entre as práticas do ideário e da democracia, não aceitando, inobstante, esta última de maneira integral. De outro lado, a postura mais moderada valorizava a tradição, com uma espécie de liberalismo de restauração, e sofria influências religiosas, colocando a Constituição em um patamar de código sagrado da nação. Essa última postura interveio na montagem e funcionamento do regime e na capacidade de certos setores sociais de escolherem seus representantes.470 O liberalismo era, de fato, visto como um conjunto de ideias sagradas, emancipadoras, que haviam guiado as nações “cultas” e “civilizadas” para o reino da liberdade, onde os escolhidos (sujeitos de direito proprietários) tinham lugar. Apesar da contínua utilização do liberalismo como forte mecanismo retórico, vimos que a Independência não teria ocorrido sem a reunião de outros setores para além da elite e, principalmente, das manifestações e constantes lutas de escravos e libertos. Do lado do “partido português”, a Independência estava longe de ser vista como efetiva separação de Portugal. No decorrer da década de 1820, a linguagem sobre as virtudes e a percepção do passado como reservatório de princípios esteve presente nas variadas tendências de interpretação do mundo liberal, trazendo em sua chave tópica a ideia de restauração. Já nos anos de 1830, adveio uma valorização da experiência, das circunstâncias e do “grau” de civilização ou “progresso” do país, de modo que foram perdendo espaço as referências clássicas. Isso não foi resultado exclusivo da filiação intelectual a teorias 469 PAIM, Antônio. História do liberalismo brasileiro. São Paulo: Mandarim, 1998, p. 48-50. 470 NEVES, Lucia Maria Bastos Pereira das. Nas margens do liberalismo: voto, cidadania e constituição no Brasil (1821-1824). Revista de História das Ideias, v. 37, p. 55-77, 2019. Disponível em: https://impactum-journals.uc.pt/rhi/article/view/2183-8925_37_3. Acesso em: 26 fev. 2022, p. 71. 151 europeias, mas da necessidade de se reagir a um conjunto de fenômenos que forçavam uma reorientação da atividade política.471 O Ato adicional de 1834,472 que promoveu alterações na Constituição, foi corriqueiramente chamado à época de “verdadeira Independência” do Brasil473 e colocou, ainda que momentaneamente, termo ao Poder Moderador e ao Conselho de Estado, através da supressão das disposições que tratavam destes (Art. 31 e seguintes, Título 5º, Capítulo VII, da Constituição de 1824). Partindo da iniciativa da Câmara dos Deputados, o Ato também conferiu maior importância à atuação e poder decisório das Assembleias — e Câmaras dos Distritos —, que substituíram os Conselhos Gerais (Art. 1º e seguintes), procurando lançar uma semente para perspectivas de maior descentralização do poder. Por conseguinte, a Lei de Interpretação do Ato Adicional474 caracterizou-se como projeto reformista dos liberais que pleitearam a abdicação de D. Pedro I. A monarquia federativa contribuiu para o declínio da autoridade da Regência, assim como para o início da crise de desmonte e transição do Primeiro ao Segundo Reinado. A norma revogava a competência legislativa das Províncias e determinava o controle da polícia judiciária pelo Poder Executivo Central. Publicada em 12 de maio de 1840, a Lei de Interpretação acalmou as apreensões conservadoras, mas também abriu campo ao Regresso.475 Era o fim do “avanço liberal” do século. Iniciou-se uma fase de constante omissão do Direito quanto à escravidão, sem quaisquer projeções concretas voltadas à pauta emancipatória, que prevaleceu até a década de 1840. Passado o fervor da Independência e a instabilidade do período regencial, liberalismo e Direito passam a ter que enfrentar os problemas locais e as transformações econômicas que indicavam novos rumos para o país e foi ao longo do Segundo Reinado 471 RAUTER PEREIRA, Luisa; SENA, Hebert Faria. A historicidade do político: o debate sobre representação e cidadania no Império Brasileiro (1823-1840). História da Historiografia: International Journal of Theory and History of Historiography, Ouro Preto, v. 9, n. 22, 2017. Disponível em: https://www.historiadahistoriografia.com.br/revista/article/view/1056. Acesso em: 27 fev. 2022, p. 268-269. 472 BRASIL. Lei nº 16 de 12 de agosto de 1834. Faz algumas alterações e addições á Constituição Politica do Imperio, nos termos da Lei de 12 de Outubro de 1832. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/lim16.htm. Acesso em: 1 mar. 2022. 473 VASCONCELOS, Diego de Paiva. O Liberalismo na Constituição Brasileira de 1824. 2008. 83 f. Dissertação (Mestrado em Direito Constitucional) — Universidade de Fortaleza (UNIFOR), Fortaleza, 2008. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/teste/arqs/cp049092.pdf. Acesso em: 10 dez. 2021, p. 73. 474 BRASIL. Lei nº 105 de 12 de maio de 1840. Interpreta alguns artigos da Reforma Constitucional. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/lim105.htm. Acesso em: 1 mar. 2022. 475 VASCONCELOS, op. cit., p. 73. 152 que um pensamento jurídico-político próprio se consubstanciou. Além da apropriação de ideias europeias, desenvolveu-se no período perspectivas sobre a realidade brasileira. Nesse tempo de transformações, o relacionamento travado entre liberalismo e conservadorismo é crucial ao entendimento das mudanças que aconteceram no pensamento jurídico e na ação política a ele relacionada. Em meio a essas disputas é que vão se desenvolver as discussões sobre o direito de propriedade e a terra, e acerca da natureza jurídica do escravo. Nesse sentido, a Lei de Terras de 1850, aprovada quase que concomitantemente com a Lei do Tráfico, mostra-se um ponto de atenção na ordem jurídica vigente, pois através dela foi consumado o conceito moderno de propriedade, passando assim o poder do latifúndio do escravo para a terra e chancelando juridicamente a concentração de terras. Com isso, dava-se um impulso para mudanças na organização do poder, já que a centralização política do Império se tornava cada vez mais desinteressante para as elites de proprietários. Inobstante suas nuances, o liberalismo imperial persistiu como expressão política da desigualdade. Mas, no caso do Segundo Reinado, tinha-se também a experiência nacional, que se somava ao repertório político-intelectual europeu. A elite imperial se esforçou para evitar a revolução e as suas ações tinham caráter pragmático e moderado, de modo que a experiência brasileira foi responsável por particularizar esquemas mentais estrangeiros. A cidadania limitada definida pela elite imperial produziu uma representação simbólica da ordem social e da hierarquia que nela predominava.476 Abordamos esse cenário em seguida, começando pelo relacionamento entre liberalismo e conservadorismo, disputa inflamada pela pauta da Lei de Terras de 1850. Depois, apreciamos perspectivas intelectuais que contestaram o liberalismo estamental, trazendo novas ideias e representando o surgimento de interpretações da realidade brasileira a partir da experiência nacional, e não respaldadas exclusivamente em teorias e perspectivas exógenas, com foco na Escola de Recife, caracterizada exatamente por trazer uma leitura diferenciada das ideias liberais. 476 ALONSO, Angela. Idéias em movimento — A Geração de 1870 na crise do Brasil-Império. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002, p. 56-59. 153 3.1 LEGALIDADE E REACIONARISMO: PODEMOS FALAR EM UM LIBERALISMO CONSERVADOR? Diferentemente do que ocorreu em outros países, ao exemplo da tradição inglesa na qual primeiramente formaram-se os Partidos Conservador e Liberal, no Brasil a divisão que se estabeleceu foi entre radicais e moderados, de modo que o processo de constituição dos partidos políticos resultou no isolamento dos radicais e no fracionamento dos moderados em conservadores e liberais. O agrupamento radical foi então delimitado pela prática — de maneira que no Segundo Reinado o liberalismo radical (que por vezes era identificado com o democratismo)477 foi reduzido à linha minoritária —, e os moderados pela forma de se conceber a doutrina liberal.478 Se na Europa Ocidental o liberalismo atingia profissionais liberais e burocratas estatais no entremeio do setor de direita (composto pelos senhores feudais) em oposição à esquerda da população urbana, no Brasil pós-Independência tinha-se os proprietários rurais e uma vida urbana ainda incipiente.479 Apesar de o Partido Conservador ter sido constituído em 1837, posteriormente ao surgimento do Partido Liberal, as distinções doutrinárias entre as duas entidades somente tornaram-se expressivas algum tempo depois, em decorrência da prática da monarquia constitucional. Ambos se caracterizavam de início como blocos parlamentares, predominando elementos moderados tanto entre conservadores quanto liberais, e nos primeiros quinquênios pós-Independência emergiu o centro liberal, que defendia a figura de um monarca forte.480 A disputa entre os “saquaremas” (conservadores) e os “luzias” (liberais) se desdobrou durante o Segundo Reinado e é relevante para análise do desconforto em nosso pensamento político no que diz respeito às ideias liberais. Os conservadores receberam essa denominação em virtude do município de Saquarema no Rio de Janeiro, em que o líder conservador Visconde de Itaboraí tinha uma fazenda utilizada para reuniões 477 O democratismo partia da noção de que os tempos modernos conduzia os povos à sociedade racional e que a educação faria dos homens seres morais, sendo a monarquia um obstáculo para tanto. Disso resultaria a tese, a exemplo da pregação de Frei Caneca, de que pontos de vista divergentes não podiam coexistir em mesmo território. Assim, se o Rio de Janeiro preferia o regime monárquico, as províncias deveriam se separar. Essa corrente erguia a bandeira liberal e autores como A. Paim não a consideram liberal. In: PAIM, Antônio. História do liberalismo brasileiro. São Paulo: Mandarim, 1998, p. 73-74. 478 PAIM, loc. cit. 479 LYNCH, Christian Edward Cyril. Saquaremas e Luzias: a sociologia do desgosto com o Brasil. Insight Inteligência, Rio de Janeiro, v. 55, p. 21-37, 2011. Disponível em: https://www.academia.edu/10344754/Saquaremas_e_luzias_a_sociologia_do_desgosto_com_o_Brasil . Acesso em: 2 abr. 2022, p. 26-28. 480 PAIM, op. cit., p. 57-58. 154 frequentes. Já Santa Luzia, cidade da qual derivou o apelido dos liberais, ficava em Minas Gerais e foi o palco da derrota liberal nas revoltas de 1842. Os saquaremas defendiam a centralização do poder e os luzias a monarquia federativa, opondo-se ao Poder Moderador e ao Senado Vitalício.481 Não são incomuns as análises que aproximam e comparam as mencionadas tendências, enfocando a leitura do conceito de liberalismo a partir da ótica de um pensamento conservador482 — ao exemplo de Mercadante483 e José Murilo de Carvalho.484 Nos discursos parlamentares, eram recorrentes as acusações recíprocas quanto aos limites teóricos e partidários de cada uma delas. Tal como explica Emília Viotti, muitas figuras mudaram seus pontos de vista durante sua vida política, por exemplo, Bernardo Vasconcelos e o próprio José Bonifácio que se tornaram, respectivamente, mais conservadores ou mais liberais. Outra circunstância recorrente era a adoção de tendências diversas para posicionamentos econômicos e políticos, separando-os. Considerando que liberais e conservadores atuavam como porta-vozes de grupos sociais bastante semelhantes, não é de surpreender que existissem interesses conjugados.485 Somente após a consolidação do Estado brasileiro a sociedade civil se insinuaria, de tal sorte que a agenda reformista imposta nas últimas décadas do século contribuiu para a emergência de um conservadorismo mais típico. Para Lynch, da mesma forma como não se teve um único liberalismo, várias facetas conservadoras se demonstraram presentes — um reformismo ilustrado, seguido de um conservadorismo estatal, um conservadorismo culturalista, e por fim um liberalismo conservador. Exemplo disso foi a mobilização da obra de Burke de maneiras diversas pelos conservadores José da Silva Lisboa, Bernardo Pereira Vasconcelos e pelos liberais Rui Barbosa e Joaquim Nabuco. Tivemos, assim, o dilema conservador, que lançava argumentos mais progressistas do 481 LYNCH, Christian Edward Cyril. Saquaremas e Luzias: a sociologia do desgosto com o Brasil. Insight Inteligência, Rio de Janeiro, v. 55, p. 21-37, 2011. Disponível em: https://www.academia.edu/10344754/Saquaremas_e_luzias_a_sociologia_do_desgosto_com_o_Brasil . Acesso em: 2 abr. 2022, p. 22. 482 PIÑEIRO, Théo Lobarinhas. Os projetos liberais no Brasil Império. Passagens, Revista Internacional de História Política e Cultura Jurídica, Rio de Janeiro, v. 2, n. 4, p. 130-152, mai./ago. 2010. Disponível em: https://www.redalyc.org/pdf/3373/337327173007.pdf. Acesso em: 1 mar. 2022, p. 132. 483 MERCADANTE, Paulo. A Consciência Conservadora no Brasil. Rio de Janeiro: Saga, 1965. 484 CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a elite política imperial. Rio de Janeiro: Campus, 1980. 485 COSTA, Emília Viotti da. Da Monarquia à República: momentos decisivos. 6. ed. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1999, p. 146-147 e 161. 155 que o esperado — considerando outros contextos históricos — e, de outro lado, a complexidade dos conceitos envolvidos nessas duas tendências.486 Inclinamo-nos à posição de Angela Alonso, segundo a qual os liberais buscavam, com seus recursos táticos, encobrir um certo fundo conservador, fazendo a ressalva de que isso não significa que o liberalismo aqui não se valesse de suas próprias bases teóricas, estratégias e contradições, respondendo, contudo, à realidade brasileira de modo a tomar forma própria. Ainda que acepções e práticas em comum tenham sido conjugadas, como a incompatibilização das elites em sua maioria com o Imperador — forçado a abdicar em 1831 —, a defesa do governo constitucional e representativo e a insistência na manutenção da escravidão até o período de dissolução do regime, resta imponderável o mero reducionismo das correntes à equivalência. Isto é, a despeito de interesses coincidentes e da alternância de posicionamentos das elites imperiais, elas não formavam um corpo sem fissuras e o próprio sistema político as hierarquizava.487 Afinal, a prática jurídico-política reflete a constância dos conflitos entre suas perspectivas e a diversificação de propostas legislativas, inobstante a predominância do desejo de conservação de valores e instituições prezados pelas elites. Evidentemente, essa relação pode, à primeira vista, parecer incongruente e mesmo arbitrária, considerando que o liberalismo clássico é identificado pela historiografia tradicional como corrente característica das revoluções atlânticas, o que consequentemente remete a certa estranheza em detrimento de um liberalismo de fundo conservador, que prenominou em face das tendências radicais desse ideário no Brasil Império. Vale ratificar que o liberalismo brasileiro é compreensível e palpável dentro do escopo da realidade brasileira, de tal sorte que essa é uma particularidade que merece ser destacada para o entendimento da teoria e prática liberal no âmbito jurídico-político. De maneira a clarificar essa relação, elucida Silvio Luiz de Almeida que as origens do conservadorismo clássico se encontram nas obras de Edmund Burke, Joseph de Maistre e Louis de Bonald, que traziam como ponto em comum a defesa e ideia de “conservação” de valores e instituições tradicionais — como a monarquia e a religião 486 LYNCH, Christian Edward Cyril. Conservadorismo caleidoscópico: Edmund Burke e o pensamento político do Brasil Oitocentista. Lua Nova Revista de Cultura e Política [online], n. 100, p. 313-362, 2017. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ln/a/4MhnBqZKjLwgRK3yPrHNmrh/?format=html&lang=pt#ModalArticles. Acesso em: 4 abr. 2022, p. 314-315 e 353-356. 487 ALONSO, Angela. Idéias em movimento — A Geração de 1870 na crise do Brasil-Império. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002, p. 66-67. 156 cristã — considerados fundamentais para a civilização e cultura do Ocidente, diante da ameaça das revoluções liberais. Quanto ao posicionamento conservador488 de tendências liberais, Almeida fala que na sociedade capitalista, algumas relações precisam necessariamente ser conservadas para possibilitar a sua reprodução, em especial, as formas sociais — como a forma mercadoria, a forma dinheiro, a forma Estado e a forma jurídica.489 Nesse âmbito, liberdade e igualdade são primordiais para a troca mercantil, que exige que o portador da mercadoria seja sujeito de direito — livre e igual —, o que nada tem a ver com dignidade e necessidades materiais assistidas. Assim, o Estado sempre vai ser uma força conservadora, atuando para a preservação das formas sociais básicas do capitalismo, de maneira que a legalidade consiste em uma das manifestações mais específicas da sociedade capitalista. A despeito de o reacionarismo contra o sistema ser, em regra, contrário ao “espírito liberal”, ante momentos de crise os liberais podem se tornar reacionários. Lembrando que os liberais brasileiros compreendiam a noção de liberdade como conservação da liberdade — de comércio, depois de voto, de obter terra, de submeter o escravo ao trabalho. Isso pode ser apreendido a partir da visão de que a legalidade é apenas pauta progressista em momentos de crise da sociedade capitalista, ou seja, quando são ignorados os limites estabelecidos pela lei.490 Sobre o conservadorismo oitocentista, que era definido com oposição ao liberalismo, de acordo com Lynch, ele pode ser compreendido a partir de duas cisões. A primeira delas consistia em um “legitimismo” ou “tradicionalismo”, ideologia reacionária que contrariava o racionalismo dominante das Luzes e negava a filosofia da história como progresso — que começou na conversão dos Estados Gerais em Assembleia Nacional na França. De outro lado, tinha-se o conservadorismo propriamente dito. Para o autor, “o 488 Marcelo Barbosa da Silva explana que a formação do conservadorismo no Brasil mostra-se um objeto de estudo de difícil rastreamento, fazendo pairar uma dificuldade na identificação dos elementos endógenos e exógenos do pensamento social do século XIX. Mas, segundo ele, três processos constituintes podem ser indicados na formação de linhagens fundadoras das ideologias conservadoras: (i) a presença da religiosidade católica; (ii) o referencial da cultura parlamentar inglesa; e (iii) a “importação” da filosofia eclética francesa. In: SILVA, Marcelo Barbosa da. Linhagens europeias do conservadorismo brasileiro do século XIX. Revista da Associação dos Antigos Alunos de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, v. 1, n. 2, p. 114-131. jul./dez. 2020. Disponível em: http://revistaalumni.com.br/index.php/revistaalumni/article/view/22. Acesso em: 20 mar. 2022, p. 115. 489 ALMEIDA, Silvio Luiz de. Neoconservadorismo e liberalismo. In: SOLANO, Ester [ed.]. O ódio como política: a reinvenção das direitas no Brasil. Posição 358-457. São Paulo: Boitempo Editorial, 2018. E- book Amazon, posição 358. 490 Ibid., posição 377- 408. 157 conservadorismo pode e deve ser interpretado como uma espécie de liberalismo — um liberalismo de direita”.491 A influência do legitimismo no Brasil foi, contudo, moderada, ao exemplo dos irmãos Sousa, José Soriano, Tarquínio Bráulio e Brás Florentino, em Pernambuco. Segundo o posicionamento referenciado, à época das revoluções atlânticas o discurso conservador na América Ibérica enfrentou uma série de problemas, em especial no que tange ao aprendizado do conceito em países recém-independentes. Liberais e conservadores eram a favor do governo constitucional e representativo temendo, contudo, as intimidações dos liberais mais radicais. O conservadorismo ibero-americano, portanto, constituiu a posição da direita brasileira na Independência.492 De certo modo, os conservadores brasileiros buscaram veicular o “progresso” idealizado pelos liberais moderados, defendendo a ordem mediante o controle dos setores marginalizados e excluídos da sociedade, proporcionando liberdade somente aos que comandavam de cima, ou seja, às elites. O desafio de conjugação entre ordem e expansão da liberdade foi uma questão permanente.493 A década de 1840 no Brasil começou com a organização do gabinete conservador, marcando a passagem histórica denominada de Regresso. Nesse período, foi abolida a eleição do Juiz de Paz e as instituições do judiciário e da polícia foram subordinadas ao poder central.494 A reforma constitucional de 1840 ficou conhecida como uma reação monárquica dos conservadores para restaurar as instituições destituídas pelo Ato Adicional de 1834. Uma estrutura político-administrativa centralizada era delineada para o Segundo Reinado e ainda que os liberais tenham, por vezes, chegado à presidência do Conselho de Ministros, não lograram posição em equivalência, ganhando força novamente nos anos de dissolução do regime.495 Dentre as chamadas medidas do “Regresso”, seus partidários visavam a centralização política, o que incluiu a restauração do Conselho de Estado e do Poder 491 LYNCH, Christian Edward Cyril. O pensamento conservador ibero-americano na era das independências (1808-1850). Lua Nova: Revista de Cultura e Política, São Paulo, n. 74, p. 59-92, 2008. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ln/a/8yvtcPS89wtDjyPn7CHtgwb/?format=pdf&lang=pt. Acesso em: 14 abr. 2022, p. 71. 492 LYNCH, Christian Edward Cyril. O pensamento conservador ibero-americano na era das independências (1808-1850). Lua Nova: Revista de Cultura e Política, São Paulo, n. 74, p. 59-92, 2008. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ln/a/8yvtcPS89wtDjyPn7CHtgwb/?format=pdf&lang=pt. Acesso em: 14 abr. 2022, p. 81. 493 Ibid., p. 74-89. 494 PAIM, Antônio. História do liberalismo brasileiro. São Paulo: Mandarim, 1998, p. 48-52. 495 ALONSO, Angela. Idéias em movimento — A Geração de 1870 na crise do Brasil-Império. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002, p. 67-68. 158 Moderador — por meio da Lei nº 234, de 23 de novembro de 1841—,496 bem como a reforma no Código de Processo Criminal, ambas em 1841. Foi Paulino José Soares de Sousa, visconde de Uruguai, que promoveu a reforma do aparelho judicial e policial e, com a lei de interpretação do Ato Adicional (Lei nº 105, de 12 de maio de 1840),497 transferiu para o Governo Central a Justiça de primeira instância, também fundando a Justiça unificada e a polícia centralizada no Brasil, de modo que as autoridades policiais deixaram de ser eleitas e passaram a nomeadas.498 Superados pelas iniciativas “regressionistas”, os liberais, ainda que tenham promovido a antecipação da maioridade de D. Pedro no Congresso em 1840, tiveram seu gabinete dissolvido pelo Imperador em 1841, de forma que o grupo ascenderia ao poder somente em 1844, apesar de não ter saído vitorioso nas revoltas de 1842.499 Segundo Alonso, dentre as diferenças programáticas entre os dois partidos em questão, uma das mais consideráveis estava na ênfase quanto à “conciliação” entre liberdade e ordem — assim como também afirmam Almeida e Lynch. Ademais, como ponto em comum tinha- se que a melhor forma de governo era vista como o sistema representativo, contudo, termos como democracia, despotismo e ditadura eram tomados como parte ultrapassada do vocabulário do Antigo Regime.500 O Partido Conservador tinha muitos burocratas e donos de terras — sobretudo no Rio de Janeiro —, e o Partido Liberal compunha-se de profissionais liberais e 496 BRASIL. Lei nº 234, de 23 de novembro de 1841. Dispõe sobre a criação do Conselho de Estado. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/lim234.htm#:~:text=Art.,seus%20Membros%2C%20ou %20em%20Sec%C3%A7%C3%B5es. Acesso em: 10 jan. 2022. 497 BRASIL. Lei nº 105 de 12 de maio de 1840. Interpreta alguns artigos da Reforma Constitucional. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/lim105.htm. Acesso em: 1 mar. 2022. 498 PAIM, Antônio. História do liberalismo brasileiro. São Paulo: Mandarim, 1998, p. 57. 499 No ano de 1842 irromperam revoluções em Minas Gerais e São Paulo. Como pano de fundo, traziam- se princípios e objetivos políticos como o combate à tirania, a defesa da Constituição e do trono de D. Pedro II. Porém havia entre seus participantes uma preocupação com a sua situação pessoal e de sua localidade. A atuação dos insurgentes acontecia dentro dos municípios e abarcava a defesa das famílias locais, seus bens (terras, escravos, fazendas, residências etc.) e negócios. In: ALMEIDA, Adilson José de. Sociedade Armada: os senhores e seus homens na Revolta Liberal de 1842. Anais do XXVII Simpósio Nacional de História — ANPUH. Conhecimento histórico e diálogo social. Natal-RN, 22-26 jul. 2013. p. 1-13. Disponível em: http://www.snh2013.anpuh.org/resources/anais/27/1364924724_ARQUIVO_SociedadeArmadaOssen horeseseushomensnaRevoltaLiberalde1842.pdf. Acesso em: 12 abr. 2022. Além delas, vale reprisar que o período foi marcado por uma série de insurreições: o Norte e o Nordeste passaram por uma onda revolucionária entre 1837 e 1848 (Sabinada, Balaiada, Cabanagem, Praieira), e a província do Rio Grande do Sul enfrentou uma guerra civil (Farrapos) entre 1835 e 1845. In: COSTA, Emília Viotti da. Da Monarquia à República: momentos decisivos. 6. ed. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1999, p. 156. 500 ALONSO, Angela. Idéias em movimento — A Geração de 1870 na crise do Brasil-Império. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002, p. 60. 159 proprietários do mercado interno — em especial, de Minas Gerais, São Paulo e Rio Grande do Sul. Os dois partidos encontravam enraizamentos em Pernambuco e na Bahia. A ideia de um rodízio entre partidos, que prevaleceu até a dissolução da monarquia, tem por trás o fracasso do projeto de direção liberal.501 A sociedade hierárquica e a forma monárquica eram percebidas pela elite como ordem natural das coisas e a reforma circunscrevia os princípios básicos do debate. Os valores eram tomados como uma tradição, que se constituiu por meio da experiência nacional e do repertório europeu, de modo que o primeiro elemento especificou o segundo, na medida em que os quadros mentais europeus foram colocados em ação através de um processo deliberado de escolha. Isso era reforçado no ritmo lento das decisões parlamentares e em um consenso tácito na tomada de decisões. Como frisado anteriormente, havia morosidade de comunicações com o outro continente, o que incluía a importação de livros, de maneira que as revistas acabavam fazendo-lhe as vezes.502 Sobre isso: Essas referências a autores e obras desempenhavam às vezes o papel de ornato erudito dos discursos, mas compareciam principalmente na legitimação dos argumentos e posições políticas. Eram os autores que lidavam com problemas similares aos da própria elite nacional os preferidos. [...] A elite imperial esteve continuamente comparando sua situação com a europeia e temendo repetir os solavancos da América abaixo do Equador.503 Do âmago dessa discussão é possível extrair que, conforme afirma Silvio Luiz de Almeida, há uma lógica e uma racionalidade presente na afirmação de que em meio à crise da sociedade capitalista, os liberais podem assumir um papel reacionário. Isso se conecta à noção de que no pós-Independência a sociedade brasileira vai efetivamente se formar, transformando-se os blocos parlamentares em partidos políticos e, durante o Segundo Reinado, contribuindo a ameaça separatista para o desvio da atenção sobre a questão da mão-de-obra. Ainda que as elites não fossem homogêneas, muitos de seus interesses eram aproximados pela sua própria constituição, que diferia dos países europeus. Assim, somente nas últimas décadas do século é que uma série de mudanças 501 ALONSO, Angela. Idéias em movimento — A Geração de 1870 na crise do Brasil-Império. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002, p. 66-67. 502 Ibid., p. 52-53. 503 Ibid., p. 55. 160 econômicas — o que inclui o movimento de urbanização —, sociais e tecnológicas possibilitariam uma maior diversificação desses interesses. As contradições internas do liberalismo vão persistir, como o paradoxo entre liberdade e escravidão, assim como o envolvimento entre liberdade e autoridade. Fator marcante em nossa realidade material foi o modo como se deu a relação com a escravidão: os próprios libertos foram aliciados para a sua manutenção, pela via legal. A escravidão foi aos poucos sendo assumida como um problema público, porém, de início, não como um problema a ser resolvido, mas uma questão de interesse do Estado. Se, de um lado, tinha-se a proteção da propriedade privada dos senhores e a coisificação dos escravos, de outro, tornavam-se atos humanitariamente absurdos, como o açoitamento,504 públicos. Esse tipo de ação contribuía para criar uma imagem de Estado “fiscalizador”, ao mesmo tempo que, como um “combo”, disseminava o medo e o terror nas camadas marginalizadas da população. Nos debates parlamentares de 1843, em especial no que se refere ao primeiro gabinete conservador constituído após a maioridade, é que a crise na mão-de-obra passa a ser um tópico mais frequentado na pauta de discussões. A este ponto, em 1843, as inquietações dos deputados quanto à mão-de-obra nas lavouras não estavam mais fundadas em suposições, mas na evidência de Tratados que proibiram o tráfico, sobretudo com o governo inglês. Diante disso, os legisladores viram-se obrigados a debater a possível substituição da mão-de-obra, pressupondo a iminência, e inevitabilidade, do fim do tráfico.505 Os liberais permaneceram no poder até 1848. Relativamente a posicionamentos sobre a colonização, duas visões se confrontavam: de um lado, os interesses dos cafeicultores, que queriam braços para as lavouras e, de outro, o sistema dos núcleos 504 A Constituição de 1824, em seu Art. 179, garantia a extinção das punições físicas. Porém, teve-se o advento do “Código Criminal”, Lei nº 4 de 10 de junho de 1835, que determinava “as penas com que devem ser punidos os escravos, que matarem, ferirem ou commetterem outra qualquer offensa physica contra seus senhores, etc.; e estabelece regras para o processo”. A pena de açoites no Brasil será abolida apenas nas décadas finais do século, pela Lei nº 3.310 de 15 de outubro de 1886, que revogou o Art. 60 do Código Criminal. Vide: BRASIL. Lei nº 3.310 de 15 de outubro de 1886. Revoga o art. 60 do Codigo Criminal e a Lei n. 4 de 10 de Junho de 1835, na parte em que impoem a pena de açoutes. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/lim3310.htm. Acesso em: 12 abr. 2022; e BRASIL. Lei nº 4 de 10 de junho de 1835. Determina as penas com que devem ser punidos os escravos, que matarem, ferirem ou commetterem outra qualquer offensa physica contra seus senhores, etc.; e estabelece regras para o processo. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/lim4.htm. Acesso em: 12 abr. 2022. 505 SILVA, Claudia Christina Machado e. Escravidão e grande lavoura: o debate parlamentar sobre a lei de terras (1842 - 1854). 2006. 146 f. Dissertação (Mestrado em História) — Departamento de História, Setor de Ciências Humanas Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2006. Disponível em: https://acervodigital.ufpr.br/handle/1884/6666. Acesso em: 10 dez. 2021, p. 3-4. 161 coloniais, fundado no regime das pequenas propriedades e patrocinado pelo governo. Os conservadores eram contrários à imigração para povoamento, assumindo como prioridade deles a substituição da mão-de-obra escrava no âmbito das grandes propriedades, direcionadas à exportação.506 A segunda metade do século começou com um governo de conciliação aparentemente estável, que mantinha em comum o apego pela escravidão. Conservadores e liberais durante a década de 1850 foram desafiados pelas alas extremistas de ambos os partidos. A primeira cisão importante ocorreu entre os conservadores, quando um grupo liderado por Saraiva, Nabuco de Araújo, Zacarias de Góes (o marquês de Paranaguá) rompeu com seu partido, juntando-se aos liberais e criando a Liga Progressista.507 A cooperação entre os partidos começou em 1852, durando cerca de dez anos. No decorrer dos 49 anos de reinado de D. Pedro II, houve 39 gabinetes e o partido conservador permaneceu 26 anos no poder, versus 13 anos dos liberais. Porém, quando as elites estavam de acordo com determinada questão política, o revezamento não se demonstrava tão significativo, de maneira que as suas implicações tiveram impacto maior nas últimas décadas do Império, com o aumento das divergências entre segmentos e as diferenças sociais e econômicas.508 Os liberais brasileiros do Império, em sua maioria, assim como os demais membros das elites brasileiras, mantiveram uma postura conservadora e antidemocrática. Para eles, ordem e progresso eram vistos como passos necessários da modernização e, excetuando-se a emancipação dos escravos, as reformas propostas não alteravam — ou pretendiam alterar estruturas sociais mais profundas —, nem incentivavam a participação popular na vida política. Tinha-se a coexistência da patronagem com a ética liberal em uma forma híbrida burguês-aristocrata que caracterizava a elite imperial. A pretensa modernização e desenvolvimento do capitalismo era, portanto, realizada através de estruturas arcaicas, às custas da escravidão.509 Uma verdadeira corrida foi instaurada na segunda metade do século e no jogo de poder importava quem aprovava determinada medida jurídica, independentemente de 506 SILVA, Claudia Christina Machado e. Escravidão e grande lavoura: o debate parlamentar sobre a lei de terras (1842 - 1854). 2006. 146 f. Dissertação (Mestrado em História) — Departamento de História, Setor de Ciências Humanas Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2006. Disponível em: https://acervodigital.ufpr.br/handle/1884/6666. Acesso em: 10 dez. 2021, p. 103-105. 507 COSTA, Emília Viotti da. A Abolição. 8. ed. São Paulo: Editora da UNESP, 2008, p. 22 e 44. 508 COSTA, Emília Viotti da. Da Monarquia à República: momentos decisivos. 6. ed. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1999, p. 158-161. 509 Ibid., p. 165-168. 162 haver consenso ou não sobre a sua importância ou necessidade. A Lei do Tráfico deu o primeiro passo para a emancipação gradual e alimentava o descontentamento das elites agroexportadoras. Conterrânea foi a Lei de Terras, que em seu primeiro projeto trazia previsões acerca da colonização para substituição da mão-obra-escrava, sendo aprovada em seu texto final sem qualquer menção a esse assunto. A ação política do Partido Conservador partia da premissa de que o país precisava se adaptar às mudanças que aconteciam na esfera internacional e, no caso da Lei do Tráfico, ela foi imperativa para a própria garantia da soberania nacional. As leis emancipatórias foram aprovadas pelo mesmo partido, e o reconhecimento de direitos aconteceu em concomitância a elas. Nesse processo, o liberalismo sofreu ressignificações e seus representantes tiveram que reformular suas estratégias, sem abandonar as antigas ideias e valores. Emplacada pelo Partido Conservador, a Lei de Terras de 1850 foi motivo de conflito e operou como importante marco jurídico para a institucionalização do conceito moderno de propriedade. Além disso, a partir dela se apoiaram projeções voltadas à descentralização política: a concentração de latifúndio, legalizada pelo Direito, possibilitou a concentração reflexa de poder nessas localidades, em especial o poder de mando, o que teve significativas implicações nos tempos de coronelismo que se seguiram. 3.2 PROPRIEDADE E LIBERDADE: CONCENTRAÇÃO DE LATIFÚNDIO E REAFIRMAÇÃO DO ISOLAMENTO JURÍDICO-ECONÔMICO DOS EX- ESCRAVOS NA LEI DE TERRAS DE 1850 Os debates que conduziram à aprovação da Lei de Terras no Brasil — Lei nº 601 de 18 de setembro de 1850510 — refletem os passos em direção ao “plano de fuga” dos setores elitizados diante da proximidade da extinção do tráfico e, logo, da passagem para a mão-de-obra assalariada, o que exigia oficializar a transformação da terra em mercadoria e a proteção desse direito dos cidadãos “livres e iguais”. O projeto foi apresentado a uma Câmara predominantemente conservadora, que havia sido eleita após as rebeliões liberais de São Paulo e Minas Gerais, sofrendo uma 510 BRASIL. Lei nº 601, de 18 de setembro de 1850. Dispõe sobre as terras devolutas do Império. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l0601- 1850.htm#:~:text=LEI%20No%20601%2C%20DE,sem%20preenchimento%20das%20condi%C3%A 7%C3%B5es%20legais. Acesso em: 15 fev. 2021. 163 série de medidas dilatórias entre 1844 e 1848.511 A norma teve como um de seus principais efeitos consolidar juridicamente o conceito moderno de propriedade. De acordo com José Murilo de Carvalho, 47,54% dos filiados ao partido Conservador eram proprietários rurais e cerca de 55% eram funcionários públicos.512 E, desse modo, construiu-se uma argumentação em cima da suposta falta de trabalhadores, responsável pela “crise da lavoura”, como queixas dos cafeicultores. A resistência das elites provinciais desvinculadas do café impactou sobre o tempo de aprovação da Lei, de modo que a província de São Paulo, por exemplo, apenas adotou posições mais favoráveis à Lei a partir de 1870, depois de sua aprovação, quando a produção de café ganhou maiores proporções em sua circunscrição.513 As discussões do projeto da Lei de Terras foram muito fragmentadas, com altos e baixos, mediante os contrastes entre os grupos de proprietários, com forte oposição daqueles ainda não atingidos pelo ciclo do café à época, como a Província de São Paulo. Sobre isso, tal como esclarece Both, devemos encarar o processo histórico brasileiro do período a partir da reflexão de que a derrota sobre certo significado do liberalismo, e em consequência a vitória de um grupo que imprimiu um sentido ao termo, não significa a perda de suas características principais. Do mesmo modo, os conflitos e alternâncias entre liberais e conservadores remetem a contíguas vitórias e derrotas, não representando o fim de uma tendência em detrimento da outra, mas ressignificações de conceitos e perspectivas.514 No cerne do liberalismo clássico, a propriedade privada é construída como um direito fundamental. À vista disso, temos que a questão da propriedade já era tratada pelo Direito brasileiro, mas o seu principal objeto econômico de atenção era o escravo — que tinha registro, era utilizado como garantia de empréstimo e podia ser hipotecado. De um lado, tinha-se a discussão sobre a necessidade de braços para as lavouras cafeicultoras e, de outro, a consciência adquirida de que o escravo seria eventualmente 511 CARVALHO, José Murilo de. Modernização frustrada: a política de terras no Império. Revista Brasileira de História, São Paulo, n. 1, v. 1, p. 39-57, mar. 1981. Disponível em: https://www.anpuh.org/arquivo/download?ID_ARQUIVO=1297. Acesso em: 28 abr. 2022, p. 41. 512 CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a elite política imperial. Rio de Janeiro: Campus, 1980, p.192. 513 SILVA, Marcio Antônio Both da. Lei de Terras de 1850: lições sobre os efeitos e os resultados de não se condenar “uma quinta parte da atual população agrícola”. Revista Brasileira de História [online], v. 35, n. 70, p. 87-107, 2015. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1806-93472015v35n70014. Acesso em: 20 abr. 2022, p. 90. 514 Ibid., p. 133. 164 deslocado do eixo de produção, se tornando política e economicamente desinteressante aos senhores, que precisariam descartá-lo de algum modo. Na esteira da legalidade, esse modus operandi foi o da colocação dos ex-escravos na sociedade sem desligá-los ideologicamente do pacto realizado, gerenciando os instrumentos legais disponíveis para mantê-los afastados do acesso efetivo aos recursos econômicos e sociais. Conquanto os imigrantes europeus tenham sido trazidos para o branqueamento da população, os ex-escravos, marcados pela delimitação racial da subalternidade, tiveram sobre si esforços imprimidos no sentido de manter sua condição marginalizada. Nesse sentido, tal como aponta José Murilo de Carvalho: Isto nos leva ao ponto crucial das relações dos proprietários com o governo. O projeto mostrou a existência no governo de representantes de interesses da grande lavoura seja diretamente por serem proprietários, como Rodrigues Torres, seja indiretamente por perceberem o papel fundamental que ela representava para a sobrevivência do próprio Estado, como era o caso de Bernardo de Vasconcelos, o autor do projeto. Mas eram representantes com visão muito mais ampliada do problema da lavoura e capaz de equacioná-lo dentro de um marco que ia além da percepção do agricultor comum.515 O texto inicial que resultou na Lei de Terras trazia uma tentativa de modernização conservadora por parte das elites com recursos econômicos e sociais, para dissimular os reais interesses por trás do projeto. A atividade parlamentar representava um espaço de mobilidade para esses interesses dentro da ordem jurídica vigente, gerando oportunidades legais para tanto. A ordem jurídica estabelecida tinha em seu alicerce um liberalismo estamental, que seria reafirmado pela autorização legal para a concentração de terras. Em outras palavras, apesar da derrota política liberal imediata frente aos interesses conservadores quanto aos rumos do projeto, considerando que muitos proprietários ainda não anteviam o problema da mão-de-obra e que havia custos envolvidos na mediação e legalização das posses, o liberalismo estamental encontrou uma vitória mediata, pois a concentração fundiária contribuiu para a extensão do instituto da escravidão e para posterior descentralização do poder, de modo que províncias como São Paulo e Minas foram depois beneficiadas por esse arranjo. A Lei funcionou como marco jurídico para adoção do conceito moderno de propriedade. Ela não inventou a terra como mercadoria, já que ela era vendida e comprada 515 CARVALHO, José Murilo de. Modernização frustrada: a política de terras no Império. Revista Brasileira de História, São Paulo, n. 1, v. 1, p. 39-57, mar. 1981. Disponível em: https://www.anpuh.org/arquivo/download?ID_ARQUIVO=1297. Acesso em: 28 abr. 2022, p. 44. 165 anteriormente à norma, mas possibilitou a construção de um discurso e de práticas sociais que passaram a ser pautadas no caráter mercadológico da terra, que precisava ter seus limites bem definidos. No campo, senhores e demais possuidores tiveram que lidar com a limitação da propriedade, que deixava de ser tomada como “dádiva”,516 em um viés quase que transcendental, e tornava-se objeto jurídico. Vimos que a liberdade era tomada como elemento legitimador da propriedade. Os cidadãos eram os indivíduos livres, donos de suas próprias capacidades e de seus bens, em iguais condições com os demais cidadãos sujeitos de direitos, aptos à troca mercantil. Tínhamos, assim, uma liberdade que beneficiava, tal como argumenta Piñeiro,517 aos que, na condição de proprietários, eram qualificados como membros da comunidade. A adoção da ideia liberal — presente em Locke, por exemplo — de que a liberdade é o direito de fazer tudo aquilo que as leis permitem contribuiu para a aproximação dos conceitos de liberdade e autoridade no âmbito jurídico. O projeto da Lei de Terras tramitou no Parlamento de 1843 até sua aprovação em 1850 e buscava colocar o país junto das nações “civilizadas”. Em um Brasil agrário, que dependia da renda da exportação do café, a zona rural enfrentava um cenário de insegurança jurídica, no qual eram poucos os registros de propriedade, em especial no que tange às terras devolutas518 e sesmarias (terras doadas pelo rei português nos tempos de colônia, com a exigência de que fossem cultivadas). Era recorrente a invasão das terras públicas desocupadas e a ausência de lei que as regulasse deixava os detentores de posse — os posseiros — em um abismo jurídico.519 516 SILVA, Marcio Antônio Both da. Lei de Terras de 1850: lições sobre os efeitos e os resultados de não se condenar “uma quinta parte da atual população agrícola”. Revista Brasileira de História [online], v. 35, n. 70, p. 87-107, 2015. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1806-93472015v35n70014. Acesso em: 20 abr. 2022, p. 103. 517 PIÑEIRO, Théo Lobarinhas. Os projetos liberais no Brasil Império. Passagens, Revista Internacional de História Política e Cultura Jurídica, Rio de Janeiro, v. 2, n. 4, p. 130-152, mai./ago. 2010. Disponível em: https://www.redalyc.org/pdf/3373/337327173007.pdf. Acesso em: 1 mar. 2022, p. 139. 518 Em Portugal, foi criado pelo rei D. Fernando, o instituto jurídico das sesmarias, que determinava a todos que tivessem terras torná-las produtivas. O não cumprimento da lei da sesmaria tinha por consequência a perda, pelo senhorio, da terra em favor da Coroa, resultando nas chamadas “terras devolutas”. A Coroa então distribuía as terras devolutas para serem lavradas por outrem. In: SILVA, Claudia Christina Machado e. Escravidão e grande lavoura: o debate parlamentar sobre a lei de terras (1842 - 1854). 2006. 146 f. Dissertação (Mestrado em História) — Departamento de História, Setor de Ciências Humanas Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2006. Disponível em: https://acervodigital.ufpr.br/handle/1884/6666. Acesso em: 10 dez. 2021, p. 30. 519 WESTIN, Ricardo. Há 170 anos, Lei de Terras oficializou opção do Brasil pelos latifúndios. Arquivo S. Edição 71, Questão Agrária. 14 set. 2020. Agência Senado e Arquivo do Senado. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/especiais/arquivo-s/ha-170-anos-lei-de-terras-desprezou- camponeses-e-oficializou-apoio-do-brasil-aos-latifundios. Acesso em: 20 abr. 2022, s/p. 166 Não foi à toa que a norma foi aprovada em 1850, duas semanas depois da primeira lei “abolicionista”, a Eusébio de Queirós, com a enfim proibição da entrada de novos escravos africanos no Brasil. Esse processo foi parte de uma apreensão estratégica que comungava a incorporação do conceito moderno de propriedade, a consolidação jurídica do poder proveniente da terra e o deslocamento do eixo produtivo à vista (fim iminente da escravidão). Somado a isso, a exclusão que a lei causava era mascarada pela esperança trazida pelo fim do tráfico, porém, a Lei tornava ilegal a “invasão” e a ocupação da zona rural, de tal sorte que ex-escravos e imigrantes europeus ficavam impedidos de terem as suas próprias terras, mesmo que pequenas, tornando-se trabalhadores abundantes e baratos para os latifundiários. Portanto, a mão-de-obra a um valor ínfimo vinha acompanhada do bônus de excluir do jogo os antigos posseiros.520 Em 1842, quando foi solicitado por Cândido José de Araújo Viana, Ministro do Império, à Seção dos Negócios do Império do Conselho de Estado, que procedesse à elaboração de propostas sobre a regularização de sesmarias e da colonização estrangeira, constava na exposição de motivos da proposta do Conselho de Estado, em agosto do mesmo ano, o objetivo de se promover a imigração de trabalhadores em virtude da insuficiência do trabalho escravo.521 Porém, quando apresentadas à Câmara dos Deputados em 1843, as justificativas traziam não mais a avaliação da substituição dessa mão-de obra por imigrantes, mas a regularização da propriedade territorial.522 Se até o momento o poderio do latifúndio era medido pelo número de pessoas que gravitavam em torno do seu controle, em particular os escravos, a Abolição a caminho impulsionou a passagem do poder do latifúndio dos escravos para a terra. A Lei trouxe uma base legal para que os latifundiários pudessem recorrer ao governo e aos tribunais para ampliarem suas propriedades, enquanto os sitiantes sem recursos econômicos e sociais acabavam perdendo suas terras.523 520 WESTIN, Ricardo. Há 170 anos, Lei de Terras oficializou opção do Brasil pelos latifúndios. Arquivo S. Edição 71, Questão Agrária. 14 set. 2020. Agência Senado e Arquivo do Senado. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/especiais/arquivo-s/ha-170-anos-lei-de-terras-desprezou- camponeses-e-oficializou-apoio-do-brasil-aos-latifundios. Acesso em: 20 abr. 2022, s/p. 521 SILVA, Claudia Christina Machado e. Escravidão e grande lavoura: o debate parlamentar sobre a lei de terras (1842 - 1854). 2006. 146 f. Dissertação (Mestrado em História) — Departamento de História, Setor de Ciências Humanas Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2006. Disponível em: https://acervodigital.ufpr.br/handle/1884/6666. Acesso em: 10 dez. 2021, p. 6. 522 Ibid., p. 7-8. 523 WESTIN, op. cit., s/p. 167 A Lei previa critérios para a demarcação das terras, proibindo a aquisição das terras devolutas por outro título que não fosse o de compra — com exceção das situadas nos limites do Império (Art. 1º) — e estabelecendo pena de prisão e multa aos infratores que se apossassem de terras devolutas ou alheias ou delas usurpassem — derrubassem matos ou colocassem fogo —, com o seu despejo compulsório, acompanhado da perda de eventuais benfeitorias (Art. 2º). Se por um lado a lei abria espaço para a regularização da propriedade e acionamento das autoridades, ela também trazia dispositivos abertos, que davam margem à acusação e expulsão dos pequenos posseiros pelos latifundiários. Até a década de 1840, transformações na mão-de-obra e no mundo do trabalho não encontravam aderência nos debates legislativos, salvo propostas excepcionais, que não logravam êxito. Então nesse período as principais leis de reforma social aprovadas passaram a estar direta ou indiretamente vinculadas ao tráfico negreiro.524 Essa mudança no discurso não ocorreu por acaso, visto que os legisladores se viram obrigados a encarar o fato de que o fim do tráfico se tornava cada vez mais um problema de relações internacionais,525 ainda mais diante do perigo de acirramento das hostilidades com o governo inglês. Adicionado a isso, preponderava a ideia de que a decisão sobre o fim do tráfico e emancipação dos escravos necessitava partir do governo brasileiro526 e não de uma vertente revolucionária. Afinal, após as flutuações da Regência e as constantes ameaças separatistas, era preciso que tudo fosse realizado — e controlado — pelos caminhos da legalidade, o que trazia certo caráter reativo às atividades legislativas, que seguiam em alerta diante dos prenúncios de insurreição. O Segundo Reinado foi então marcado pelos debates parlamentares da possível substituição do trabalho escravo pelo trabalho livre. Apesar da concordância entre liberais 524 SILVA, Claudia Christina Machado e. Escravidão e grande lavoura: o debate parlamentar sobre a lei de terras (1842 - 1854). 2006. 146 f. Dissertação (Mestrado em História) — Departamento de História, Setor de Ciências Humanas Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2006. Disponível em: https://acervodigital.ufpr.br/handle/1884/6666. Acesso em: 10 dez. 2021, p. 3. 525 A pressão inglesa para o fim do tráfico se origina antes da formação do Estado Brasileiro, exercida sobre o governo português desde o início do século. A escravidão, como sustentáculo da grande lavoura, incluindo as grandes culturas do país (como açúcar, algodão, tabaco) e o café em expansão a partir de 1820, contavam com mão-de-obra predominantemente escrava. Apesar da essencialidade do tráfico para a economia e sobrevivência do Estado, o governo tinha consciência da impossibilidade de estendê-lo indefinidamente, de maneira que se tornou imperativa a busca por uma solução para o problema da mão- de-obra. In: SILVA, Claudia Christina Machado e. Escravidão e grande lavoura: o debate parlamentar sobre a lei de terras (1842 - 1854). 2006. 146 f. Dissertação (Mestrado em História) — Departamento de História, Setor de Ciências Humanas Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2006. Disponível em: https://acervodigital.ufpr.br/handle/1884/6666. Acesso em: 10 dez. 2021, p. 129. 526 Ibid., p. 20. 168 e conservadores sobre a necessidade da colonização, isso não significou a imediata aprovação da mão-de-obra livre, já que o predomínio era do trabalho escravo. No cerne desta pesquisa, não nos cabe esmiuçar os debates sobre as formas de colonização, o que já foi muito abordado por diversos autores — como José Murilo de Carvalho e Jaime Rodrigues — e foge do escopo deste trabalho. O que é útil para ilustrar a aproximação entre liberalismo e o pacto contra os escravos é o fato de que a mudança na mão-de-obra era antevista como um projeto a longo prazo e foi adotada uma estratégia evasiva frente a eventuais acusações dos ingleses. Os tratados com o governo inglês eram repudiados. Bernardo Pereira de Vasconcelos, do Partido Conservador, que se autodenominava ex-liberal e foi autor do projeto de sesmarias e colonização, defendia ter sido fraqueza do governo brasileiro aceitar do estrangeiro tratados proibidores da importação de escravos. Nesse sentido, tal como afirma Claudia Christina Machado e Silva, “a previsão dos legisladores para o fim do tráfico não se fundava em meras suposições, mas na evidência de tratados que já o proibiam”.527 Ainda que venha sendo contestada em textos mais recentes, como no caso de Jaime Rodrigues,528 a pressão inglesa intensificada na década de 1840 contribuiu para o fim do comércio de escravos. A deliberação na atividade legislativa pendia para a mantença da escravidão, tanto quanto possível, seguindo a tangente em caso de desvio, isto é, a normatização ocorria paulatinamente e sem efetivas rupturas ou alterações estruturais, o que “ganhava tempo” aos latifundiários. Tempo para que pudessem reunir recursos que os garantissem quando a hora chegasse, explorando até o sumo o trabalho escravo. Outro aspecto que merece ser sublinhado é que chegou a acontecer certo debate sobre a importação de colonos africanos, ao invés de imigrantes europeus. Basicamente, os conservadores defendiam a “colonização sistemática” — o recrutamento, transporte e assentamento de capitais e pessoas em colônias ultramarinas, o que no Brasil significava encaminhar imigrantes para o interior do Império529 —, com 527 SILVA, Claudia Christina Machado e. Escravidão e grande lavoura: o debate parlamentar sobre a lei de terras (1842 - 1854). 2006. 146 f. Dissertação (Mestrado em História) — Departamento de História, Setor de Ciências Humanas Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2006. Disponível em: https://acervodigital.ufpr.br/handle/1884/6666. Acesso em: 10 dez. 2021, p. 14. 528 RODRIGUES, Jaime. O infame comércio: propostas e experiências no final do tráfico de africanos para o Brasil (1800-1850). Campinas: Editora da Unicamp, 2000, p. 97. 529 MELÉNDEZ, José Juan Pérez. Reconsiderando a política de colonização no Brasil Imperial: os anos da Regência e o mundo externo. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 34, n. 68, p. 35-60, 2014. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbh/a/htyJmzppNBYvLCJc3q966Lj/?format=pdf&lang=pt. Acesso em: 20 abr. 2022. 169 intermediação do governo central. Os liberais repudiavam a imigração nos núcleos coloniais, fundada na agricultura familiar e pequena propriedade, que contrariava a lógica da plantation escravista. Tendiam a sublinhar a colonização de povoamento. Partidários de ambas as tendências permaneciam convictos sobre a força política e econômica do escravismo.530 Tal como esclarece Machado e Silva: Dessa forma, ao sustentar um discurso antitráfico, o governo procurava na verdade evitar maiores hostilidades com os ingleses. Nesse sentido o ministro Dias de Carvalho ressaltou a inviabilidade do governo concordar com a importação de africanos como colonos, conforme sugestão de Vasconcelos. [...] A defesa da imigração pelo ministro, como veremos, não se tratava apenas de política externa, numa tentativa de conciliar-se aos interesses britânicos. Buscava-se também, através da imigração, promover uma mudança na composição étnica da população de modo a embranquecer a raça.531 A citação acima se refere à sessão parlamentar de 21 de agosto de 1848, na qual era discutido, na ordem do dia, o tema das terras devolutas e colonização — em especial, o Art. 7º do anteprojeto da Lei de Terras, que incumbia o governo de estremar o domínio público do particular, decidindo questões relacionadas. Após um monólogo de inconformismo em relação a animosidades para com a sua pessoa, por ser um saquarema, o Sr. Vasconcelos dizia que o seu grupo tinha o entendimento de que a importação de braços livres de imigrantes europeus em relação aos africanos era precária. De acordo com ele: [...] Eu não sei se já declarei a V. Exª. que sempre me inclinei muito pelos africanos; entendo que são os braços mais úteis que o Brasil deve ter. Até por desgraça estou neste ponto em desarmonia com a administração atual. A atual administração detesta os braços africanos, o liberalismo entende que se não deve mais servir de tais braços; bem, eu não entro nos arcanos do liberalismo: mas o que tenho como certo é que muitas províncias ficam reduzidas à miséria dentro de pouco tempo se o governo não abrir os olhos, se não deixar de ser tão liberal, e liberal exclusivista. Como há de haver cultura do Pará? Virão braços livres? De que parte do mundo? O europeu pode trabalhar no sol dos trópicos, no sol do Pará? Eu folgo muito de ver o liberalismo de alguns representantes das províncias: de certo promovem o seu bem-estar, a sua prosperidade; mas donde virão os braços para cultivar as terras no 530 SILVA, Claudia Christina Machado e. Escravidão e grande lavoura: o debate parlamentar sobre a lei de terras (1842 - 1854). 2006. 146 f. Dissertação (Mestrado em História) — Departamento de História, Setor de Ciências Humanas Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2006. Disponível em: https://acervodigital.ufpr.br/handle/1884/6666. Acesso em: 10 dez. 2021, p. 129-131. 531 Ibid., p. 113. 170 Pará, Maranhão, e em outras províncias que estão em idênticas circunstâncias?532 A passagem é interessante no sentido de que Vasconcelos apresenta uma percepção, própria da época, de quem eram os liberais. E eles não eram os liberais europeus. A sua fala revela que, de um lado, a teoria liberal pregava a necessidade do fim do trabalho escravo, mas de outro, como ele mesmo coloca, eles detestavam os braços africanos. Evidentemente, a sua manifestação não está livre de preconceitos e racismo, visto que descreve os africanos como “braços úteis”, conquanto poderia tê-los referenciado a partir de percepções que dessem enfoque à sua humanidade. Os africanos são comparados no excerto aos imigrantes tendo em vista sua força física e resistência, em face da suposta fragilidade dos segundos. Ainda assim, temos um vislumbre, ainda que breve, de potencialidade de mudança. Outro ponto de destaque é a afirmação colocada de que o liberalismo existia para provimento do bem-estar de seus representantes e para a defesa dessa prosperidade. Vasconcelos seguia dizendo que os ingleses sabiamente importaram africanos para os trabalhos em suas terras, até que uma certa mania anti-africana teria se apoderado do governo inglês. Em resposta, o Sr. Dias de Carvalho, Ministro do Império, refutava a defesa de Vasconcelos da introdução dos africanos no país como colonos e não como cativos. Para Dias de Carvalho: [...] Eu devo dizer ao nobre senador que a vantagem mais importante que reconheço nesta lei é a de facilitar os meios de poder-se introduzir no país a colonização branca, arredando inteiramente dele a colonização de africanos. Não sei se esta opinião pode ser taxada ou não de liberalismo, o que digo simplesmente é que essa convicção que existe no país, ou quase geralmente nos nossos agricultores, de que ele não pode prosperar sem o emprego dos braços africanos, procede provavelmente da dificuldade ou quase impossibilidade que têm achado de encontrar para a cultura outra espécie de braços que não sejam aqueles. Quem olhar porém com atenção para o fruto que tem colhido o Brasil de introdução de africanos, há de reconhecer que, longe de ter ela sido um benefício, tem sido um mal muito grave. [...] O governo julga que é do seu rigoroso dever procurar todos os meios de impedir a introdução de braços africanos no país; entende mesmo dever solicitar do corpo legislativo medidas que o habilitem para isso, uma das quais é fazer vigiar a costa com toda a atividade para que não continue o contrabando, se de contrabando merece o nome. 532 BRASIL. Senado Imperial. Annaes do Senado do Imperio do Brazil. Anno de 1848. Livro 4. Secretaria Especial de Editoração e Publicações — Subsecretaria de Anais do Senado Federal. Transcrição. Disponível em: https://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/asp/ip_anaisimperio.asp. Acesso em: 2 abr. 2022. Sessão em 21 de agosto de 1848, p. 421-424. 171 Pensando assim, o governo não pode aquiescer a idéia do nobre senador sobre a importação de africanos, embora como colonos, para o Brasil, a fim de serem empregados nos trabalhos da nossa agricultura. Esta introdução traria, no meu modo de pensar, uma grande desvantagem, que seria a dificuldade de distinguir esses africanos colonos dos africanos escravos, e essa dificuldade havia de trazer muito sérios e funestos resultados para o país. Demais, eu entendo que o Brasil não ganha com a introdução dessa espécie de população, entendo que o maior cuidado e empenho do governo deve ser introduzir colonos brancos, para assim arredar esta população heterogênea, que, não obstante a opinião do nobre senador, não deixa de inspirar alguns receios.533 É notável e expressa a intenção de branqueamento da população e tentativa de “arredar” os africanos para longe, tanto quanto possível, do núcleo social. Dias de Carvalho enunciava essa tarefa como um dever do Direito e da gestão administrativa do governo. Também pontuava que o valor dado ao trabalho africano provinha da falta de conhecimento de “outros braços”. O Sr. Dias falava não saber ao certo se isso era liberalismo ou não, porém, o que ele colocava era que o problema da mão-de-obra agrária, ou seja, da procura de caminhos para o trabalho assalariado não precisava andar pari passu com qualquer inclusão dos africanos. Do contrário, cabia ao governo, através das normas jurídicas, enxotá-los de modo a garantir a homogeneidade da população. A lavoura brasileira do período monárquico pode ser considerada em duas grandes frentes: a produção açucareira no Nordeste e a grande lavoura cafeeira do Centro-sul do país. A importância econômica do café teve significativa repercussão no período, acentuando-se com a decadência de produtos tradicionais como algodão e tabaco. O café se consolidou como maior fonte de riqueza do país. Quando do retorno do gabinete conservador, havia forte presença dos cafeicultores do Rio de Janeiro.534 Durante a vigência da Lei de Terras, foram realizadas diversas tentativas de reformas — inclusive, no ano de 1878 por comissão nomeada pelo liberal Sinimbu, Ministro da Agricultura, da qual fazia parte Machado de Assis, chegando a ser aprovado 533 BRASIL. Senado Imperial. Annaes do Senado do Imperio do Brazil. Anno de 1848. Livro 4. Secretaria Especial de Editoração e Publicações — Subsecretaria de Anais do Senado Federal. Transcrição. Disponível em: https://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/asp/ip_anaisimperio.asp. Acesso em: 2 abr. 2022. Sessão em 21 de agosto de 1848, p. 423-424. 534 SILVA, Claudia Christina Machado e. Escravidão e grande lavoura: o debate parlamentar sobre a lei de terras (1842 - 1854). 2006. 146 f. Dissertação (Mestrado em História) — Departamento de História, Setor de Ciências Humanas Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2006. Disponível em: https://acervodigital.ufpr.br/handle/1884/6666. Acesso em: 10 dez. 2021, p. 11. 172 o projeto em primeira discussão, mas não indo adiante. Novo projeto foi patrocinado em 1886 pelo conservador Antônio Prado, o qual foi aprovado pela Câmara e enviado ao Senado no mesmo ano, sendo descontinuado com a Proclamação da República.535 Na visão de José Murilo de Carvalho, a Lei em questão seria “o primeiro grande exemplo nacional de lei que não pegou”,536 visto que, para o autor, a política de terras do Império basicamente não teria saído do nível legislativo. Inobstante, a Lei de Terras não foi criada para a resolução do problema agrário. Dessa maneira, ela deve ser interpretada segundo os propósitos para os quais se dispôs e considerando que foi elaborada e executada por um grupo que estava diretamente vinculado à terra e sua ocupação — fazendeiros, sesmeiros e grandes posseiros, senhores possuidores de extensas terras. Um dos ganhos gerais da Lei foi a definição de critérios jurídicos que passariam a ordenar situações que antes eram embasadas através de costumes e tradições.537 Ela fez parte do processo de especificação do Direito, de forma que impactos positivos seriam colhidos pelos pequenos proprietários apenas posteriormente, ao longo dos seus 39 anos de implemento. A contribuição da Lei de Terras para o entendimento do liberalismo brasileiro está, em primeiro lugar, no fato de que diferentemente dos países europeus, o Brasil era predominantemente agrário. O verdadeiro encaminhamento para o trabalho assalariado se tornaria possível, dentre outros fatores, a partir do crescimento da vida e da população urbana, com o acesso a novas tecnologias e os rumos à industrialização. Não é possível se presumir ingenuidade intelectual ou política ante o prorrogar da escravidão por séculos. Com a aproximação entre liberdade e autoridade, o Direito entre nós logo assumiu a sua função de controle sobre as massas e o liberalismo, como em outros lugares, exerceu seu papel como forma de manutenção da ordem e de dominação: em seu cerne reside a ideia de que uma vez estabelecido o pacto social, ele deve ser respeitado, e a única resistência permitida é aquela dentro da lei. Ou seja, não há lugar para a resistência, apenas para a desobediência civil, quando o descontentamento provém 535 CARVALHO, José Murilo de. Modernização frustrada: a política de terras no Império. Revista Brasileira de História, São Paulo, n. 1, v. 1, p. 39-57, mar. 1981. Disponível em: https://www.anpuh.org/arquivo/download?ID_ARQUIVO=1297. Acesso em: 28 abr. 2022, p. 49. 536 Ibid., p. 39. 537 SILVA, Marcio Antônio Both da. Lei de Terras de 1850: lições sobre os efeitos e os resultados de não se condenar “uma quinta parte da atual população agrícola”. Revista Brasileira de História [online], v. 35, n. 70, p. 87-107, 2015. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1806-93472015v35n70014. Acesso em: 20 abr. 2022, p. 90-91. 173 de violação de norma do próprio sistema, cabendo somente o saneamento interno do problema. Se a Lei de Terras abriu a estrada par o projeto conservador, grandes mudanças seriam efetivamente experimentadas na década de 1870. Além da Lei do Ventre Livre, teríamos a efervescência de novas ideias, que passariam a contestar o liberalismo estamental. Ainda que em certa medida essas perspectivas se mostrassem enviesadas pela condição socioeconômica de seus defensores, parâmetros diversos foram tomados para interpretação do Brasil, considerando a sua singularidade. 3.3 O BRASIL ERA FATALMENTE UMA DEMOCRACIA? GERAÇÃO DE 1870 E A CRÍTICA DA ESCOLA DE RECIFE [...] Em uma palavra Sr. Presidente, e para servir-me de uma imagem rasteira, porém expressiva, direi que a organisação politica brasileira póde-se figurar sob o schemma de um enorme banquete, de muitos milhares de talheres: vós, conservadores, sois os homens da primeira mesa; nós liberaes os homens da segunda, que já vamos, em grande parte, roer os ossos que nos dexais. Atraz de nós é que vem a pobre musica, que ainda não comeu... – são os republicanos... (Riso).538 O trecho acima é parte de um discurso de Tobias Barreto (1839-1889) para a Assembleia de Pernambuco. Ao tempo dele, Barreto trazia um prelúdio das mudanças que estavam por vir no fim do século e revelava a grande insatisfação que assolou os liberais durante o Segundo Reinado, consistente na acusação de baixas possibilidades de representatividade do Partido Liberal e na hegemonia dos saquaremas no poder. Tobias Barreto também falava da tendência republicana, à qual conferia uma posição ainda mais diminuta do que a liberal, suprimida pelos conservadores. Colocava, porém, liberais e conservadores à mesa, no cume do centro de decisões, com os republicanos figurados como música, à espreita. Influenciado pelo reformismo ilustrado do período e com latente crítica ao sistema, o corolário da Escola de Recife demonstrava a proximidade gerada por compromissos entre liberais e conservadores e a disputa de poder deslanchada na segunda metade do século XIX, exasperando seu inconformismo com a situação. 538 BARRETO, Tobias. Verificação dos Poderes. Discurso para a Assemblèa de Pernambuco. Sessão em 10 de dezembro de 1878. p. 17. In: BARRETO, Tobias. Obras Completas IV. Discursos. Edição do Estado de Sergipe, ECE Ed., 1926. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/ub000029.pdf. Acesso em: 10 mai. 2022, p. 17. 174 Podemos afirmar que entre as correntes intelectuais mais significativas do Segundo Reinado, além do espiritualismo eclético, houve a “reação católica”, composta por um grupo de filosofias de defesa da Igreja frente à secularização na sociedade, que compreendia o neotomismo ou neo-escolástica (filosofia oficial da Igreja a partir de 1879), além das demais escolas anteriores, que incluíam o tradicionalismo, krausismo e rosminianismo. No mais, tivemos a Escola do Recife, que atingiu o seu clímax na década de 1870, tendo Tobias Barreto como seu principal representante.539 A principal razão pela qual a Escola de Recife é ligada pela historiografia brasileira a uma chegada de novas ideias é que desde a década de 1820 não se tinha expressões intelectuais concretas que mobilizassem efetivas críticas ao liberalismo consolidado e à hierarquia social que ele representava. Serão os pensadores de Recife, intelectualmente marginalizados pela elite econômica e regionalmente estratificada, que colocarão contrapontos a essa estrutura, pela ótica da interpretação da realidade brasileira e não com fulcro em parâmetros exclusivamente estrangeiros. Eles foram responsáveis por proporcionar uma argumentação feroz e radicalizada sobre os problemas do Segundo Reinado, em especial aqueles ligados à distribuição de poder, à representação e ao fato de que seus contemporâneos não olhavam para o contexto interno, muito menos para o povo que se encontrava no país. Ainda que sua marginalização não significasse desprovimento de recursos, já que se esse fosse o caso, não estariam entre os intelectuais da época, também levando-se em consideração que seus posicionamentos não podem ser desvinculados das ideias internalizadas na época, sua grande contribuição foi essa maior adjacência com os problemas da realidade material, sob um ponto de vista que demonstrava insatisfação com os rumos tomados pelo Brasil. Sobre esse movimento intelectual das últimas décadas do Império do Brasil, duas abordagens preponderam. A primeira, lembrando da expressão de Sílvio Romero (1851- 1914) — o “esvoaçar de ideias novas” — traz discussões sobre a filiação intelectual dos autores e da originalidade nas formas de adoção de paradigmas. A outra apresenta foco na formação de “escolas” que dialogam entre si, enfatizando a origem social de seus participantes e apresentando-os como porta-vozes de setores da sociedade, ou de uma 539 MACEDO, Ubiratan Borges de. A idéia de liberdade no século XIX: o caso brasileiro. Rio de Janeiro: Editora Expressão e Cultura, 1997, p. 38-39. 175 burguesia nascente, com a crítica das instituições imperiais e do sistema socioeconômico abalizado pela escravidão.540 Angela Alonso critica essas duas apreensões, colocando que falta, no primeiro enfoque, contextualização social e política, e no segundo, remanesce um simplismo na caracterização da produção intelectual da época, tomada como expressão ideológica imediata dos interesses de grupos desconformes. Contesta também pressupostos das abordagens tradicionais, como a hipótese de existência no Brasil de um campo intelectual autônomo à época, distinto da esfera política.541 Procuramos aqui trazer uma visão que tenha seu cerne na produção intelectual e na ação política de seus agentes, sem desvinculá-los da noção de que essas atividades aconteciam em conjunto. Não procuramos adentrar nas relações sociais estabelecidas entre os agentes, mas nos resultados palpáveis de sua experiência no campo jurídico. Refletindo sobre esses intelectuais da década de 1870 e o que os unia como uma “geração”, apesar da existência de pensamentos heterogêneos, era a perspectiva crítica do status da sociedade imperial, de sua marginalização em face do núcleo de poder dos saquaremas e o papel desempenhado através de propostas reformistas. Embora o movimento intelectual fosse, por definição, um movimento de elite — já que nenhum de seus membros era totalmente desprovido de recursos sociais e econômicos —, tratava-se de uma marginalização política, amargada pela insatisfação com um regime fechado que não se modernizava. Outrossim, tinha-se uma experiência de exclusão compartilhada, que confere sentido à crítica realizada às instituições, valores e práticas do regime imperial. Nas manifestações desses intelectuais, há uma indistinção entre suas atividades políticas e intelectuais, de modo que suas publicações não estavam restritas apenas às instituições, ganhando um viés contestatório.542 Essa condição de marginalização provinha, segundo Nascimento, do fato de que os intelectuais do grupo não dispunham de capitais econômicos em um patamar suficiente para resistir ao processo de exclusão em relação ao status quo imperial, o que explica o seu posicionamento contrário ao liberalismo estamental. Um segundo elemento era que 540 ALONSO, Angela. Crítica e contestação: o movimento reformista da geração 1870. Revista Brasileira de Ciências Sociais [online], v. 15, n. 44, p. 35-55, out. 2000. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbcsoc/a/xCb8knmRgSqgmCLxKYG7qzq/abstract/?lang=pt#ModalArticles. Acesso em: 10 mar. 2022, p. 38-39. 541 Ibid., p. 39. 542 Ibid., p. 41. 176 eles se moviam em uma sociedade patrimonialista na qual as instituições intelectuais e culturais eram palco de disputas políticas, de modo que o apoio político era degrau necessário à ascensão. Logo, eles estavam desprovidos de boas relações sociais e políticas nesse espaço, de forma que a carreira intelectual se demonstrava como um investimento difícil.543 Fundamentalmente, as expressões intelectuais da década de 70 acompanharam essa desagregação da ordem política do Império, que se mantivera até então um universo fechado, com valores e instituições que limitavam a cidadania e o debate público em um seleto grupo de “iguais”. A dinâmica político-intelectual do Segundo Reinado trouxe uma série de dilemas que conduziram a oportunidades de mudanças,544 sendo nesse momento que ganhou força o Partido Republicano — em particular na Corte, em São Paulo e no Rio grande do Sul —, assim como os movimentos para a emancipação dos escravos.545 As contribuições da Escola de Recife vão além da mera elaboração de novos sistemas filosóficos de interpretação da realidade nacional. Inobstante intérpretes costumem dividir seus integrantes de acordo com sua adesão a correntes europeias — liberalismo, positivismo, cientificismo, spencerianismo, darwinismo social —, a fotografia mais comum aponta para a imitação e deslumbre com as ideias europeias, posicionamento reducionista que viemos contrariando ao longo desta pesquisa. A utilidade na sua apreciação reside também em compreender as transformações que aconteceram no período e nas próprias ideias liberais. O movimento trouxe a manifestação dos anseios com o processo de modernização do país, o que veio acompanhado da adoção de variações do liberalismo que passavam a se colocar, contudo, como contrárias ao liberalismo estamental.546 543 NASCIMENTO, Márcio Luiz do. Primeira Geração Romântica versus Escola do Recife: trajetórias de intelectuais da Corte e dos intelectuais periféricos da Escola do Recife. 2010. 254 f. Tese (Doutorado em Sociologia) — Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8132/tde-07052010-124022/pt-br.php. Acesso em: 2 abr. 2022, p. 144-148. 544 ALONSO, Angela. Idéias em movimento — A Geração de 1870 na crise do Brasil-Império. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002, p. 51. 545 KUGELMAS, Eduardo. Revisitando a geração de 1870. Revista Brasileira de Ciências Sociais [online], v. 18, n. 52, p. 208-210, 2003. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbcsoc/a/W4j8YSqmWy3Dxb7Kzn4FzmK/?format=pdf&lang=pt. Acesso em: 10 mar. 2022, p. 209. 546 ALONSO, Angela. Crítica e contestação: o movimento reformista da geração 1870. Revista Brasileira de Ciências Sociais [online], v. 15, n. 44, p. 35-55, out. 2000. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbcsoc/a/xCb8knmRgSqgmCLxKYG7qzq/abstract/?lang=pt#ModalArticles. Acesso em: 10 mar. 2022, p. 35-38. 177 Foram, desse modo, segundo Alonso, incorporados seletivamente elementos da política científica para composição do repertório de razões práticas do movimento, resultando na interpretação dos rumos de mudança social, em especial, a escravidão e a representação política; na expressão de insatisfações políticas dos grupos marginalizados componentes do movimento; e no oferecimento de recursos para o combate dos princípios liberais que procuravam justificar os bloqueios políticos da sociedade estamental e legitimar reivindicações pela via da reforma.547 No caso da Escola de Recife, apesar das divergências acadêmicas sobre a sua nomenclatura — ao exemplo de Alonso, que contesta a denominação —, o fato é que o grupo de intelectuais a ela vinculado espelhava as mudanças que estavam por vir, representando uma linha de pensamento diferenciada, ainda que não houvesse completa homogeneidade entre seus posicionamentos. Em sua formação já eram perceptíveis pontos doutrinários não acordados, o que se intensificou com a obstrução das reformas sociopolíticas pretendidas pelo grupo e com a ascensão dos conservadores ao poder.548 Com a reforma controlada e modernizante do gabinete Rio Branco para a economia e a sociedade do início dos anos 1870, que não pretendia a alteração das instituições, os seus impasses encadearam uma crise que desestabilizou os partidos políticos, com diversas dissidências. Os pilares e instituições do Segundo Reinado restavam enfraquecidos: a incompatibilidade da sociedade imperial — com fundamento escravista e o caráter estamental das instituições — com a modernidade pretendida refletia-se na decadência do padrão da sociedade e da estrutura política pautada no Antigo Regime. A partir desse contexto de crise se desenvolveu um dissenso político e intelectual em torno do status quo imperial. Ao invés de elaborarem obras que visavam a produção de valores universais, os intelectuais da crise do Império buscaram realizar interpretações do Brasil. Os temas tratados seguiram a conjuntura política e acompanharam a agenda 547 ALONSO, Angela. Crítica e contestação: o movimento reformista da geração 1870. Revista Brasileira de Ciências Sociais [online], v. 15, n. 44, p. 35-55, out. 2000. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbcsoc/a/xCb8knmRgSqgmCLxKYG7qzq/abstract/?lang=pt#ModalArticles. Acesso em: 10 mar. 2022, p. 47. 548 NASCIMENTO, Márcio Luiz do. Primeira Geração Romântica versus Escola do Recife: trajetórias de intelectuais da Corte e dos intelectuais periféricos da Escola do Recife. 2010. 254 f. Tese (Doutorado em Sociologia) — Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8132/tde-07052010-124022/pt-br.php. Acesso em: 2 abr. 2022, p. 135. 178 parlamentar do período, em especial, dilemas estruturais da sociedade imperial, principalmente a organização política e o regime de trabalho.549 Tobias Barreto passou pelo ecletismo, depois pelo positivismo, inclinando-se ao monismo de Haeckel nos anos 1880, enquanto Sílvio Romero transitou pelas obras de Litrré, Spencer, Renan e Taine. Já Aníbal Falcão e Martins Júnior foram de abolicionistas em meados de 1870 a positivistas politicamente rígidos na década de 1880, defendendo a república e o fim da escravidão. Artur Olando, Martins Júnior, José Higino e Farlante Câmara voltavam-se a teses republicanas, abolicionistas e positivistas.550 Barreto e Sílvio Romero aproximavam-se dos liberais republicanos no que se diz respeito à abordagem política e às propostas de reforma. Contudo, em matéria econômica, estavam mais perto dos positivistas abolicionistas de Recife. Os baixos capitais de relações sociais e econômicas foram motores da Escola de Recife antes do acirramento da crise política em 1885, a partir da busca de viabilização de estratégias de ascensão. Ambos traziam uma ideia urgente de se arquitetar uma espécie de doutrina política positiva, “livre de presunções e de hipóteses”, “firmada na experiência direta dos acontecimentos” e com “força de modificar hábitos e tendências do povo”,551 em torno da qual gravitassem as vontades políticas divergentes, com o adendo de “civilizar” a nação.552 Tobias Barreto, mulato, finalizou o curso de Direito em 1869. Durante a década de 1870 atuou no Recife como advogado, ingressando no Partido Liberal e fundando o jornal político O Americano. Foi para o interior, vivendo em Escada de 1871 a 1882 e dedicando-se à advocacia e à política, período no qual exerceu o mandato de deputado junto à Assembleia Provincial (eleições de 1878, pelo Partido Liberal). Era crítico do Poder Moderador e colocava a centralização da vida nacional como capaz de atrofiar alguns órgãos nas mãos de um governo estólido e mesquinho, de tal 549 ALONSO, Angela. Crítica e contestação: o movimento reformista da geração 1870. Revista Brasileira de Ciências Sociais [online], v. 15, n. 44, p. 35-55, out. 2000. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbcsoc/a/xCb8knmRgSqgmCLxKYG7qzq/abstract/?lang=pt#ModalArticles. Acesso em: 10 mar. 2022, p. 42-47. 550 NASCIMENTO, Márcio Luiz do. Primeira Geração Romântica versus Escola do Recife: trajetórias de intelectuais da Corte e dos intelectuais periféricos da Escola do Recife. 2010. 254 f. Tese (Doutorado em Sociologia) — Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8132/tde-07052010-124022/pt-br.php. Acesso em: 2 abr. 2022, p. 134-135. 551 BARRETO, Tobias. Crítica política e social. Rio de Janeiro: Record; Brasília: INL, 1990, p. 53 e 87. 552 NASCIMENTO, op. cit., p. 141-142 e 178. 179 sorte que, para ele, a corte do Império era um resumo dos nossos males.553 No ensaio A Questão do Poder Moderador (1883), ele dizia que: A questão do poder moderador, a que se acham reduzidos quasi todos os problemas do nosso direito publico, serve hoje de alimento a muita ignorancia e covardia politica. Dir-se-hia que ella existe, somente para dar á posteridade mais um testemunho, entre os muitos, que devem convencê-la da pobreza e do atrazo em que vivemos.554 Vemos assim que ele atribuiu o “atraso” da nação a uma instituição falha e arbitrária, à centralização política, voltando-se a um problema interno, não necessariamente vinculado à capacidade de absorção de ideias. Na sequência, ele complementa a argumentação falando dos problemas de se pautar questões de organização política em ideias estrangeiras e afirmando que o papel do Imperador é “Nenhum outro, fallemos a verdade, se não deixar-se amoldar ás ideias ditas inglezas do pedantismo parlamentar, que vão assumindo entre nós uma importancia indébita”.555 Também falava sobre como a figura do Imperador, combinada com o Poder Moderador, remontava às bases do Antigo Regime, sendo ele tomado em um patamar divino, dizendo que “A crer-se no que ensinam, até os mais adiantados, o principe brasileiro é um penhor inestimavel da protecção divina, que se exerce claramente sobre a marcha deste império”.556 Aproximando-se dos liberais republicanos — como Quintino Bocaiuva e Saldanha Marinho —, Barreto priorizava temáticas como a descentralização da política, a liberdade de culto, o fim da monarquia (e do Poder Moderador), a separação entre Igreja e Estado e a universalização dos direitos civis para analfabetos e pobres livres.557 Daí extraímos que a maioria da população era analfabeta, e que essa universalização de 553 BARRETO, Tobias. Ensaios de Philosophia e critica. 2 ed. Pernambuco: Editor José Nogueira de Souza, 1889. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/ub000031.pdf. Acesso em: 4 mai. 2022, p. 163. 554 BARRETO, Tobias. A Questão do Poder Moderador (o governo parlamentar no Brasil). In: BARRETO, Tobias. Estudos de Direito. Publicação póstuma dirigida por Sílvio Romero. Rio de Janeiro: Laemmert & C. Editores proprietários, 1882. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/item/id/224199. Acesso em: 10 mai. 2022, p. 388. 555 Ibid., p. 389. 556 Ibid., p. 389. 557 NASCIMENTO, Márcio Luiz do. Primeira Geração Romântica versus Escola do Recife: trajetórias de intelectuais da Corte e dos intelectuais periféricos da Escola do Recife. 2010. 254 f. Tese (Doutorado em Sociologia) — Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8132/tde-07052010-124022/pt-br.php. Acesso em: 2 abr. 2022, p. 138-140. 180 direitos estaria voltada também aos libertos, colocando-se contra o voto censitário. Era favorável à emancipação gradual dos escravos. No poema A Escravidão (1868), Barreto falava da escravidão como um verdadeiro “crime”, que já havia se tornado questão de patriotismo, isto é, era defendido com vigor em todo o país e tinha significados para além de sua superfície. Colocava o instituto como algo de força maior do que a religião, pontuando que estava na hora de se corrigir este erro. Conforme Barreto: A Escravidão (Improviso) Si Deus é quem deixa o mundo Sob o peso que o opprime, Si elle consente esse crime, Que se chama a escravidão, Para fazer homens livres, Para arrancal-os do abysmo, Existe um patriotismo Maior que a religião. Si não lhe importa o escravo, Que a seus pés queixas deponha, Cobrindo assim de vergonha A face dos anjos seus, Em seu delirio ineffavel, Praticando a caridade, Nesta hora a mocidade Corrige o erro de Deus!... (1868)558 É latente sua visão de que o instituto era a face vergonhosa do Brasil e que cabia aos homens corrigir esse erro. O autor era favorável à emancipação gradual dos escravos. Teve um polêmico desentendimento com os abolicionistas de Recife, chegando a dizer ironicamente que até mesmo as sociedades protetoras de animais na Europa agiam com mais senso ético e religioso do que as chamadas “sociedades abolicionistas” entre nós.559 Devo confessar que acho mais attestador de um bom coração a compaixão para com certos irracionaes, do que mesmo para com certos 558 BARRETO, Tobias. A Escravidão. In: BARRETO, Tobias. Dias e Noites (1854-1881). Com um Juízo Crítico de Sílvio Romero. Rio de Janeiro: Imprensa Industrial Editora, 1881. Disponível em: http://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_obrasraras/or26315/or26315.pdf. Acesso em: 10 mai. 2022, p. 164. 559 BARRETO, Tobias. Questões Vigentes. In: BARRETO, Tobias. Obras Completas IX. Questões Vigentes. Edição do Estado de Sergipe, ECE Ed., 1926. Disponível em: https://bibliotecadigital.stf.jus.br/xmlui/handle/123456789/715. Acesso em: 10 mai. 2022, p. 286, nota de rodapé 135. 181 indivíduos humanos. A’ meu ver, as sociedades de protecção aos animaes, como ellas existem fundadas em alguns paizes da Europa, encerram muito mais senso ethico e religioso, do que, por exemplo, as sociedades abolicionistas entre nós. Não é motivo de espanto; reparem bem. O escravo, até um certo ponto, soffre por que quer, desde que pode reagir, ou evitar o martyrio pela fuga. Mas os pobres animaes não estão no mesmo caso.560 Apesar da infeliz comparação que pode ser extraída da passagem, dos escravos em relação aos animais, Barreto reconhecia que eles podiam reagir, ironizando que até mesmo o tratamento destes últimos na Europa era melhor do que a maneira com que os escravos sofriam no Brasil. Sua perspectiva não pode, evidentemente, ser desvinculada de ideias fortemente enraizadas à época, como também é o caso de Romero. A contribuição de ambos está em um olhar mais atento para o Brasil e sua composição como povo, abrindo caminho a outras abordagens. De volta à argumentação de Tobias Barreto direcionada para a crítica da organização política do Império, ela pode ser desdobrada em dois principais segmentos. Primeiramente, na premissa de que o governo parlamentar era uma criação inglesa, resultante do desenvolvimento histórico daquela nação, restando as tentativas brasileiras de copiá-lo sujeitas ao fracasso. Ele se voltava à Inglaterra para trazer argumentos que justificassem o porquê de não termos uma monarquia representativa, já que naquele país esse processo estava atrelado às guerras civis, ao enfraquecimento político dos feudos e às contribuições da reforma protestante.561 Em segundo lugar, na crença de que a ciência tinha o viés de desvendar a “lei” do curso da história brasileira, ideia que não seria sustentada em suas obras finais.562 Para ele, o Partido Conservador teria realizado pontos do programa liberal, ao exemplo da modernização burocrática e da votação da Lei do Ventre Livre. Criticava o partido por não demonstrar oposição ao Poder Moderador, assim como não se inclinar ao 560 BARRETO, Tobias. Questões Vigentes. In: BARRETO, Tobias. Obras Completas IX. Questões Vigentes. Edição do Estado de Sergipe, ECE Ed., 1926. Disponível em: https://bibliotecadigital.stf.jus.br/xmlui/handle/123456789/715. Acesso em: 10 mai. 2022, p. 286, nota de rodapé 135. 561 NASCIMENTO, Márcio Luiz do. Primeira Geração Romântica versus Escola do Recife: trajetórias de intelectuais da Corte e dos intelectuais periféricos da Escola do Recife. 2010. 254 f. Tese (Doutorado em Sociologia) — Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8132/tde-07052010-124022/pt-br.php. Acesso em: 2 abr. 2022, p. 178. 562 PAIM, Antônio. História do liberalismo brasileiro. São Paulo: Mandarim, 1998, p. 80-81. 182 aumento da autonomia dos municípios ou votar uma Lei eleitoral que fosse inclusiva quanto às mulheres e aos não católicos.563 Em sua perspectiva a abolição de privilégios não tinha lugar entre os conservadores. O autor considerava a monarquia nacional como um anacronismo que tentava conjugar liberalismo, representatividade e Poder Moderador, pontuando que a república seria um acontecimento positivo,564 independentemente do tempo de sua instauração.565 Observamos que para além da crítica ao Partido Conservador, o autor fazia uma tentativa de trazer soluções para a superação das instituições arcaicas que provinham do Antigo Regime e da herança colonial, do ponto de vista interno, posicionando-se como avesso à “importação de ideias”. Essa perspectiva demonstrou-se relevante para ventilar outros conceitos no debate político, como a democracia. Na visão de Barreto, “o verdadeiro solar do liberalismo é a democracia”.566 Fazia uma leitura de que o princípio democrático em si seria a abolição de todas as aparências de privilégio. Não era todo cidadão que exerceria funções diretas e imediatas no governo, mas tinha-se a noção de um governo eleito por todos, no qual pudessem contribuir na substituição ou melhoramento de mecanismos para tanto. Segundo ele, a ideia liberal deveria ser a assimilação da democracia.567 Também afirmou Sílvio Romero que o Brasil era “um paiz fatalmente democratico”, já que era filho da cultura moderna e que os maiores fatores de igualização dos homens seriam a democracia e o “mestiçamento”.568 Ele também dizia que uma característica da civilização moderna era uma mescla cada vez maior de todas as classes e raças. De acordo com Romero: 563 BARRETO, Tobias. Estudos de Direito I. Rio de Janeiro: Record, 1991, p. 94. 564 BARRETO, Tobias. Crítica política e social. Rio de Janeiro: Record; Brasília: INL, 1990, p. 99 e 100. 565 NASCIMENTO, Márcio Luiz do. Primeira Geração Romântica versus Escola do Recife: trajetórias de intelectuais da Corte e dos intelectuais periféricos da Escola do Recife. 2010. 254 f. Tese (Doutorado em Sociologia) — Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8132/tde-07052010-124022/pt-br.php. Acesso em: 2 abr. 2022, p. 179-181. 566 BARRETO, Tobias. Varios Escriptos. Publicação póstuma por Sílvio Romero. Rio de Janeiro: Laemmert & Co. Editores, 1990. Disponível em: https://www.literaturabrasileira.ufsc.br/documentos/?action=download&id=91996. Acesso em: 1 jun. 2022, p. XL. 567 CAMARA, Phaelante da. Tobias Barreto: o jornalista. Revista Acadêmica da Faculdade de Direito do Recife, v. 15, n. 1, p. 73-101, 1907, p. 86. 568 ROMERO, Sílvio. Introdução a doutrina contra doutrina. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. XX. 183 [...] O Brasil é um paiz fatalmente democrático. Filho da cultura moderna, depois da época das grandes navegações e das grandes descobertas, o que importa dizer, depois da constituição forte da plebe e da burguezia, elle é, além do mais, o resultado do cruzamento de raças diversas, onde evidentemente predomina o sangue tropical. Ora, os dous maiores factcres de egualisação entre os homens são a democracia e o mestiçamento. E estas condições não nos faltam em gráo algum, temol-as de sobra.569 Procuramos destacar aqui o conceito de democracia, visto que ele foi repetidamente relacionado às correntes liberais “radicais” ou a um “democratismo” em separado durante o Império. Na década de 1870, ocorre um amadurecimento sobre sua apreensão e relacionamento com o liberalismo, o que está ligado à expansão do modelo liberal de democracia, no cerne internacional. Havia uma admiração mútua e um coleguismo entre Barreto e Sílvio Romero. Formado na Faculdade de Direito de Recife junto com Tobias, o sergipano foi deputado provincial no interior e buscava a renovação do pensamento brasileiro, de modo que se afastou de Comte, aproximando-se de Spencer. Atuou como juiz municipal em Paraty e fixou-se no Rio de Janeiro. Fez críticas severas à Machado de Assis, mantendo grande oposição à sua obra.570 Voltou-se a um projeto de “construção da nação”, ao entendimento do “nacional”. Chegou a escrever, em novembro de 1912, uma série de artigos propondo a fusão dos Estados do Paraná e Santa Catarina, foco de disputas na região do Contestado.571 Combateu o espiritualismo de Victor Cousin, que tinha como representante no Brasil Monte Alverne e outros nomes citados em tópico anterior. Sua crítica ao Brasil tinha uma base naturalista, de maneira que falava de uma situação de “atraso” no Brasil, atribuída à aversão das classes brancas dirigentes do país aos grupos de negros, mestiços e índios. Negava a possibilidade de mera absorção ou imitação das ideias estrangeiras como teria, para ele, ocorrido com o parlamentarismo e o liberalismo de Stuart Mill.572 569 ROMERO, Sílvio. Introdução a doutrina contra doutrina. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. XX. 570 ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS. Acadêmicos. Sílvio Romero. Biografia. Disponível em: https://www.academia.org.br/academicos/silvio-romero/biografia. Acesso em: 2 mai. 2022. 571 CAMPOS, Cynthia Machado. O imaginário nacionalista em Sílvio Romero — a questão do Contestado. Revista de Ciências Humanas, Florianópolis, v. 16, n. 23, p. 11-34, 1998. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/revistacfh/article/view/23540. Acesso em: 3 de mai. 2022, p. 13. 572 DA COSTA FILHO, Cícero João. Turbulência de ideias: Sílvio Romero, entre a crítica literária e a sociologia de seu tempo (1851-1914). Caminhos Da História, 25(1), p. 115–138, 2020. Disponível em: https://www.periodicos.unimontes.br/index.php/caminhosdahistoria/article/view/2629. Acesso em: 2 mai. 2022, p. 127-128. 184 Criticou a elite econômica, incluindo os grupos de médicos, literatos e jornalistas, que não enxergavam, conforme ele, as raízes dos males nacionais, esboçando um Brasil irreal. Influenciado por Buckle e Taine, estudou zonas sociais do Brasil para abalizar um panorama no qual ele tentava descobrir o caráter ou a índole do brasileiro. Afirmava ser o mestiço o “agente diferenciador” e a singularidade brasileira. Estudando a escravidão, ele pendia, contudo, para uma diferença inata das raças como fator de relevância.573 Dizia Romero que: A estatística mostra que o povo brasileiro compõe-se actualmente de brancos aryanos, indios tupis-guaranys, negros quasi todos do grupo bantú e mestiços destas tres raças, orçando os últimos certamente por mais de metade da população. O seu numero tende a augmentar, ao passo que os indios e negros puros tendem a diminuir. Desapparecerão n'um faturo talvez não muito remoto, consumidos na lucta que lhes movem os outros ou desfigurados pelo cruzamento. O mestiço, que é a genuina formação histórica brasileira, ficará só diante do branco quasi puro, com o qual se ha de, mais cedo ou mais tarde, confundir.574 Destacava em sua perspectiva o elemento racial, tratando de uma raça colonizadora que haveria recorrido ao negro e aos mestiços para o trabalho agrícola. Trouxe denúncias sobre problemas nacionais como a fotografia miserável e arcaica do Brasil através das classes dominantes e a exploração do homem pelo homem.575 Quanto à escravidão, Romero defendia uma emancipação “autonômica e popular”, nada dependendo do governo a questão, de caráter econômico e social, de modo que as famílias, os indivíduos e as províncias fossem liberando os escravos, “irmãos de cor” por motivos morais e pelo fato de o escravo passar a ser uma desvantagem ao trabalho livre.576 Em diversos momentos de sua obra, Romero admite a toxicidade das elites dirigentes e a violência em seus meios. Tal como Barreto, ele também vislumbrou uma brecha para a possibilidade de mudanças na esfera política e buscava caminhos para 573 DA COSTA FILHO, Cícero João. Turbulência de ideias: Sílvio Romero, entre a crítica literária e a sociologia de seu tempo (1851-1914). Caminhos Da História, 25(1), p. 115–138, 2020. Disponível em: https://www.periodicos.unimontes.br/index.php/caminhosdahistoria/article/view/2629. Acesso em: 2 mai. 2022, p. 117-118. 574 ROMERO, Silvio. Historia da Litteratura brasileira. 2. ed. Tomo Primeiro (1800-1830). Rio de Janeiro: H. Garnier Livreiro-Editor, 1902. Disponível em: https://bibdig.biblioteca.unesp.br/handle/10/6569. Acesso em: 3 mai. 2022, p. 54. 575 DA COSTA FILHO, op. cit., p. 127-128. 576 ROMERO, op. cit., p. XVIII. 185 equalizar a sua condição marginal, ainda que essa marginalidade, como vimos, fosse muito distinta dos grupos social e politicamente isolados. Depois do advento da República, ele diria que os problemas políticos tinham ganhado outra face, remanescendo o velho, mas ganhando uma aparência atual, isto é, “federalismo, republica e organisação municipal; pela face economica [...] está substituído por tres outros — o aproveitamento da força productora do proletariado, a organisação do trabalho em geral, a boa distribuição da propriedade”.577 O que procuramos demonstrar a partir dos principais expoentes da Escola de Recife que flertavam com o liberalismo é que o ideário sofreu alterações mais significativas aos fins do século no Brasil, ganhando na geração de 1870 um viés mais crítico de sua face estamental. Assim como afirma Alencar, eles faziam parte de uma “plebe intelectual”, composta por grupos como jornalistas, oradores e doutores pobres.578 Então, após um longo período de estabilidade política (que tinha no seu background ferrenhas disputas entre as elites imperiais), uma movimentação começou a acontecer e abalar os alicerces da ordem jurídica estabelecida. Foram adicionadas ao repertório nacional interpretações mais perspicazes da realidade brasileira e que tomavam sua especificidade como um ponto de partida necessário, assumindo que não seria possível ignorar ou renegar as referências estrangeiras, mas que era preciso utilizá-las como um dos vários mecanismos para a compreensão da sociedade, da política e do Direito internos. O Brasil tinha algo a dizer. O ganho foi, portanto, a alteração dos instrumentos de análise, caminhando-se para a percepção de um Brasil, a partir do Brasil. Os eventos que se seguiram intensificaram o discurso reformista e obrigaram uma adaptação das elites proprietárias para as mudanças que se alastravam. Depois de séculos insistindo em uma defesa ferrenha da escravidão, o que seria do liberalismo brasileiro com o fim da sua institucionalização? Passamos em seguida a tratar justamente das implicações das leis emancipatórias para o liberalismo imperial e como, não obstante o surgimento de novas ideias, mudanças políticas, sociais e tecnológicas, ocorreu um rearranjo das relações de poder, sem deixar 577 ROMERO, Silvio. Historia da Litteratura brasileira. 2. ed. Tomo Primeiro (1800-1830). Rio de Janeiro: H. Garnier Livreiro-Editor, 1902. Disponível em: https://bibdig.biblioteca.unesp.br/handle/10/6569. Acesso em: 3 mai. 2022, p. XIII. 578 ALENCAR, José Almino de. O Brasil é fatalmente uma democracia: Sílvio Romero. Seminário "Repensando o Brasil com Sílvio Romero" promovido pela Fundação Biblioteca Nacional no segundo semestre de 2001 no Centro Cultural da Justiça, e publicado na Revista Tempo Brasileiro, 145:5/37, abr./jun. 2001. Disponível em: http://antigo.casaruibarbosa.gov.br/dados/DOC/artigos/a- j/FCRB_JoseAlminoAlencar_OBrasil_fatalmente_uma_democracia.pdf. Acesso em: 5 mai. 2022, p. 3. 186 esvair os mesmos grupos no centro do poder, com novos nomes. O escravismo legalizado iria embora, mas sem abandonar a violência e o seu enraizamento em um Direito que nasceu de bases excludentes. 187 4. CAMINHOS PARA O LIBERALISMO DO FIM DO IMPÉRIO: ERA DA REFORMA E O PROBLEMA JURÍDICO DA ESCRAVIDÃO É duro para o partido liberal, Sr. Presidente, eclypsar-se neste momento em que se passa uma verdadeira apotheose nacional. Mas, como eu disse, a culpa é somente delle, a culpa é somente nossa. Fomos nós que não acreditamos que a Abolição imediata pudesse ser feita, embora hoje todos a achem fácil. Não o acreditávamos ainda o ano passado! Faltou- nos fé na idéia e as idéias querem que se tenha fé nelas.579 O discurso de Joaquim Nabuco após a aprovação da Lei n.º 3.353, de 13 de maio de 1888, mais conhecida como “Lei Áurea” trazia um certo viés de derrota assumida pelo Partido Liberal, através da admissão de suas falhas, inclusive no que diz respeito à ideia de que a emancipação pudesse emergir de uma norma que a colocasse de maneira objetiva, sem adotar outras medidas paulatinas. E mais, que isso pudesse ser feito pela oposição. Nabuco assumia, para além disso, que terminava um certo significado de liberalismo. O start dado pela Lei do Tráfico para a emancipação gradual, e pela Lei de Terras, com a adoção do conceito moderno de propriedade e consequentemente a passagem do poder do latifúndio do escravo para a terra, representam alguns dos fatores que contribuíram para os resultados da ruptura do fim do século — que englobou o fim da escravidão e o advento da República. Dentre seus muitos significados, essa mudança representou o rompimento com uma visão de mundo e, desse modo, do liberalismo que se estabeleceu com a Monarquia Constitucional. Essa ruptura tem relação com transformações econômicas e demográficas no país durante o período, que exigiram uma adaptação por parte do Direito. Também se transformava o processo político, com a discussão sobre a representatividade. No mais, com a institucionalização do direito à propriedade, o modelo de poder centralizado na figura do Executivo era um óbice para a permanência e expansão do poderio dos grupos dominantes, de forma que novos espaços foram abertos nesse sentido com a Proclamação 579 Discurso de Joaquim Nabuco nos debates parlamentares da “Lei Áurea”, na sessão de 7 de maio de 1888. A obra em referência, da qual foi retirado o discurso, contou com a reunião de taquígrafos, bibliotecários, secretários e servidores do Senado e da Câmara dos Deputados para recuperar falas relacionadas à Abolição. Na introdução à obra, elaborada pelo Senador Paulo Paim, é esclarecido que muitos documentos da época foram incinerados. In: BUARQUE, Cristovam. Dez dias de Maio em 1888. 3. ed. Brasília, DF: Senado Federal, 2016. Disponível em: https://www.senado.gov.br/senadores/Senador/CristovamBuarque/arquivos/Dez%20Dias%20de%20 Maio.completo.pdf. Acesso em: 2 de maio de 2022, p. 59. 188 da República. E isso era algo que precisava ser ponderado com a iminência do fim da escravidão — como reafirmar o poder das elites, descentralizado nas Províncias — e com as mudanças sociais e econômicas que estavam por vir. A expansão da lavoura de café gerou a acumulação de capital para os cafeicultores e grandes comerciantes de algumas províncias, de forma que surgiram grupos ligados a bancos, seguros, ferrovias e companhias de imigração, o que veio acompanhado do crescimento da vida nas cidades.580 Ocorreu um boom no desenvolvimento interno a partir de novas atividades econômicas e a modernização da infraestrutura contou com as estradas de ferro e o telégrafo, o deslocamento de pessoas e a ampla divulgação de informações. As novas oportunidades conferiram maior permeabilidade da estrutura jurídico-política às manifestações públicas e coletivas de insatisfação de grupos sociais marginalizados.581 Outro ponto decisivo foi a desorganização da economia, o que contribuiu para que os próprios fazendeiros, que insistiam em se opor à emancipação, a vissem como medida necessária ao restabelecimento da ordem. Somado a isso, os movimentos voltados à emancipação dos escravos ganharam novo ímpeto nos centros urbanos, contando com a propagação de campanhas e comícios nas ruas.582 Foi nesse reboliço que também se desenvolveram os posicionamentos contestadores do liberalismo estamental, como foi o caso da Escola de Recife, tecendo argumentos que atacavam o status Imperial. A realidade não podia mais ser encoberta, de que éramos um dos últimos países a insistir não apenas no instituto da escravidão, mas em uma organização política que já não condizia com os rumos da esfera internacional, alvo de fortes críticas, em especial no que tange à questão da representatividade. Quanto aos escravos, o reconhecimento de direitos e as medidas emancipatórias graduais aconteceram em meio a esse alvoroço, com alterações mais significativas na década de 1870, com a Lei do Ventre Livre. Com o amadurecimento da visão sobre a inevitabilidade do fim da escravidão, ainda que ela tenha sido mantida tanto quanto possível, a classe proprietária buscou outras soluções para garantir seus privilégios. O republicanismo e o federalismo surgiram como saídas para garantir a descentralização política. Tal como elucida Viotti, este seria um período de grandes transformações: 580 ALONSO, Angela. Idéias em movimento — A Geração de 1870 na crise do Brasil-Império. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002, p. 77. 581 Ibid., p. 94. 582 COSTA, Emília Viotti da. A Abolição. 8. ed. São Paulo: Editora da UNESP, 2008, p. 62 e 78. 189 No Brasil, como em muitos outros países latino-americanos, as décadas de 1870 e 1880 foram um período de reforma e compromisso com a mudança. Intelectuais, profissionais, militares - pessoas urbanas, mas muitas vezes com raízes rurais - associações conjuntas para a abolição da escravatura e organizações para a promoção das imigrações europeias em massa, fizeram campanha a favor do federalismo e da autonomia provincial, defenderam a separação entre igreja e Estado, participaram de campanhas pela reforma eleitoral e apoiaram o Partido Republicano.583 Também coloca Viotti que uma das explicações que mais tem vingado na recente historiografia sobre as mudanças dessa “era da reforma” está a relacionada a mudanças econômicas e sociais na estrutura do país durante o século XIX, e com a emergência de uma burguesia urbana que se aliava a segmentos mais “progressistas” das oligarquias rurais. As reformas foram também uma resposta para as novas realidades sociais e econômicas resultantes do desenvolvimento capitalista, como um fenômeno mundial, mas com manifestações específicas no Brasil.584 O principal objetivo deste capítulo é entender o que estava por trás das mudanças que conduziram a esse novo cenário — a emancipação dos escravos e a República — e talvez mais do que isso, como as ideias liberais foram adaptadas e aclimatizadas a esse contexto, para lidar com ele por meio do Direito. O reformismo foi o principal discurso defendido no período e a expectativa era de que quaisquer alterações mais significativas na ordem jurídica estabelecida fossem sempre realizadas e controladas pela via legal. Não obstante o fim da escravidão, o liberalismo e os seus representantes encontraram outros meios de se reinventar e de se manter no poder. A escravidão já estava encravada na superestrutura jurídico-política nacional, conferindo legalidade às reiteradas exclusões. Exemplo disso foi a ampliação da cidadania com o advento da República que, mesmo abandonando o voto censitário, excluía as mulheres, os analfabetos (maioria da população), os mendigos e os estrangeiros, sem trazer efetiva mudança de cenário nesse âmbito. 583 COSTA, Emília Viotti da. Brazil: The Age of Reform, 1870-1889. p. 725-923. In: BETHELL, Leslie [ed.]. The Cambridge History of Latin America, volume V: C. 1870 to 1930. Cambridge: Cambridge University Press, 1986, p. 725. Tradução livre. 584 Ibid., p. 726-727. 190 4.1 SERIA ESTE O FIM? IMPLICAÇÕES DO CICLO DE LEIS EMANCIPATÓRIAS PARA O LIBERALISMO IMPERIAL E A SITUAÇÃO JURÍDICA DOS ESCRAVOS E EX-ESCRAVOS Em 8 de maio de 1888, o Conselheiro Rodrigo Augusto da Silva (um dos líderes do Partido Conservador e autor do projeto da Lei Eusébio de Queirós) apresentou para a Câmara dos Deputados proposta do Executivo que declarava extinta a escravidão no Brasil. A Comissão responsável imediatamente conferiu parecer favorável, requerendo urgência para que o projeto fosse votado. Realizados breves debates, com a apresentação de emendas, a lei foi aprovada em prazo recorde, de modo que oitenta e três deputados votaram a favor da proposta, versus três contra. O fim da escravidão sem indenização representava uma derrocada para os proprietários de escravos, desprovidos de mais recursos para obstar a aprovação da lei. Aproximadamente 700 mil escravos alcançaram a liberdade, em sua maioria das regiões de São Paulo e Minas Gerais.585 As longas omissões do Direito sobre a pauta emancipatória586 no Brasil Imperial e a precariedade da situação jurídica dos ex-escravos brasileiros contaram com a consolidação do acordo selado e com o capitaneio das elites proprietárias contra os escravos. O papel exercido pelas ideias liberais foi o de dar forma e instrumentalizar a subjugação dos grupos marginalizados, com sua contínua reiteração pela via da legalidade, através da retórica e da mobilização de recursos políticos. Intensos esforços foram imprimidos para se manter o instituto da escravidão e garantir os subsídios e poderio desses grupos dominantes. Isso torna, no mínimo, curiosa a agilidade no processo de tramitação do último projeto emancipacionista. Neste tópico, buscamos trazer explicações sobre o que estava por trás da mudança de discurso que culminou no fim do instituto e quais foram as consequências desse processo para o liberalismo, contextualizando a situação jurídica dos escravos e ex- escravos nesse âmbito. Afinal, ao longo deste trabalho, seguimos tratando da relação entre liberalismo e escravidão e de como ela foi metabolizada pelo Direito brasileiro, de modo 585 COSTA, Emília Viotti da. A Abolição. 8. ed. São Paulo: Editora da UNESP, 2008, p. 9-10. 586 Demos preferência à expressão “pauta emancipatória” ou “emancipação” para falar de como o Direito Brasileiro se relacionou à problemática da libertação dos escravos e escravas, considerando que não tivemos um processo de abolição imediata, o que pode ser observado pelas normas aprovadas no cerne do Império, que adotavam medidas graduais. Mantivemos, porém, a referência conceitual aos movimentos autodenominados de “abolicionistas” na época. 191 que faz sentido apreciarmos como se deu o reconhecimento de direitos dos grupos subalternizados e de como o discurso jurídico legalista que imperava lidou com o fim da escravidão. No Brasil, o processo de emancipação foi marcado por uma sucessão de leis que propunham medidas graduais à situação de liberdade dos escravos. Depois do fim do tráfico, advieram a Lei do Ventre Livre em 1871,587 a dos Sexagenários em 1885588 e, por fim, a Lei Áurea, datada de 13 de maio de 1888.589 Por longo tempo, foram essas as normas que serviram para periodizar o processo lento da passagem dos negros e negras ao “reino de liberdade”. A mão-de-obra escrava foi substituída pela estrangeira, por trabalhadores brancos e livres, que não traziam as marcas da escravidão.590 Quando determinada a proibição do tráfico negreiro, a pressão inglesa pelo cumprimento dos acordos internacionais estava a ponto de ameaçar a soberania do Estado imperial, de modo que a Lei Eusébio de Queirós teve como um de seus principais fundamentos a tentativa de garantir o prestígio e a segurança nacionais. A norma deslocou a repressão ao tráfico dos tribunais locais para os tribunais imperiais especiais, acabando enfim com o comércio e sinalizando o caminho ao fim da escravidão, junto com a crise das práticas econômicas nela baseadas.591 Porém, ao passo que o tráfico internacional foi obstado, crescia o tráfico interno, entre as Províncias. Ademais, subsistia um acordo tácito entre os intelectuais em não se discutir a situação dos escravos.592 587 BRASIL. Lei nº 2.040, de 28 de setembro de 1871. Declara de condição livre os filhos de mulher escrava que nascerem desde a data desta lei, libertos os escravos da Nação e outros, e providencia sobre a criação e tratamento daquelles filhos menores e sobre a libertação annaul de escravos. Rio de Janeiro: Princeza Imperial Regente. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/lim2040.htm#:~:text=Declara%20de%20condi%C3%A 7%C3%A3o%20livre%20os,de%20escravos. Acesso em: 15 fev. 2021. 588 Conhecida como Lei Saraiva-Cotegipe, a Lei nº 3.270, de 28 de setembro de 1885 concedia liberdade aos escravos maiores de 60 anos de idade. BRASIL. Lei nº 3.270, de 28 de setembro de 1885. Regula a extincção gradual do elemento servil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/LIM3270.htm. Acesso em: 15 fev. 2021. 589 BRASIL. [Lei Áurea]. Lei nº 3.353, de 13 de maio de 1888. Declara extinta a escravidão no Brasil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/LIM3353.htm#:~:text=LEI%20N%C2%BA%203.353% 2C%20DE%2013,o%20Imperador%2C%20o%20Senhor%20D. Acesso em: 15 fev. 2021. 590 LARA, Silvia Hunold. O espírito das leis: tradições legais sobre a escravidão e a liberdade no Brasil escravista. Africana Studia, n. 14, edição do Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto, p. 73-92, 2010. Disponível em: https://ojs.letras.up.pt/index.php/1_Africana_2/article/view/7319. Acesso em: 15 fev. 2021, p. 73. 591 MIKI, Yuko. Frontiers of Citizenship. A Black and Indigenous History of Postcolonial Brazil. Cambridge: Cambridge University Press, 2018, p. 44. 592 MACEDO, Ubiratan Borges de. A idéia de liberdade no século XIX: o caso brasileiro. Rio de Janeiro: Editora Expressão e Cultura, 1997, p. 45-47. 192 Ao longo de séculos, a escravidão foi praticada e seguiu aceita sem que as classes dominantes questionassem a legitimidade do cativeiro. Ela foi justificada das mais diversas formas e sancionada pelo Estado. Um dos efeitos das ideias liberais foi permitir que as elites imperiais escravizassem os negros e negras sem problemas de consciência. As doutrinas que pretendiam justificar a escravidão sofreram, contudo, abalos no decorrer do século XVIII. Foram criados conceitos que trouxeram perspectivas diferentes daquelas que justificavam a ordem tradicional e a escravidão deixava de ser fruto dos desígnios divinos, para ser tomada como vontade dos homens. Passavam a ser contestadas as contradições fundamentais do liberalismo, como a conciliação do direito de propriedade dos senhores em face do direito à própria liberdade, dos escravos.593 A excepcionalidade brasileira, que contava com a permanência da escravidão e a “ausência de povo” — no sentido de nação —, era justificativa comum para conservadores e liberais no resguardo de suas decisões políticas de massificação.594 Vale lembrar que na Inglaterra de 1845 foi aprovado o Bill Aberdeen, que determinava a perseguição das embarcações de tráfico em mares brasileiros, e na década de 1860, a Guerra Civil Americana contou com a derrota dos escravistas do sul do país, o que contribuiu para um movimento internacional de condenação da escravidão.595 Ascendia a demanda de “braços” na lavoura e enquanto o crescimento da população escrava estagnava, a população livre aumentava. No tempo da Independência, a população escrava correspondia a aproximadamente metade da população do país, enquanto em 1872 passou a representar 16% do total e 5% às vésperas da Abolição, com a maioria dos escravos e escravas vivendo nas províncias Centro-Sul (Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo).596 Depois da cessação do tráfico, diferentemente do que ocorreu nos Estados Unidos, a população escrava no Brasil não estava se multiplicando: a mortalidade dos escravos era elevada e a natalidade não era suficiente para equilibrá- la.597 593 COSTA, Emília Viotti da. A Abolição. 8. ed. São Paulo: Editora da UNESP, 2008, p. 13-15. 594 ALONSO, Angela. Idéias em movimento — A Geração de 1870 na crise do Brasil-Império. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002, p. 70. 595 LIMA, Martonio Mont’Alverne Barreto; QUEIROZ, Paulo Roberto Clementino. Um debate abolicionista brasileiro: Emília Viotti da costa e o discurso da igualdade. Pensar, Fortaleza, v. 16, n. 2, p. 705-729, jul./dez. 2011. Disponível em: https://periodicos.unifor.br/rpen/article/view/2168/1769. Acesso em: 30 abr. 2022, p. 713. 596 COSTA, op. cit., p. 76. 597 MIKI, Yuko. Frontiers of Citizenship. A Black and Indigenous History of Postcolonial Brazil. Cambridge: Cambridge University Press, 2018, p. 44. 193 Com relação à mudança na mão-de-obra e situação da liberdade, o espírito reformista parecia empolgar liberais que tinham intenções de que o seu partido tomasse posicionamentos mais progressistas. Surgiu então no Partido Liberal uma ala favorável à emancipação dos escravos, sofrendo grande resistência da maioria “moderada” do partido. O liberal Silveira Mota chegou a apresentar projeto de lei em 1862, que dispunha sobre a proibição da venda de escravos em leilões e a separação de marido, mulher e filhos menores de quinze anos. Em 1865, o Imperador solicitou a Antonio Pimenta Bueno — que havia abandonado o Partido Liberal para se juntar ao Partido Conservador —, à época senador e membro do Conselho de Estado, que procedesse à elaboração de um projeto para emancipar os escravos. Em resposta, ele redigiu um texto que previa a emancipação dos filhos nascidos de mães escravas, sugerindo a criação de Conselhos Provinciais de Emancipação e propondo que os escravos legalmente “pertencidos” ao governo fossem libertados dentro de cinco anos e aqueles das organizações religiosas (mosteiros, conventos) em sete anos. Porém, naquele momento a Guerra do Paraguai concentrava todas as atenções e ninguém queria assumir nesse momento os riscos que o debate da emancipação trazia.598 Nos centros urbanos, ascendia o número de associações autodenominadas abolicionistas, que agora não eram mais compostas apenas por poetas e estudantes, mas também por jornalistas, advogados, médicos, engenheiros, com homens e mulheres se juntando em torno da causa. Em 6 de novembro de 1866,599 o governo assinou um decreto que conferia liberdade gratuita (sem ônus) aos escravos da nação designados para o serviço do Exército e, sendo casados, estendia o mesmo benefício para as suas esposas. Ainda que a medida tenha sido de pequeno alcance, pois atingia um número reduzido de pessoas, ela teve grande repercussão na opinião pública.600 Os liberais lançaram em maio de 1869 um manifesto redigido por Nabuco de Araújo e outros integrantes do Partido Liberal que propunha, dentre outras medidas, a descentralização política, autonomia do Poder Judiciário, transformação do Conselho de 598 COSTA, Emília Viotti da. A Abolição. 8. ed. São Paulo: Editora da UNESP, 2008, p. 39-42. 599 BRASIL. Decreto nº 3.725-A, de 6 de novembro de 1866. Concede liberdade gratuita aos escravos da Nação designados para o serviço do exercito. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-3725-a-6-novembro-1866-554505- publicacaooriginal-73127- pe.html#:~:text=Hei%20por%20bem%20Ordenar%20que,mesmo%20beneficio%20%C3%A1s%20su as%20mulheres. Acesso em: 30 abr. 2022. 600 COSTA, op. cit., p. 43. 194 Estado em órgão exclusivamente administrativo, eleições diretas e a emancipação gradual dos escravos. O texto era finalizado com a frase “Ou a Reforma ou a Revolução”, seguida de uma frase conciliadora que falava da reforma como única saída para o país.601 Leia-se: O partido liberal não linha pois outro recurso senão a resistência material ou a abstenção. Preferio a abstenção, e tem consciência de que acertou. Poderia aguardar a sua vez de governar, para então votar, e vencer a eleição. Este arbítrio seria o egoísmo de uma facção, mas não o patriotismo de um partido. [...] A abstenção do partido liberal do Brasil naturalmente engendra unia situação definida e legitima: Ou a reforma, Ou a revolução. A reforma para conjurar a revolução: A revolução , com consequencia necessaria da natureza das cousas, da ausência do systema representativo, exclusivismo, eolygarchia de um partido. Não ha que hesitar na escolha: A REFORMA. E o paiz será salvo.602 A abstenção mencionada fazia um paralelo com a realidade inglesa e as censuras ocorridas nesse contexto no século XVIII, dizendo ser natural a vitória da oposição nos países em que o sistema representativo era verdade, porém que no Brasil, o governo podia tudo, inclusive empregar violência a impedir a livre intervenção da oposição liberal. Acusavam o governo de absolutismo, de uma reação contra a liberdade, bem como diziam que os ministérios, compostos em parte ou em sua totalidade por conservadores, “transigiram com as idéas liberaes: cada qual cortejava mais o liberalismo, sem duvida reconhecendo-o como necessidade do mundo moderno”.603 Apesar de seu tom ousado, o texto não satisfez a ala mais radical do partido, que lançou seu próprio manifesto alguns meses depois, exigindo o fim do Poder Moderador, da Guarda Nacional, do Conselho de Estado e da escravidão.604 Com o desencadeamento da crise política, por todo lugar foram criados jornais e clubes “radicais”. A ideia de um programa de reformas era atrativa aos descontentes que 601 COSTA, Emília Viotti da. A Abolição. 8. ed. São Paulo: Editora da UNESP, 2008, p. 45-46. 602 NABUCO, José Thomaz. Manifesto do Centro Liberal. Rio de Janeiro: Typ. Americana, 1869. Disponível em: http://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_obrasraras/or84783/or84783.pdf. Acesso em: 30 abr. 2022. Biblioteca Digital Luso-Brasileira, p. 66-67. 603 Ibid., p. 10. 604 COSTA, op. cit., p. 45-46. 195 se opunham ao governo, de modo que foi organizada grande propaganda em favor das reformas pelos liberais, o que passou a abarcar a emancipação dos escravos. A década de 1870 começou, assim, com a forte apreensão dos proprietários de escravos de um lado, e o entusiasmo da emancipação de outro. Com a queda do Ministério Liberal, em 1868, os debates na Câmara e as agitações da imprensa em torno da Lei do Ventre Livre auxiliaram para tornar a emancipação dos escravos uma questão nacional.605 Para Viotti, uma fase importante para a emancipação se iniciou com a Lei do Ventre Livre. O Barão de Rio Branco defendeu o projeto argumentando que ele restauraria a confiança dos proprietários, afinal, o texto afirmava o desaparecimento da escravidão a longo prazo, sem abalar de forma imediata a economia, ganhando tempo aos proprietários para que se acomodassem à nova situação. Além disso, e o mais importante: respeitava o direito de propriedade. Anos depois, o abolicionista Rui Barbosa calcularia que se nenhuma outra lei fosse aprovada para a emancipação, haveria escravos na terceira década do século XX no Brasil.606 O gabinete de conservadores moderados de 1871 converteu, dessa forma, a escravidão em problema da sua agenda política, com foco no Ventre Livre, considerado condição para se modernizar a economia e a sociedade. Então quando ascendeu o gabinete de Rio Branco (1871-1875), a escravidão era considerada insustentável economicamente e a questão acabou sendo trazida em um momento de menor resistência do lado dos dois partidos em oposição.607 A proposta da Lei do Ventre Livre608 — Lei nº 2.040, de 28 de setembro de 1871 — foi encaminhada aos debates parlamentares pelo gabinete Rio Branco e o Partido Conservador foi autor da maioria das medidas emancipatórias, inclusive da principal delas.609 As ideias do Partido Liberal desempenharam um papel universalista e retórico nesse processo. O apego de seus representantes ao contexto de uma sociedade rural não 605 COSTA, Emília Viotti da. A Abolição. 8. ed. São Paulo: Editora da UNESP, 2008, p. 45-49. 606 Ibid., p. 50. 607 ALONSO, Angela. Idéias em movimento — A Geração de 1870 na crise do Brasil-Império. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002, p. 80-81. 608 BRASIL. Lei nº 2.040, de 28 de setembro de 1871. Declara de condição livre os filhos de mulher escrava que nascerem desde a data desta lei, libertos os escravos da Nação e outros, e providencia sobre a criação e tratamento daquelles filhos menores e sobre a libertação annaul de escravos. Rio de Janeiro: Princeza Imperial Regente. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/lim2040.htm#:~:text=Declara%20de%20condi%C3%A 7%C3%A3o%20livre%20os,de%20escravos. Acesso em: 15 fev. 2021. 609 MACEDO, Ubiratan Borges de. A idéia de liberdade no século XIX: o caso brasileiro. Rio de Janeiro: Editora Expressão e Cultura, 1997, p. 45-47. 196 ignorava, todavia, a proximidade do fim da escravidão, buscando através da noção de reforma uma transição gradual que concedesse tempo às elites proprietárias para que buscassem soluções para redimensionar seu domínio. Como pode ser observado pelo teor do manifesto do Centro Liberal de 1869, os seus representantes buscavam recuperar a ideia do liberalismo como uma ideologia “revolucionária” e oposta ao Absolutismo — cujos resquícios se faziam presentes na figura do monarca e do Conselho de Estado —, diante da crise que se alastrava. Ideia essa utilizada retoricamente, já que a principal via defendida não era a revolução. A ameaça de revolução vinha de forma longínqua e abstrata, procurando-se, na verdade, meios alternativos de se garantir o domínio dos proprietários. O Gabinete Rio Branco foi um último esforço para a autorreforma da ordem imperial, e expressava a compreensão de que a monarquia, para sobreviver, deveria reestruturar sua economia em moldes não escravistas, abrindo o seu sistema político. Com o aumento da acumulação interna e o financiamento da urbanização pelos empréstimos ingleses, a população era atraída para as maiores cidades e havia crescido, somando 9 milhões de pessoas em 1872.610 No mesmo ano, cerca de um milhão de pessoas — um décimo da população do Império — podiam participar do processo eleitoral, de forma que cerca de 25 mil indivíduos preenchiam condições para pleitear um cargo público.611 A decisão dos conservadores de caminhar rumo à emancipação para cumprir requisito necessário ao ingresso do Brasil no grupo das nações “civilizadas” foi legalizada pelo fim do tráfico e pela Lei de Terras de 1850, mas a mudança do regime de trabalho significava abalar os alicerces da base da economia, da hierarquia social e do sistema representativo, com o consequente risco de comprometimento da ordem política recém- consolidada.612 Junto à conveniência acomodada e cotidiana das ideias “modernas” com a escravidão,613 intensificava-se o tráfico interno de um lado e, de outro, o reconhecimento da ilegalidade da propriedade escrava se alastrava país, fazendo surgir processos cíveis de liberdade de escravos. Somado a isso, uma série de mudanças econômicas e sociais possibilitou o nascimento de perspectivas diversas (e próprias) sobre a realidade nacional 610 ALONSO, Angela. Idéias em movimento — A Geração de 1870 na crise do Brasil-Império. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002, p. 92. 611 Ibid., p. 63. 612 Ibid., p. 69. 613 SCHWARZ, Roberto. Martinha versus Lucrécia: ensaios e entrevistas. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 168. 197 e os rumos do país. Foram, assim, sendo implementadas medidas parciais, sem os custos de uma Guerra Civil.614 Neste ponto, alterações mais significativas começam a se desdobrar na situação jurídica dos escravos com a lei de 1871, que veio acompanhada do reconhecimento do pecúlio aos escravos e das ações de liberdade com rito sumário — mais célere. Luiz Gama e seus colegas usaram o Sistema de Justiça para provar a ilegalidade a que muitos homens e mulheres haviam sido submetidos, na condição de escravos, repercutindo uma forma radical para a época de interpretação de leis que não haviam sido criadas, a princípio, para regular a liberdade, especialmente a de 1831615 — aprovada na Regência Trina Permanente liberal —, cujo objetivo era simplesmente livrar-se da pressão dos ingleses.616 Nas décadas anteriores, muitos escravos usavam a justiça para lutar contra os senhores e ter a liberdade reconhecida. Os juízes tomavam decisões politizadas e a questão do pecúlio (economias dos escravos) foi levada dos tribunais para as revistas, até chegar no Parlamento. Assim, tal como ilustra S. Lara, a lei de 1871 deixou de ser entendida apenas como um passo adiante na abolição da escravidão, incorporando conquistas escravas distantes das concepções senhoriais de liberdade.617 Pensando na situação jurídica dos libertos, a experiência de liberdade no Brasil escravista apresentava uma série de problemas e riscos para os egressos da escravidão e seus descendentes. Dentre eles, tinha-se as profundas restrições constitucionais aos seus direitos políticos, o acesso insignificante de libertos e negros livres em geral à instrução primária, a concessão de liberdade sob condição, a possibilidade de se revogar alforrias e a conduta policial combativa nas cidades para prender negros e negras livres, alegando- se suspeição de que fossem escravos fugidos.618 614 MACEDO, Ubiratan Borges de. A idéia de liberdade no século XIX: o caso brasileiro. Rio de Janeiro: Editora Expressão e Cultura, 1997, p. 48. 615 BRASIL. Lei de 7 de novembro de 1831. Declara livres todos os escravos vindos de fôra do Imperio, e impõe penas aos importadores dos mesmos escravos. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/LIM-7-11- 1831.htm#:~:text=LEI%20DE%207%20DE%20NOVEMBRO,aos%20importadores%20dos%20mes mos%20escravos. Acesso em: 1 mar. 2022. 616 LARA, Silvia Hunold. O espírito das leis: tradições legais sobre a escravidão e a liberdade no Brasil escravista. Africana Studia, n. 14, edição do Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto, p. 73-92, 2010. Disponível em: https://ojs.letras.up.pt/index.php/1_Africana_2/article/view/7319. Acesso em: 15 fev. 2021, p. 73. 617 Ibid., p. 73. 618 BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 56-60. 198 Em um contexto no qual a nova Divisão Internacional do Trabalho estava se formando, as ex-colônias apresentavam um traço substantivo de atualidade periférica no conjunto das sociedades contemporâneas.619 Não havia em princípio alternativa ao escravo, nem passagem a um regime assalariado, apenas a fuga aos quilombos.620 Além disso, a libertação de escravos e escravas aconteceu no Segundo Reinado simultaneamente à continuidade da própria instituição da escravidão, de modo que o limite incerto entre escravidão e liberdade operava como condição estrutural da sociedade oitocentista e eixo indispensável para reproduzir as relações de dependência pessoal e a ideologia paternalista em geral.621 O conservador Perdigão Malheiro, deputado por Minas Gerais, escreveu uma das primeiras obras a tratar da situação jurídica da escravidão no Brasil. Na primeira parte de A Escravidão no Brasil: ensaio histórico-jurídico-social (1866), ele trazia considerações sobre o direito dos escravos e libertos. A análise nos é interessante, na medida em que traça ligações relevantes entre liberalismo e Direito, trazendo um panorama do sistema jurídico que imperava. Ademais, a obra foi considerada referência para o debate político da época, e passou a ser lida internacionalmente. O ensaio de Malheiro teve como elemento impulsionador a lei de 10 de junho de 1835,622 publicada meses após a Revolta dos Malês (Bahia, 1835) — movimento que apresentou como principais objetivos provocar mudanças sociais favoráveis aos africanos, com forte conotação étnico-identitária. A lei revogava disposições do Código Criminal para cominar penas mais graves para os delitos cometidos pelos escravos e previa a irrecorribilidade das sentenças condenatórias.623 Em nota ao leitor, no início de sua obra, ele dizia que: 619 SCHWARZ, Roberto. Martinha versus Lucrécia: ensaios e entrevistas. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 169. 620 CHALHOUB, Sidney. Precariedade estrutural: o problema da liberdade no Brasil escravista (século XIX). História Social (IFCH/UNICAMP), Campinas, n. 19, p. 33-62, 2010. Disponível em: https://www.ifch.unicamp.br/ojs/index.php/rhs/article/view/315. Acesso em: 1 fev. 2021, p. 52. 621 Ibid., p. 37. 622 BRASIL. Lei nº 4 de 10 de junho de 1835. Determina as penas com que devem ser punidos os escravos, que matarem, ferirem ou commetterem outra qualquer offensa physica contra seus senhores, etc.; e estabelece regras para o processo. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/lim4.htm. Acesso em: 12 abr. 2022. 623 PAES, Mariana Armond Dias. Perdigão Malheiro e a escravidão no Brasil. Revista do Centro Acadêmico Afonso Pena, Belo Horizonte, Número Especial: I Jornada de Estudos Jurídicos da UFMG, p. 81-92, jul./dez. 2010. Disponível em: https://revistadocaap.direito.ufmg.br/index.php/revista/article/view/320. Acesso em: 30 abr. 2022, p. 83-85. 199 A magna questão da escravidão no nosso paiz tem me preoccupado o espirito, como me parece que deve ter preoccupado o de todo o homem pensador, e verdadeiramente amigo do Brasil. [...] Antes de nos embrenharmos na delicada e espinhosa questão da emancipação, cumpria conhecer Direito actual sobre os escravo. - Não era differente tambem ter noticia da historia da escravidão entre nós, quer em relação aos Indigenas, quér cm relação aos Africanos.624 Perdigão Malheiro fazia referência à escravidão como um mal que devia preocupar qualquer “pensador”, ou seja, que um olhar mais atento já denunciava o problema que deveria ser cessado. Relativamente à sua interpretação sobre o liberalismo, em Malheiro, o “pacto fundamental”, isto é, a ordem constitucional, não trazia nenhuma lei que incorporava o escravo como cidadão, ainda que quando nascido no Império, fosse na vida social, política ou pública em geral. Colocava que somente os libertos, desde que cidadãos brasileiros, gozavam de certos direitos políticos. O nosso Pacto Fundamental, nem lei alguma contempla o escravo no numero dos cidadãos, ainda quando nascido no Imperio, para qualquer effeito em relação á vida social, politica ou publica. Apenas os libertos, quando cidadão brasileiros, gozão de certos direitos politicos e podem exercer alguns cargo publicas, como diremos. Desde que o homem é reduzido á condição de cousa, sujeito ao poder e dominio ou propriedade de um outro, é havido por morto, privado de todos os direitos, e não tem representação alguma, como já havia decidido o Direito Romano.625 O autor falava dos libertos como uma categoria que era diferenciada pelo Direito, e dos escravos como aqueles reconhecidamente tomados como coisas, de modo que o Direito não lhes conferia salvaguarda para além da condição de coisas à qual eram apreendidos, tal como se estivessem “mortos”, ou seja, não era considerada qualquer humanidade como característica dos escravos. Ele também remontava à ideia liberal de acordo fundamental, que não colocava os escravos como pertencentes à sociedade civil, dela isolando-os. Esclarecia Malheiro que ao escravo não era admitido dar queixa por si, apenas por intermédio do senhor, promotor público ou qualquer um do povo; não podia fazer denúncia contra o senhor; nem atuar como testemunha, apenas como informante. Apesar 624 MALHEIRO, Agostinho Marques Perdigão. A Escravidão no Brasil: ensaio histórico-jurídico-social. Parte I. Jurídica. Direito sobre os escravos e libertos. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1866. Biblioteca Digital do Senado Federal. Disponível em: http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/174437. Acesso em 30 abr. 2022, nota ao leito, s/p. 625 Ibid., p. 2. 200 disso, podia ser réu ou acusado no direito criminal, circunstância na qual se deveria nomear defensor ou curador pelo juiz do processo, caso o senhor não se prestasse a atuar nessa posição. Tinha-se também o que Malheiro chamou de “abuso” da pena de açoites e da pena de morte, pontuando como a “mancha negra” da sociedade se estendeu à legislação brasileira, denegrindo algumas das suas páginas, tendo como grande exemplo o Código Criminal.626 Em tese, as torturas e penas cruéis haviam sido abolidas pela Constituição do Império, de modo que aos senhores dava-se permissão para castigar os escravos moderadamente segundo o Código Criminal. Se o castigo não fosse moderado, o escravo poderia requerer sua venda.627 Na visão de Malheiro, para a lei penal, o escravo era “sujeito do delicto ou agente dele, não é cousa, é pessoa na accepção lata do termo, é um ente humano, um homem emfim, igual pela natureza aos homens livres seus semelhantes”.628 Ele admitia um problema com o qual o Direito se deparava: que o escravo não era coisa, era ente humano, mas a legislação o tratava como coisa, não o incorporando no conceito de pessoa. Apontava não existir àquele tempo lei sobre o pecúlio, nem para regular a sucessão no que tange aos escravos. No caso do Direito Civil, o escravo era objeto (e não sujeito) jurídico, era propriedade, podendo ser arrecadado e pertencer à herança, por exemplo.629 Somado a isso, a Constituição garantia a propriedade em sua plenitude, com as ressalvas aos casos de desapropriação, necessidade ou utilidade públicas, nas hipóteses definidas por lei.630 Segundo o autor, a escravidão podia terminar essencialmente por três principais causas jurídicas: (i) pela morte natural do escravo; (ii) pela alforria ou manumissão (concessão de alforria); ou (iii) por disposição específica de lei.631 Na última opção, tinha- se por exemplo as normas que determinavam a liberdade aos escravos que serviam no 626 MALHEIRO, Agostinho Marques Perdigão. A Escravidão no Brasil: ensaio histórico-jurídico-social. Parte I. Jurídica. Direito sobre os escravos e libertos. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1866. Biblioteca Digital do Senado Federal. Disponível em: http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/174437. Acesso em 30 abr. 2022, p. 22-25. 627 PAES, Mariana Armond Dias. Perdigão Malheiro e a escravidão no Brasil. Revista do Centro Acadêmico Afonso Pena, Belo Horizonte, Número Especial: I Jornada de Estudos Jurídicos da UFMG, p. 81-92, jul./dez. 2010. Disponível em: https://revistadocaap.direito.ufmg.br/index.php/revista/article/view/320. Acesso em: 30 abr. 2022, p. 85. 628 MALHEIRO, op. cit., p. 28. 629 Ibid., p. 90. 630 Ibid., p. 131. 631 Ibid., p. 94. 201 Exército, ou como a partir de condições como as que seriam trazidas pela Lei do Ventre Livre e dos Sexagenários. Malheiro falava da condição restringida dos libertos na sociedade brasileira, de modo que afirmava que “Seria, talvez, para desejar que as leis fossem modificadas em sentido mais liberal, embora se exigissem condições ou habilitações especiaes”.632 Nessa passagem ele admite a contradição fundamental do liberalismo, a defesa da escravidão, pontuando que outros deveriam ser os sentidos adotados pela lei ao tratar do assunto. Paes clarifica que Malheiro era um “abolicionista” moderado e conservador, contrário à emancipação direta, defendendo um projeto lento e gradual de passagem ao trabalho livre.633 O senhor tinha o direito de extrair do trabalho escravo todo proveito possível, cabendo-lhe, por outro lado, a obrigação de alimentar, vestir e curar o escravo, não esquecendo que se travava de ente humano.634 Ele exprimia, assim, uma tentativa de conciliação do direito de propriedade, chancelado pelo Direito Civil, com a noção de personalidade, que tinha vislumbres no Direito Criminal, cujas limitações decorriam dos direitos e deveres do senhor. Podemos inferir da obra de Malheiro a ambiguidade do tratamento desses grupos (reconhecimento das lutas e pressão popular versus controle das elites) e o posicionamento retórico das elites imperiais. Um fato interessante que envolve certa polêmica quanto à ação política do autor é que depois de ter apresentado fala no Instituto dos Advogados do Brasil (1863) na qual abordava a escravidão em sentido análogo ao do livro analisado, Malheiro se posicionou contrariamente ao Projeto de Ventre Livre do Executivo (futura Lei Rio Branco). Ele chegou a proferir um discurso na sessão da Câmara em 12 de julho de 1871 sobre a proposta, com o principal objetivo de defender-se de acusações de incoerência e tecer 632 MALHEIRO, Agostinho Marques Perdigão. A Escravidão no Brasil: ensaio histórico-jurídico-social. Parte I. Jurídica. Direito sobre os escravos e libertos. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1866. Biblioteca Digital do Senado Federal. Disponível em: http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/174437. Acesso em 30 abr. 2022, p. 210. 633 BRASIL. Lei nº 4 de 10 de junho de 1835. Determina as penas com que devem ser punidos os escravos, que matarem, ferirem ou commetterem outra qualquer offensa physica contra seus senhores, etc.; e estabelece regras para o processo. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/lim4.htm. Acesso em: 12 abr. 2022. 634 PAES, Mariana Armond Dias. Perdigão Malheiro e a escravidão no Brasil. Revista do Centro Acadêmico Afonso Pena, Belo Horizonte, Número Especial: I Jornada de Estudos Jurídicos da UFMG, p. 81-92, jul./dez. 2010. Disponível em: https://revistadocaap.direito.ufmg.br/index.php/revista/article/view/320. Acesso em: 30 abr. 2022, p. 88. 202 argumentos contra a lei. Afinal, ele havia criticado tão intensamente o instituto da escravidão, frisando a necessidade do seu findar e se colocava em oposição à Lei de 1871. Conforme ele, não havia incongruência no seu posicionamento, já que a ideia do fim da escravidão continuava, isto é, a emancipação. Mas tratava-se de matéria de oportunidades: a ocasião era inoportuna, fosse pela dívida externa, despesas com a Guerra do Paraguai ou porque as elites agrárias eram indispensáveis para sustentar a economia, conforme ele. Ademais, para ele o nascimento livre era uma ideia perpétua, sem possibilidade de revogação, podendo assim representar uma decisão demasiadamente drástica.635 Outro argumento utilizado era que nem mesmo a oposição se colocava favorável à proposta. Vejamos que o autor, aliado à facção conservadora saquarema, falava que a ideia se pretendia do próprio Partido Liberal, insinuando que ele mesmo não corroborava com a proposta. Dizia ele que: Não pensem os meus nobres collegas que a imprensa tem sido indifferente, não; a imprensa tem-se pronunciado, mas pronunciado cm sentido desfavorável á proposta, não só pela occasião em que foi apresentada, como também pelos termos e modo. Mesmo na imprensa liberal, a idéa capital da proposta tem sido combatida, até na imprensa republicana, e ultraliberal. Na Bahia, o próprio Abolicionista, de que tenho aqui um numero, combate esta proposta do governo e a sua idéa fundamental. [...] Portanto, embora seja a idéa do partido liberal, como pretendem, a própria imprensa liberal não está satisfeita. Defendeu, assim, que nem mesmo a imprensa liberal se posicionava a favor da proposta, que argumentava que seu teor era fruto de acirrados combates, restando sem sentido a discussão dessa pauta. Nos debates para a Lei do Ventre Livre, os partidos encontravam-se rachados, com cada qual de seus membros votando conforme seus interesses particulares ou de seus eleitores.636 635 MALHEIRO, Agostinho Marques Perdigão. Discurso proferido na sessão da Camara Temporaria de 12 de julho de 1871 sobre a proposta do governo para reforma do estado servil. Rio de Janeiro: Tup. Imp. E Const. De J. Villeneuve & C, 1871. Cópia digital do Projeto Brasiliana USP. Disponível em: https://digital.bbm.usp.br/bitstream/bbm/4781/1/012741_COMPLETO.pdf. Acesso em: 30 abr. 2022, p. 48-52. 636 PEDROSA, Matheus Monteiro. Escravidão, publicidade e Parlamento: o encaminhamento da Lei do Ventre Livre de 1871. 2018. 276 f. Dissertação (Mestrado em História Social) — Programa de Pós- Graduação Stricto Sensu da Faculdade de História Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, São Gonçalo, 2018. Disponível em: 203 Havia receio de que o projeto sofresse modificações nos debates e acabasse se tornado uma norma que acabasse imediatamente com a escravidão. Aconteceram tentativas de adiamento do projeto, como o pedido dos conservadores Ferreira Vianna e do próprio Perdigão Malheiro, que insistia na presença do Imperador, que se encontrava fora do país, para a votação.637 De início, havia a controvérsia sobre a questão dos direitos dos escravos e se o texto deveria ou não utilizar o termo “ingênuo” para tratar das crianças. A comissão organizada por Nabuco alterou a palavra para “libertos” e na versão final foi utilizada a expressão “condição livre”.638 A discussão centrava-se no nascimento com liberdade, se ela teria efeitos imediatos e quais outras condições a influenciariam, já que no Direito Romano os filhos de mães escravas de pais livres eram crianças livres. E, em sentido contrário, os filhos de pais escravos carregavam essa condição. A Lei do Ventre Livre enfim estabeleceu que os filhos de escravas nascidos a partir da data da norma passariam a ser formalmente livres, porém a liberdade vinha junto com a maioridade (21 anos), de modo que a criança permanecia sob tutela do senhor até os oito anos de idade, quando podia ser entregue ao Estado com direito à indenização, ou ter seus serviços utilizados pelo senhor até atingir a maioridade. Como importantes incorporações, ela definia que caso a mulher escrava obtivesse liberdade, seus filhos menores de oito anos de idade a acompanhariam (Art. 1º, § 4º), assim como os menores de 12 anos se ela fosse vendida. Ademais, dispunha que os escravos “pertencentes à nação”, dados em usufruto da coroa, de heranças vagas ou abandonados pelos seus senhores seriam declarados libertos (Art. 6º). O ganho legal e jurídico foi tão grande que a lei de 1885 buscou refreá-lo, instituindo algumas restrições como a fixação do preço dos escravos em tabelas e outros mecanismos, na tentativa de que os senhores mantivessem as rédeas do processo de emancipação. Para a elite imperial, era necessário ir devagar, pois os escravos tinham um https://www.bdtd.uerj.br:8443/bitstream/1/13530/1/Dissertacao%20Matheus%20Pedrosa.pdf. Acesso em: 30 abr. 2022, p. 185-186. 637 PEDROSA, Matheus Monteiro. Escravidão, publicidade e Parlamento: o encaminhamento da Lei do Ventre Livre de 1871. 2018. 276 f. Dissertação (Mestrado em História Social) — Programa de Pós- Graduação Stricto Sensu da Faculdade de História Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, São Gonçalo, 2018. Disponível em: https://www.bdtd.uerj.br:8443/bitstream/1/13530/1/Dissertacao%20Matheus%20Pedrosa.pdf. Acesso em: 30 abr. 2022, p. 185-190. 638 Ibid., p. 190. 204 preço que deveria ser indenizado, e a liberdade não poderia originar gente completamente livre, mas ingênuos e libertos sob o controle dos senhores.639 Em 1883, tivemos a última fase de desconstrução da escravidão institucionalizada no país. Nesse ano, além da publicação da obra de Joaquim Nabuco O Abolicionismo, foi reinaugurado o debate parlamentar acerca do elemento servil. Além disso, ganhou força a propaganda abolicionista que se organizava na onda de reforma do Império desde a década de 1870, de modo que a Câmara passou a receber diversas petições enviadas por associações civis sobre o assunto.640 Em abril de 1884, o Imperador empossou novo Ministério e o senador liberal Dantas declarou a intenção de resolver o problema servil, apresentando um projeto em 15 de julho que previa o desmonte do sistema escravista em menos de uma década, contando com a previsão de rematrícula obrigatória dos escravos do Império; a libertação imediata sem indenização daqueles com mais de 60 anos; a declaração pelo senhor dos escravos do seu valor na matrícula; estabelecimento de imposto anual sobre cada escravo; a utilização das taxas e impostos para compor um fundo de emancipação (criado com a Lei do Ventre Livre) para indenização dos senhores; dentre outras medidas.641 Dentro da Câmara, a percepção era de que o gabinete Dantas estava apoiado em propaganda popular pela emancipação e que seu projeto era um indicativo de extinção abrupta da escravidão. Diante dessa oposição, a Câmara foi dissolvida a pedido de Dantas ao Imperador. Mas com a ascensão ao Executivo do liberal baiano Saraiva em 1885, ele não escondeu sua intenção de defender os interesses da lavoura e julgava ser melhor agir do que abster-se (algo que a experiência do Segundo Reinado havia ensinado), mediante a ameaça da onda emancipatória. Novo projeto foi apresentado, sem destoar muito daquele de Dantas, deslocando a idade dos escravos idosos de 60 para 65 anos. A visão de Saraiva estava focada em quem daria seguimento ao projeto e repudiava-se a ideia da ala radical do Partido Liberal tomando as rédeas da situação.642 Em 28 de setembro de 1885, o projeto 12 de maio — 639 LARA, Silvia Hunold. O espírito das leis: tradições legais sobre a escravidão e a liberdade no Brasil escravista. Africana Studia, n. 14, edição do Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto, p. 73-92, 2010. Disponível em: https://ojs.letras.up.pt/index.php/1_Africana_2/article/view/7319. Acesso em: 15 fev. 2021, p. 73. 640 SABA, Roberto. A Lei dos Sexagenários e a derrota política dos abolicionistas no Brasil-Império. História Social, Campinas, n. 14-15, p. 21-33, 2018. Disponível em: https://ojs.ifch.unicamp.br/index.php/rhs/article/view/122. Acesso em: 30 abr. 2022, p. 22. 641 Ibid., p. 23. 642 Ibid., p. 23-27. 205 aprovado sem alterações pelo Senado imperial — foi assinado pelo Imperador e se tornou a Lei Saraiva-Cotegipe ou Lei dos Sexagenários.643 A Lei previa a libertação dos escravos com mais de 65 anos de idade. A norma reconheceu uma luta social e dava mais um passo contido em direção à emancipação, contudo, não trouxe muitos efeitos práticos imediatos, já que à época a libertação de escravos idosos era praxe, considerando que os gastos para a sua manutenção eram superiores ao que produziam. Um ano antes da publicação da lei, o município de Redenção no Ceará foi o primeiro a libertar seus escravos, seguido do Amazonas e de boa parte do norte e nordeste do país.644 A norma dispunha sobre o procedimento de nova matrícula dos escravos (Art. 1º), estabelecendo-lhes valores para nelas constar. Os valores para escravas, do sexo feminino, eram abatidos de 25% do valor daqueles de sexo masculino. Previa-se os valores de indenização para a libertação a serem pagos pelo fundo de emancipação ou outra forma legal (Art. 3º). Note-se que o fundo de emancipação não era, portanto, voltado a estabelecer condições para colocação dos libertos na sociedade, como foi alegado quando da sua criação, mas sim para ressarcir o prejuízo dos senhores com a libertação. Nabuco havia apresentado anteriormente (1880) um projeto de extinção da escravidão. Ele trazia a cessação imediata da compra e venda de escravos (o que findaria o tráfico interprovincial); o estabelecimento de colônias para os libertos; a proibição de separação de mães e filhos (já que muitas escravas eram alugadas como amas-de-leite); a libertação imediata dos escravos idosos, doentes ou nascidos na África e vítimas de tráfico ilegal; dentre outras disposições. No mesmo ano, Nabuco criou a primeira Sociedade Brasileira contra a Escravidão, que lançou um manifesto de grande repercussão. Com a reforma eleitoral de 1881 e a redução do número de votantes no Brasil, Nabuco perdeu a cadeira no parlamento e os escravistas tornaram-se a grande maioria. No Gabinete Liberal Dantas de 1884, chegou a ser elaborado projeto de emancipação gradual por Ruy Barbosa, que não logrou aprovação.645 643 SABA, Roberto. A Lei dos Sexagenários e a derrota política dos abolicionistas no Brasil-Império. História Social, Campinas, n. 14-15, p. 21-33, 2018. Disponível em: https://ojs.ifch.unicamp.br/index.php/rhs/article/view/122. Acesso em: 30 abr. 2022, p. 32. 644 LIMA, Martonio Mont’Alverne Barreto; QUEIROZ, Paulo Roberto Clementino. Um debate abolicionista brasileiro: Emília Viotti da costa e o discurso da igualdade. Pensar, Fortaleza, v. 16, n. 2, p. 705-729, jul./dez. 2011. Disponível em: https://periodicos.unifor.br/rpen/article/view/2168/1769. Acesso em: 30 abr. 2022, p. 714. 645 MENEZES, Jaci Maria Ferraz de. Abolição no Brasil: a construção da liberdade. Revista HISTEDBR [online], Campinas, n. 36, p. 83-104, dez. 2009. Disponível em: 206 Depois da Lei dos Sexagenários, foi retomado nos debates parlamentares o tema da extinção da escravidão, de modo que o Senador Dantas propôs novo projeto, visando a libertação dos escravos dentro de cinco anos.646 Em 1887, ele apresentou outro projeto encurtando o prazo para 1884, no Centenário da Declaração dos Direitos do Homem. Não se queria que o país fosse visto como um dos últimos a abolir a escravatura após essa data, o que influiria no prestígio do país diante das nações “civilizadas”. Quando entrou o ano de 1888, foi substituído o gabinete e a princesa regente chamou o conservador João Alfredo para ocupar uma posição, além de Antonio Prado para ser Ministro da Agricultura. A este último foi solicitada a elaboração de projeto para a emancipação. O texto previa originalmente que os libertos permanecessem trabalhando junto aos senhores por mais dois anos, o que foi retirado após pressão pública. O projeto foi enfim apresentado em 8 de maio e aprovado no dia 13. Foi conduzido na Câmara pessoalmente por Joaquim Nabuco, do Partido Liberal, que apoiou a iniciativa do Partido Conservador e do trono.647 Dias depois de uma genérica fala do trono sobre a Abolição, Nabuco discursava sobre a sua indignação: Hoje, que a abolição imediata e incondicional é apresentada pelo governo, todos dizem que ele não podia ter apresentado outro projeto. É a mesma do ovo de Colombo! Porque não a fizemos nós? Porque não a propusemos, sinão porque estávamos divididos no nosso próprio partido? Quando se olha para a situação passada, excepto o ministério abolicionista, o que resta de tantos governos liberais?648 Em sua fala, Nabuco seguia dizendo que os liberais eram minoria na Câmara e teriam que declinar aos seus princípios, tornando-se aliados do escravismo para combater a impopularidade. Também falava que a raça negra escolheria, com a Abolição, o Partido Liberal, sabendo que no fundo teria sido ele quem concorreu em maior alegria para a sua liberdade. Ele reconhecia a impotência do Partido Liberal e as autolimitações de suas https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/histedbr/article/view/8639642#:~:text=Resumo,escrav id%C3%A3o%2C%20desvelando%20a%20sua%20iniq%C3%BCidade.. Acesso em: 2 mai. 2022, p. 91-92. 646 MENEZES, Jaci Maria Ferraz de. Abolição no Brasil: a construção da liberdade. Revista HISTEDBR [online], Campinas, n. 36, p. 83-104, dez. 2009. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/histedbr/article/view/8639642#:~:text=Resumo,escrav id%C3%A3o%2C%20desvelando%20a%20sua%20iniq%C3%BCidade.. Acesso em: 2 mai. 2022, p. 94. 647 Ibid., p. 95. 648 Apud BUARQUE, Cristovam. Dez dias de Maio em 1888. 3. ed. Brasília, DF: Senado Federal, 2016. Disponível em: https://www.senado.gov.br/senadores/Senador/CristovamBuarque/arquivos/Dez%20Dias%20de%20 Maio.completo.pdf. Acesso em: 2 de maio de 2022, p. 59. 207 propostas em razão do que atribuiu à divisão partidária interna. Vejamos que ele deixou transparecer as resistências do Partido Liberal em relação à iniciativa Conservadora, novamente um entrave na relação de quem realizava a proposição. A Lei nº 3.353, de 13 de maio de 1888 declarou extinta a escravidão no Brasil e revogou as disposições em contrário em dois artigos. Em outras palavras, depois de cerca de quatro séculos de lutas, subjugação e domínio, a liberdade era reconhecida em um curtíssimo texto que nada continha de epílogo. Depois da aprovação da lei, chegaram a ser apresentados projetos prevendo a indenização dos ex-proprietários e medidas de controle do trabalho, que não foram aprovados. O caminho da emancipação gradual contou com iniciativas do governo, aprovadas em gabinetes conservadores, ainda que aproveitando em parte o projeto dos “liberais abolicionistas”. Após a Abolição, os libertos foram esquecidos. Muitos acabavam trabalhando em troca de casa e comida, com poucas exceções, sendo mal remunerados. Tornavam-se empregados de seus antigos senhores a fim de que lhes conferissem alimentação, moradia e segurança.649 Não havia muito debate sobre facilitar a transição do escravo para o cidadão, mesmo a imprensa e os abolicionistas mais aclamados, como Joaquim Nabuco, pareciam ter dado sua missão como encerrada. Em grande parte, a preocupação maior dos demais setores envolvidos parecia ser o livramento dos bancos do fardo da escravidão, e não estender aos negros os direitos de cidadania. Com a ascensão do governo republicano em 1889, os analfabetos foram excluídos do direito de voto, o que eliminou a maioria dos ex-escravos do corpo eleitoral.650 O Direito foi, desse modo, utilizado hegemonicamente para a manutenção da hierarquia social, incluindo até determinado ponto o escravismo formal, com a sua gradual eliminação. Foram, contudo, perpetuadas as suas heranças, mesmo após a Abolição. Contra-hegemonicamente, o Direito foi utilizado por grupos sociais mobilizados em oposição à ordem escravista, no âmbito de reconhecimento de direitos e inserção social.651 649 ANDRADE, Bruno; FERNANDES, Bruno Diniz; DE CARLI, Caetano. O fim do escravismo e o escravismo sem fim — colonialidade, direito e emancipação social no Brasil. Revista Direito e Práxis, v. 6, n. 10, p. 551-597, 2015. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Brasil. Disponível em: https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=350944513016. Acesso em: 2 mai. 2022, p. 563. 650 COSTA, Emília Viotti da. A Abolição. 8. ed. São Paulo: Editora da UNESP, 2008, p. 137. 651 Ibid., p. 552. 208 A ação desses grupos teve significativo impacto na gestação do fim do escravismo formal, apesar do fato de que as malhas políticas nas quais estavam envoltos não foram capazes de eliminar o escravismo no âmago de sua práxis mais ampla, restringindo a questão escrava, em última instância, a uma questão legal.652 Apesar de termos buscado tratar do ciclo de leis emancipatórias em uma linha cronológica, de modo a facilitar o seu entendimento em meio a tantos jogos de poder, a “transição” dos escravos para o reino da liberdade não foi um processo linear e progressivo e careceu de medidas de amparo para além do reconhecimento formal de direitos. Conforme Andrade, Fernandes e de Carli, o Direito contribuiu para que se configurasse um “pós-escravismo” na sociedade brasileira, ainda que as estratégias hegemônicas não tenham conseguido impedir a ocorrência de mobilizações jurídicas emancipatórias, através de ações contra-hegemônicas e dos agentes sociais subalternizados. Os autores esclarecem que o reconhecimento da igualdade formal na esfera jurídica não implica necessariamente no fim de padrões sociais de subalternização, componentes do escravismo. Assim, sem condições para realização da cidadania plena, os escravos e seus descendentes não logravam superar o escravismo enquanto relação social, o que contribuiu para a persistência da sua lógica na realidade brasileira.653 Ainda que com dissidências e conflitos, permanecia vigente e eficaz o pacto contra os escravos na sociedade brasileira. O fim da escravidão significou a percepção de que o Brasil estava em descompasso na esfera internacional, e se quisesse ser incluído, deveria novamente se adaptar aos padrões exigidos para as relações mercantis. O regime escravocrata, que era tão lucrativo, começava a apresentar seus impasses econômicos. Do ponto de vista dos proprietários, era necessário alimentar, curar, manter os escravos e seus filhos, um custo que se tornava cada vez mais desinteressante tendo em vista a mão-de-obra livre e barata. A população escrava havia diminuído muito, sem boas perspectivas quanto à natalidade. Províncias libertavam escravos sem ordem do governo central, cresciam as fugas e a ação dos movimentos emancipatórios. Insistir estava caro demais, a hora havia chegado. 652 ANDRADE, Bruno; FERNANDES, Bruno Diniz; DE CARLI, Caetano. O fim do escravismo e o escravismo sem fim — colonialidade, direito e emancipação social no Brasil. Revista Direito e Práxis, v. 6, n. 10, p. 551-597, 2015. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Brasil. Disponível em: https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=350944513016. Acesso em: 2 mai. 2022, p. 554. 653 Ibid., p. 555 e 559. 209 Tal como mencionado ao comentarmos o texto de Andrade, Fernandes e de Carli, uma espécie de pós-escravismo se erigiu — que, contudo, é um tema complexo, que vai além do foco deste trabalho. O que interessa frisar para o nosso recorte é que o fim da escravidão não era o fim do pacto contra os escravos. Voltando um pouco para a situação jurídica deles e delas, dissemos que no Brasil não operou a lógica do “tudo ou nada” no Direito. Flexibilidade e adaptação foram duas características presentes na ação e pensamento jurídico-político das elites para se manterem no poder. Elas utilizavam da legalidade para autolegitimar e assegurar seus interesses. Isso tornou a figura do escravo juridicamente muito ambígua. Se o Direito Civil perversa e reiteradamente o considerava objeto, propriedade, no Direito Criminal tinha- se uma série de vislumbres que faziam transparecer que o escravo era pessoa e não coisa, e que o tratavam, em alguma medida, como ente dotado de personalidade, ainda que fosse para puni-lo. Do lado do Direito Civil, a demora no reconhecimento das possibilidades de constituir família, pecúlio, de ter direito à herança e de ter direitos sucessórios, eram fatores que contribuíam em muito com o isolamento social e jurídico dos escravos. Era difícil para o escravo juntar pecúlio e as alforrias apresentavam valores que eles não conseguiam pagar. Sem falar das proibições de cultos e práticas religiosas. O Brasil imperial era lugar dos homens de bem, dos bons cristãos. Quanto ao liberto, essa era uma posição necessária para o controle das elites. O escravo passava para o reino dos livres, mas sem deixar a marca da escravidão para trás. Não era homem livre, como o branco, era liberto. Delimitavam-se espaços que o liberto podia acessar, outros em grande parte vedados. Parte do controle na denominação e categorização dos libertos se fazia valer da esperança da liberdade. A liberdade não era certa, mas o escravo tinha alguma prospecção de mobilidade social. Com uma cidadania precária e sem qualquer apoio para a sua inserção social depois da Abolição, o grupo de libertos fazia formalmente parte da grande família brasileira, sem perspectivas de igualdade material. Sem falar de “escravidão”, de “escravos” ou “libertos”, a Constituição da República promulgada em 24 de fevereiro de 1891654 dizia em seu preâmbulo organizar um regime “livre e democrático”. 654 BRASIL. [Constituição (1824)]. Constituição Política do Império do Brazil (de 25 de março de 1824). Constituição Política do Império do Brasil, elaborada por um Conselho de Estado e outorgada pelo Imperador D. Pedro I, em 25.03.1824. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao24.htm. Acesso em: 15 fev. 2021. 210 O fim da escravidão, portanto, não era também a morte do liberalismo. Após longa resistência, até os últimos instantes, de abandono do instituto, os liberais partiram ao seu plano de fuga, que vinha sendo minuciosamente elaborado desde o período da Conciliação e que tomava a descentralização política como uma via de ampliação de poder. A República trazia novas oportunidades e antes de se efetivamente discutir representação política na margem da população, a atenção estava em como os mesmos grupos poderiam se conciliar para exercer os seus interesses através da atividade legislativa e da ação política, sem o incômodo das massas. A visão sobre os antigos escravos e seus descendentes, esta, sem dúvida, não se libertaria do pacto. 4.2 REFLEXÕES SOBRE O LIBERALISMO DO SEGUNDO REINADO As últimas décadas do Império podem ser sumarizadas em três expressões: rápida mudança social, crise política e contestação. Os 49 anos do Segundo Reinado contaram com uma estabilidade no que se diz respeito à proteção das fronteiras nacionais e controle social das massas. Por trás desse invólucro, a constante disputa entre as tendências liberais e conservadoras definia-as mutuamente pela ação política, contando com uma maior diversificação de interesses com a proximidade do fim do regime. A reforma foi a opção escolhida para garantir a manutenção da ordem, de modo que a República não seria constituída pela via revolucionária. O liberalismo foi absorvido pela realidade jurídico-política brasileira em sua vertente heroica no processo de Independência, transformando-se em um liberalismo estamental que, contudo, permanecia curvado às intempéries diante da figura do Imperador. Nesse âmago, sobre o sentido do liberalismo que se forma no Brasil recém- Independente, diz Thomas Flory: O liberalismo político brasileiro do período pós-independência derivou igualmente de um compromisso filosófico com o localismo e de um compromisso estratégico reforçador com a descentralização. O liberalismo brasileiro era, portanto, forte e bem fundamentado, mas também paroquial em todos os sentidos.655 655 FLORY, Thomas. Judge and Jury in Imperial Brazil, 1808-1871. Austin: University of Texas Press, 2014. E-book Amazon, Posição 57. Tradução livre. 211 Flory nos mostra que os esquemas estrangeiros foram adaptados ou filtrados na realidade nacional, de modo a satisfazer determinados interesses, daí seu compromisso com o localismo. Diferentemente de perspectivas que alegam uma interpretação “mal- feita” dessas ideias, tivemos a maximização dos seus expedientes retóricos no campo jurídico. Um aprofundamento no que concerne à apropriação de ideias e à construção de um pensamento político próprio ocorreu no Segundo Reinado, passada a instabilidade política da Regência e as ameaças separatistas. Diante da supressão das tendências radicais, os liberais moderados cindiram-se entre liberais e conservadores, oposição que seguiu até o fim do período com o acirramento de divergências na iminência do fim do regime. O matiz do liberalismo que integrou o processo de formação do Estado nacional brasileiro seguiu, acima de tudo, motivações econômicas, propondo a superação do estatuto colonial na seara jurídica, enquanto interiorizava, contudo, seu substrato. Mantinha-se, assim, o escravismo, a monarquia e a denominação senhorial. Ao invés de universalizar a cidadania, preservavam privilégios políticos e econômicos das elites e seus membros, estreitando a elas o perímetro das normas jurídicas. No Segundo Reinado tínhamos, portanto, uma sociedade do Antigo Regime: com estrutura estamental, na qual os grandes proprietários de terras e de escravos eram cidadãos plenos, ficando em um segundo plano os pequenos proprietários, funcionários públicos, comerciantes, outros letrados e, na base, homens pobres livres.656 Os escravos e libertos sequer entravam na conta. O liberalismo se desenvolveu de um modo em que liberdade e autoridade não eram conceitos antagônicos, constituindo-se como um mecanismo jurídico das elites, o que auxiliou na instrumentalização da hegemonia dos proprietários de terras e de escravos e permitiu, no seio de seus interesses, aliciar os setores necessários para o exercício do seu poder. Mantinha-se a hierarquia de uma sociedade baseada no trabalho escravo, mas inserida no cenário amplo da produção de mercadorias. Solidificou-se a ideia imposta do trono como regulador e depositário do poder, definindo-se a partir do conceito de liberdade como conservação os cidadãos, com fulcro na propriedade. Por sua vez, a noção 656 ALONSO, Angela. Idéias em movimento — A Geração de 1870 na crise do Brasil-Império. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002, p. 59. 212 de autoridade passou a ser tomada como instrumento de manutenção da hierarquia social.657 Para Bosi, o termo liberal passou por diversas transformações, o que nos revela também que não tínhamos um único liberalismo. Não havia uma fórmula a ser cumprida, apenas forma a ser preenchida pelo conteúdo da realidade material. Por isso mesmo afastamos a noção de que os papéis assumidos pelo liberalismo brasileiro advêm de uma opacidade na absorção dessas ideias. Assim, em Bosi, quando utilizado pela classe proprietária no período de formação do novo Estado, o termo liberal significou, para a classe dominante até os meados do século XIX, aquele que era conservador das liberdades de produzir, vender e comprar, conquistadas em 1808.658 Depois, passou a remeter à conservação da liberdade de representar-se politicamente, como cidadão qualificado. Na sequência, à liberdade como instituto colonial, relançada pela expansão agrícola, dizendo respeito ao poder sobre o trabalho escravo mediante coação jurídica. Posteriormente, remontou a ter a capacidade de aquisição de novas terras em regime de livre concorrência, assentando o estatuto fundiário da colônia ao espírito capitalista,659 refletido na Lei de Terras de 1850660. Diz Bosi que: Para a classe dominante o óbice maior não vinha, então, do nosso Estado constitucional, que representava o latifúndio e dele se servia: o obstáculo era interposto pela nova matriz internacional, o novo exclusivo, a Inglaterra. Entende-se a reivindicação do mais desbridado laissez-faire; entende-se a hostilidade que despertava entre os proprietários o controle da sua nação por um Estado estrangeiro. Mas como o denominador ideológico comum era o liberalismo econômico, que conhece na época a sua fase áurea, só restava a retorica escravista uma saída para o impasse: mostrar que as ideias mestras da 657 PIÑEIRO, Théo Lobarinhas. Os projetos liberais no Brasil Império. Passagens, Revista Internacional de História Política e Cultura Jurídica, Rio de Janeiro, v. 2, n. 4, p. 130-152, mai./ago. 2010. Disponível em: https://www.redalyc.org/pdf/3373/337327173007.pdf. Acesso em: 1 mar. 2022, p. 149. 658 BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 199. 659 Ibid., p. 199-200. 660 Conforme o preâmbulo da Lei, dispõe sobre as terras devolutas no Império, das que são possuídas por título de sesmaria sem preenchimento das condições legais e por simples título de posse mansa e pacífica; e determina que, medidas e demarcadas as primeiras, elas sejam cedidas a título oneroso, para empresas particulares e para o estabelecimento de colônias de nacionais e de estrangeiros. BRASIL. Lei nº 601, de 18 de setembro de 1850. Dispõe sobre as terras devolutas do Império. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l0601- 1850.htm#:~:text=LEI%20No%20601%2C%20DE,sem%20preenchimento%20das%20condi%C3%A 7%C3%B5es%20legais. Acesso em: 15 fev. 2021. 213 doutrina clássica, porque justas, deveriam aplicar-se com justeza as circunstâncias, as peculiaridades nacionais.661 No cerne dos debates parlamentares, de início, essas ideias foram absorvidas genericamente, remontando ao caráter “liberalizante” de uma postura, à contraposição da condição “escravizada” da colônia diante da metrópole, à busca do livre comércio. Depois, o liberalismo foi tomado em sua carga do Atlântico, como ideologia emancipadora das nações “evoluídas”. No Segundo Reinado o liberal era a oposição política do conservador. A relação entre liberalismo e escravidão também passou por alguns ciclos no período. Primeiro, a utopia do liberalismo heroico da Independência; seguida de omissões sobre o tema, em especial quanto à pauta emancipatória, até a década de 1840. Então um tempo de transformações e resistência ao abandono do instituto através do liberalismo estamental se fez valer, frente às leis emancipatórias; chegando enfim a um liberalismo essencialmente oligárquico. A escravidão moderna veio ao Brasil acompanhada da delimitação racial, fator utilizado para a categorização de grupos (escravos e libertos) e determinação do seu lugar, através do Direito. Na perspectiva de Octavio Ianni, “a história do mundo moderno é também a história da questão racial, um dos dilemas da modernidade” revelando-se como “desafio permanente, tanto para indivíduos e coletividades”.662 Para ele, no século XXI estamos no curso de um vasto processo de “racialização” do mundo, onde ainda são desenvolvidas operações de “limpeza étnica”, praticadas em diversos países e colônias em nome da “civilização ocidental”, de modo que a raça é uma condição social, psicossocial, cultural — e poderíamos adicionar, jurídica — que envolve jogos de forças e processos sociais de dominação e apropriação. Segue Ianni dizendo que o “mito da democracia racial” está vinculada a um significado de que a sociedade brasileira seria supostamente uma democracia racial, sem ser uma democracia política e, muito menos, social, expressão que dissimula uma sofisticada forma de racismo patriarcal e patrimonial desenvolvida desde a Casa- Grande.663 661 BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 199-201. 662 IANNI, Octavio. Dialética das relações raciais. Estudos Avançados, São Paulo, v. 18, n. 50, p. 21-30, abr. 2004. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103- 40142004000100003&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 1 fev. 2021, p. 21. 663 Ibid., p. 22-23. 214 O ideário liberal no Brasil ainda é objeto de variadas apreciações, e atuou de maneira categórica na organização e formação da identidade do novo Estado e das elites, como uma representação da ideia de “progresso”.664 No Brasil, os liberais se fizeram valer de um pacto com amplos setores sociais, para permanência, tanto quanto possível, da escravidão. Em um contexto agrário as classes de proprietários de escravos e terras teceram a sua hegemonia através da utilização do Direito e da ação política para a manutenção da hierarquia e da ordem social existentes. Esse Direito vinha fundamentado em bases excludentes e seu nascimento ocorreu vinculado com o liberalismo. Vale refletir então, quais seriam os caminhos antevistos para reformular o liberalismo brasileiro, diante do fim da escravidão. Não trazemos, todavia, uma análise do que aconteceu após a emancipação dos escravos e escravas, pois essa temática tão abrangente poderia ser foco de uma tese por si só e foge do escopo deste trabalho. Também não provemos um panorama ou aprofundamento do período abrangido pela República Velha (1889-1930). Buscamos apenas demonstrar o que significou esse momento de ruptura, para o liberalismo imperial estamental, que passa a se moldar caracteristicamente como um liberalismo oligárquico na passagem do século. Essa transição, porém, não implica a perda de suas bases, mas reflete um rearranjo de relações políticas. No processo de construção do Estado brasileiro, tal como esclarece Lynch, a transição da etapa monárquica para a etapa oligárquica trazia já seus primeiros sinais depois da Conciliação, entre liberais e conservadores. Pois naquele momento foi desencadeada a onda de dúvidas acerca do sistema representativo no Brasil. Os conservadores atingiram o ápice de seu poder mediante a extinção do tráfico negreiro, com o Código Comercial a lei agrária, e a pretensão de liberar capitais direcionados antes para o tráfico, a partir da abertura econômica do país.665 664 SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis. 34 ed. São Paulo: Duas Cidades, 2000, p. 27-28. 665 LYNCH, Christian Edward Cyril. Da Monarquia à Oligarquia: história institucional e pensamento político brasileiro (1822-1930). São Paulo: Alameda, 2014, p. 65-67. 215 4.3 EM DIREÇÃO À REPÚBLICA: DESCENTRALIZAÇÃO, SISTEMA POLÍTICO OLIGÁRQUICO E DOMINAÇÃO DA ELITE AGRÁRIA Desde a década de 1860, já havia uma forte crítica ao modelo político- constitucional erigido em torno da Coroa. Os liberais passaram a promover uma campanha agressiva pela realização de uma reforma eleitoral e na década seguinte Tavares Bastos lançou sua defesa pela descentralização política e administrativa. A argumentação utilizada nos países centrais para a transição da oligarquia à democracia foi então empregada pelos liberais para consumar a transição da monarquia para a oligarquia. O momento foi coincidente com o processo de extinção do trabalho escravo e a Lei do Ventre Livre no Gabinete Rio Branco cindiu o próprio Partido Conservador, de maneira que a ala agrária passou a se juntar aos liberais na caminhada por uma reforma eleitoral.666 Depois do desenvolvimento de reformas moderadas pelo gabinete conservador de Rio Branco (1871-1875), a vida política era marcada pelo adiamento de transformações, incluída a extinção do escravismo. Alguns grupos destacaram-se no período, dentre eles, os novos liberais, os liberais republicanos, os positivistas abolicionistas, os federalistas positivistas gaúchos e federalistas e científicos paulistas.667 Na corrente de mudanças, a pressão do Partido Liberal para as reformas eleitoral e judiciária aumentava, através da participação de localidades controladas por ele. Por outro lado, tinha-se o esgotamento da economia escravista nas bases socioeconômicas do regime, resultando em uma diferenciação entre os conservadores: um grupo voltado à manutenção dos princípios do Império e outro à transformação gradual. A crise política se instaurou por meio do centro do regime. Nabuco de Araújo, Zacarias de Goés, Sinumbu, Sariva e Paranapaguá foram persuadidos pela necessidade de mudanças unindo-se à ala dos liberais moderados e formando a Liga Progressista. Incorporaram, da pauta liberal, a divisão dos poderes, a responsabilidade dos ministros pelo Poder Moderador, as liberdades individuais, a descentralização administrativa, a reforma judiciária e o Código Civil. Porém, o Executivo retornou ao controle conservador em 1868. 666 LYNCH, Christian Edward Cyril. Da Monarquia à Oligarquia: história institucional e pensamento político brasileiro (1822-1930). São Paulo: Alameda, 2014, p. 72-76. 667 KUGELMAS, Eduardo. Revisitando a geração de 1870. Revista Brasileira de Ciências Sociais [online], v. 18, n. 52, p. 208-210, 2003. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbcsoc/a/W4j8YSqmWy3Dxb7Kzn4FzmK/?format=pdf&lang=pt. Acesso em: 10 mar. 2022, p. 209. 216 A década de 1870 começou, assim, com manifestações propriamente disruptivas, que denunciavam o dissenso dentro das elites. Os liberais se dividiram formando o Partido Liberal-Radical em 1868 e o Novo Partido Liberal dos moderados em 1869. O manifesto do novo Partido Liberal em 1869 trazia o dilema de reforma ou revolução, definindo o governo como absoluto e fruto de leis reacionárias do Partido Conservador.668 Nesse período, teve-se uma ruptura crítica que, contudo, não ocorreu em uma plataforma revolucionária. O movimento intelectual do período comungou com a opção pela reforma, em detrimento da revolução. Ainda assim, o elitismo seguiu sua busca por princípios de organização que preservassem a hierarquia social, sendo, portanto, caracterizado pelo reformismo.669 Na fala do Trono de 1889, o Imperador sustentava a necessidade da desapropriação por utilidade pública, de terrenos não aproveitados pelos proprietários, para que servissem aos núcleos coloniais. Nesse momento, as elites agrárias passaram a buscar os ambientes republicanos que se multiplicavam, na busca de fórmulas para eliminar a autonomia do poder monárquico e possibilitar uma reforma social pelo alto.670 Em virtude da emancipação civil que decretastes na sessão transata, vai prosseguindo regularmente a substituição do trabalho sem os abalos profundos que em toda a parte sucederam a crises desta natureza. A classe agrícola compreendeu que ficara inútil e sem valia uma propriedade que nem era mais suscetível de posse e inaugurou resolutamente o novo regime, do qual provirá a regeneração e o aumento das indústrias. O governo tem auxiliado com os meios que lhe concedestes esse movimento da transformação econômica e social. Assim que tem posto o maior empenho em estender a rede de viação férrea, quer autorizando o prolongamento das estradas pertencentes ao Estado, quer concedendo garantia de juros para as que podem ser construídas em condições vantajosas por empresas particulares.671 668 ALONSO, Angela. Idéias em movimento — A Geração de 1870 na crise do Brasil-Império. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002, p. 71-73. 669 ALONSO, Angela. Crítica e contestação: o movimento reformista da geração 1870. Revista Brasileira de Ciências Sociais [online], v. 15, n. 44, p. 35-55, out. 2000. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbcsoc/a/xCb8knmRgSqgmCLxKYG7qzq/abstract/?lang=pt#ModalArticles. Acesso em: 10 mar. 2022, p. 49. 670 LYNCH, Christian Edward Cyril. Da Monarquia à Oligarquia: história institucional e pensamento político brasileiro (1822-1930). São Paulo: Alameda, 2014, p. 81 e 87-88. 671 Fala do Trono por ocasião da abertura da 4ª sessão da 20ª legislatura em 3 de maio de 1889. In: MARQUES, Joaquim Campelo; FERREIRA, Cristiano; SEGRAF [orgs.]. Falas do trono: desde o ano de 1823 até o ano de 1889. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2019. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/562127/Falas_do_Trono_1823- 1889.pdf?sequence=7&isAllowed=y. Acesso em: 2 jun. 2022, p. 673. 217 O teor da fala do trono revelava a tentativa de se encobrir ou ao menos apaziguar o cenário de crise instaurado, tratando também da passagem para o trabalho livre como algo natural e próspero. Projetava uma ideia de conformação das elites agrárias com a situação da propriedade, como se os conflitos houvessem sido amenizados após a emancipação dos escravos e a revolução industrial tardia que era semeada. É nesse cenário que republicanismo passou então a representar uma “reação conservadora”, considerando que após a Lei do Ventre Livre e a Lei dos Sexagenários, ele surgiu como reação das classes proprietárias. Uma das principais referências teóricas do republicanismo liberal brasileiro foi Herbet Spencer, que era oponente intelectual do autodenominado “novo liberalismo”,672 do progressismo e do radicalismo.673 O movimento republicano que culminou no fim da Monarquia teve a participação decisiva dos membros da velha oligarquia rural, como cafeicultores e senhores-de- engenho, que estavam em geral vinculados a concepções liberais no campo da teoria econômica, de modo que o apego ao “velho” mundo pré-industrial seguia persistente diante das possibilidades de mudanças na produção. Sobre este ponto, vale fazer a observação de que o Manifesto Republicano de 1870 publicado no Rio de Janeiro não tocava no problema da escravidão, limitando-se à defesa de maior autonomia às Províncias (que se tornariam Estados) e da criação do cargo de Presidente da República, através de sufrágio.674 672 A autodenominação de “novos liberais” era colocada em contraposição ao “velho liberalismo”. Joaquim Nabuco e André Rebouças foram figuras expressivas, que se mantinham distantes do núcleo saquarema. Traziam, contudo, certa fidelidade às instituições monárquicas — de modo que, para eles, a República era uma ameaça à unidade nacional —, vislumbrando um impulso reformista no interior da própria elite. Propunham a abolição e a modernização econômica. Durante a década de 1880, oscilaram entre o antigo Partido Liberal e a campanha abolicionista, defendendo a tese da monarquia federativa, com relação à qual corroborava Ruy Barbosa. Quanto aos chamados “liberais republicanos”, o jornalista Quintino Bocaiúva foi representante. O grupo advinha da radicalização de parte dos liberais, atuando como coautor do manifesto republicano de 1870, junto com Salvador da Mendonça. A descentralização federativa e a expansão do sistema representativo tinham forte apelo no Rio de Janeiro e na opinião pública urbana em geral. O grupo contemporizava com a Abolição e por vezes seus membros atuavam como facção do partido Liberal, com plataformas moderadas. In: KUGELMAS, Eduardo. Revisitando a geração de 1870. Revista Brasileira de Ciências Sociais [online], v. 18, n. 52, p. 208-210, 2003. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbcsoc/a/W4j8YSqmWy3Dxb7Kzn4FzmK/?format=pdf&lang=pt. Acesso em: 10 mar. 2022, p. 209-210. 673 LYNCH, Christian Edward Cyril. Da Monarquia à Oligarquia: história institucional e pensamento político brasileiro (1822-1930). São Paulo: Alameda, 2014, p. 81 e 87-88. 674 ARRUDA, Pedro Fassoni. Liberalismo, direito e dominação da burguesia agrária na Primeira República brasileira (1889-1930). Ponto-e-vírgula, 1, p. 161-188, 2007. Disponível em: https://www.semanticscholar.org/paper/Liberalismo%2C-direito-e-domina%C3%A7%C3%A3o-da- burguesia-na-Arruda/e66e0f045e54314aa158411e0a52851c5e0ff620. Acesso em: 10 mai. 2022, p. 164. 218 A chamada “política dos governadores” (por meio da qual o governo central apoiava os Estados sem restrição), que foi estabelecida na presidência de Campos Salles, significou a consolidação formal de regras mirando a coexistência pacífica das oligarquias já empossadas no controle da política de seus respectivos Estados. Esse domínio começou a ser estabelecido desde a primeira eleição para o Poder Legislativo Federal. A votação da Constituinte em setembro de 1890 determinou a bancada no Congresso com uma maioria que representava interesses de fazendeiros e chefes regionais, com 25% de deputados ligados ao grupo militar, que não tinham força suficiente para se opor às elites rurais.675 O fato é que a política dos governadores persistiu na Primeira República e durante todo tempo tinha-se a oposição de duas interpretações do regime, uma liberal e outra conservadora. Os primeiros inclinavam-se à defesa da liberdade contra a autoridade e à verdade eleitoral, enquanto os conservadores traziam argumentos tendentes à exacerbação do federalismo, ao presidencialismo, negando ou justificando as fraudes eleitorais.676 A descentralização política foi determinante para que a classe agroexportadora exercesse o comando o país. Os Estados passaram a ter liberdade para legislar, organizar sua própria força militar, criar impostos e contrair empréstimos no exterior.677 A Constituição de 1891 previa um sistema federativo altamente descentralizado, com inspiração no modelo estadunidense, capaz de contemplar as facções da classe produtora rural sem empregar, contudo, esforço para a melhoria de problemas relacionados às particularidades da realidade brasileira, como a concentração de renda (e a desigualdade na distribuição de terras, benéfica aos proprietários).678 O Art. 6º colocava a impossibilidade de o Governo Federal intervir nos negócios peculiares dos Estados, ainda que contivesse rol de exceções. Isso para dizer que aos Estados foi atribuída ampla autonomia, o que possibilitava às oligarquias que cuidassem 675 ARRUDA, Pedro Fassoni. Liberalismo, direito e dominação da burguesia agrária na Primeira República brasileira (1889-1930). Ponto-e-vírgula, 1, p. 161-188, 2007. Disponível em: https://www.semanticscholar.org/paper/Liberalismo%2C-direito-e-domina%C3%A7%C3%A3o-da- burguesia-na-Arruda/e66e0f045e54314aa158411e0a52851c5e0ff620. Acesso em: 10 mai. 2022, p. 165-166. 676 LYNCH, Christian Edward Cyril. Da Monarquia à Oligarquia: história institucional e pensamento político brasileiro (1822-1930). São Paulo: Alameda, 2014, p. 90. 677 VARES, Sidnei Ferreira de. A dominação na República Velha: uma análise sobre os fundamentos políticos do sistema oligárquico e os impactos da Revolução de 1930. História: Debates e Tendências, v. 11, n. 1, p. 121-139, jan./jun. 2011. Disponível em: http://seer.upf.br/index.php/rhdt/article/view/2491. Acesso em: 10 mai. 2022, p. 122-123. 678 Ibid., p. 123. 219 de seus interesses sem passar pelo governo federal, algo bastante distinto da Monarquia Constitucional. Alguns exemplos são a competência exclusiva dos Estados para decretarem alguns impostos como exportação de mercadorias e imóveis rurais e urbanos (Art. 9º); o controle sobre a questão da propriedade (Art. 64); relativa independência econômica e financeira, além de autonomia em matéria administrativa (vide Arts. 5º e 63).679 Predominava no período o coronelismo, a lógica do favor, o mandonismo e o clientelismo. Eram constantes as fraudes eleitorais e a truculência para direcionamento dos votos dos eleitores. A República veio com a ampliação dos interesses e privilégios da antiga classe senhorial, com os coronéis na base, as oligarquias no centro e o governo federal no vértice. Os proprietários receberam subsídios governamentais e compensações aos prejuízos sofridos com a Abolição, como a emissão de papel-moeda e criação de linhas de crédito.680 As antigas Províncias com maior número de escravos na proximidade da Abolição, São Paulo e Minas Gerais, se uniram e alternavam no poder através da “política café-com-leite”, expressão utilizada para denominar o acordo tácito entre as elites agroexportadoras dos produtos, blindando as ameaças de Estados de menor pressão. Quanto aos direitos políticos, o alistamento eleitoral excluía mulheres, analfabetos, estrangeiros, mendigos (Art. 70, § 1º, item 1º) e menores de 21 anos, de modo que não houve grandes modificações no direito de representatividade da população. A maioria da população não sabia ler e escrever.681 Remanescia nos artigos do texto constitucional um teor de defesa das liberdades individuais, ao passo que a agenda republicana não apresentava a cidadania como tema relevante em sua pauta. Tinha-se, assim, uma República voltada à manutenção da ordem, ainda que isso significasse o uso da força e da violência (ao exemplo dos votos de “cabresto”, que implicavam a compra de votos e o abuso do poder econômico). 679 ARRUDA, Pedro Fassoni. Liberalismo, direito e dominação da burguesia agrária na Primeira República brasileira (1889-1930). Ponto-e-vírgula, 1, p. 161-188, 2007. Disponível em: https://www.semanticscholar.org/paper/Liberalismo%2C-direito-e-domina%C3%A7%C3%A3o-da- burguesia-na-Arruda/e66e0f045e54314aa158411e0a52851c5e0ff620. Acesso em: 10 mai. 2022, p. 166-169. 680 Ibid., p. 175. 681 VARES, Sidnei Ferreira de. A dominação na República Velha: uma análise sobre os fundamentos políticos do sistema oligárquico e os impactos da Revolução de 1930. História: Debates e Tendências, v. 11, n. 1, p. 121-139, jan./jun. 2011. Disponível em: http://seer.upf.br/index.php/rhdt/article/view/2491. Acesso em: 10 mai. 2022, p. 124-125. 220 A Constituição republicana conferiu aos liberais um instrumento aglutinador e, durante as primeiras três décadas do período, o liberalismo foi a doutrina política oficial, junto com uma prática francamente autoritária dentro do regime. Segundo A. Paim, o quadro constitucional deixava em aberto espaços para embates entre liberalismo e positivismo, que caminhava em ascensão à época.682 Fundamentalmente, a iniciativa política das elites agroexportadoras estava sendo sufocada pelo centralismo excessivo do Império. A Constituição de 1891 operou como um dos principais dispositivos de dominação dos grupos oligárquicos, de maneira que o sistema federativo adotado trouxe grande capacidade para que as oligarquias regionais submetessem as decisões políticas aos seus interesses de classe, mantendo certos padrões de produção, em uma economia que se reiterou como essencialmente agrícola, servindo para complementar a acumulação nos países imperialistas.683 Para o liberalismo, o caminho lógico com o fim da escravidão era a República, visão que foi sendo sedimentada e alcançou seu ápice com a iminente ameaça ao direito de propriedade das classes agrárias. Já persistia uma insatisfação de longa data com o modelo de centralização política, marcado por uma série de hostilidades com a figura do Imperador e a necessidade de aprovação do governo central para as decisões políticas. Havia uma consciência de que o entardecer da Monarquia levaria consigo o instituto da escravidão e, do mesmo modo que em um primeiro momento a Independência e o constitucionalismo eram necessários para que o Brasil fizesse parte da ordem do capital e do grupo de nações “cultas”, havia chegado a hora da República. A aproximação da ala agrária, independentemente da filiação partidária foi determinante para esse processo e auxiliou para que os mesmos grupos se mantivessem no centro de poder, advindo novamente a alternância entre liberais e conservadores, agora com a roupagem oligárquica. A disposição formal de direitos, pela letra da lei, contribuía para apaziguar os ânimos das massas e perpetuar a postura ambígua do governo de reconhecimento e controle. Compreendendo esse contexto com o qual o liberalismo imperial se deparou nesse momento de ruptura, é válido refletir de maneira mais aprofundada sobre como o eixo liberalismo, Direito e escravidão serve como ferramenta para interpretarmos essa 682 PAIM, Antônio. História do liberalismo brasileiro. São Paulo: Mandarim, 1998, 89-93. 683 ARRUDA, Pedro Fassoni. Liberalismo, direito e dominação da burguesia agrária na Primeira República brasileira (1889-1930). Ponto-e-vírgula, 1, p. 161-188, 2007. Disponível em: https://www.semanticscholar.org/paper/Liberalismo%2C-direito-e-domina%C3%A7%C3%A3o-da- burguesia-na-Arruda/e66e0f045e54314aa158411e0a52851c5e0ff620. Acesso em: 10 mai. 2022, p. 162. 221 realidade. No decorrer desse capítulo mencionamos que o escravo e a situação jurídica de liberdade decorrente eram tratados pelas leis civis. Em outras palavras, este não era um assunto de direito privado, pois como esclareceu Perdigão Malheiro, o escravo era concebido pelo Direito brasileiro como propriedade, coisa, cabendo-lhe assim ser regulado pelo Direito Civil. O fim da escravidão marcou a passagem do escravo não apenas para o mundo dos livres, mas para o mundo dos humanos, passando a ser considerado pessoa. É a partir dessa percepção e voltando ao esquema teórico das ideias fora do lugar que passamos a analisar como o Direito operou com uma série de mecanismos para metabolizar escravidão e liberalismo, fazendo com que essas ideias fossem então introjetadas em nossa superestrutura jurídico-política. 222 5. UMA PROPOSTA INTERPRETATIVA SOBRE O LIBERALISMO JURÍDICO NO BRASIL Ao longo deste trabalho, procuramos conferir relevância e sublinhar a opção do recorte metodológico adotado, circunscrevendo a esfera jurídica como cerne da análise do problema: por que o liberalismo jurídico brasileiro é peculiar? Com tal enfoque, não pretendemos isolar o campo jurídico do político ou do econômico. Trata-se apenas de afunilar a visão sobre o objeto pesquisado. Ou, em uma camada mais profunda, conduzir a análise a partir da seguinte ótica: como o liberalismo brasileiro pode ser entendido, em suas peculiaridades, a partir da sua relação com o Direito? Em que medida esse relacionamento contribuiu para moldar o Direito no Brasil? Dissemos, dessa maneira, que o liberalismo compreendido à luz do Direito possui elementos distintivos no país e que o seu entendimento deve ocorrer tendo como referência a própria realidade brasileira, e não contextos externos, apesar das conexões necessárias para apreender o todo. Isto é, analisar a experiência nacional por ela mesma sem, contudo, excluí-la do escopo dos valores ocidentais. Há uma relação íntima que se desenvolveu na modernidade entre liberalismo, Direito e escravidão. Será nessa passagem para o mundo contemporâneo que a lógica capitalista se consolidará, adquirindo o Direito moldes um pouco mais próximos da nossa realidade atual. Nesse ponto é que são também aperfeiçoados os modos de exploração e acumulação de capital e que o Direito vai adquirindo mais especificidade, afastando-se gradualmente de outras esferas, como a moral e a religião. O liberalismo se coloca, nesse sentido, como uma ideologia que em muito influenciou a maneira de se pensar o Direito. Conceitos como Estado de Direito — e dos indivíduos como “sujeitos de direito” — e impessoalidade estatal remontam ao arcabouço liberal, cuja concretização exigia sofisticar o processo de trocas mercantis, colocando sujeitos no mesmo patamar para a sua realização, através da universalização das ideias de liberdade e igualdade. Não no sentido de extensão de direitos e garantias a todos, mas no estabelecimento de categorias que possibilitassem a circulação de capitais. Vimos que o liberalismo foi transportado para as colônias e ex-colônias, sendo disseminado como doutrina das nações “emancipadas”, isto é, independentes e que comungavam de certos padrões e valores que as uniam no circuito de trocas mercantis. Essa “união” contou com o tráfico de pessoas escravizadas para financiamento do sistema produtivo que se erigia. A discrepância entre os cenários das antigas metrópoles e ex- 223 colônias tornava natural que as ideias liberais parecessem deslocadas nos contextos locais. Esse desconforto gerado por uma recepção de ideias com dissincronia de realidades acabou criando uma aparência ilusória de que as elites brasileiras, ocupantes dos cargos de poder, teriam digerido essas ideias de forma incompleta, refletindo uma suposta incapacidade em sua execução no âmbito prático. O que se pretende frisar é que esse processo de absorção das ideias liberais em uma realidade díspar e a sua convivência com a escravidão não ocorreram exclusivamente no Brasil. Porém, alguns desdobramentos da relação entre liberalismo e Direito se apresentaram de maneira sui generis. O Direito brasileiro em formação se desenvolveu com o auxílio do liberalismo, assumindo estruturalmente muitas de suas características e expedientes teóricos e ideológicos. Esse Direito foi construído sob bases excludentes, de tal modo que o autoritarismo foi constante na prática política. Ilustramos isso nos capítulos precedentes a partir de elementos da realidade jurídica brasileira. Além do favor, o clientelismo e a patronagem não foram abandonados da antiga lógica colonial, de tal modo que encontramos um liberalismo cuja autopercepção de seus representantes via nas ideias revolucionárias do Atlântico uma forma de expressão ideológica radical. A situação colonial da economia brasileira, sua posição periférica no mercado internacional, somados ao sistema de clientela, ao uso disseminado do trabalho escravo e a uma Revolução Industrial tardia (que vai acontecer no século XX), são circunstâncias combinadas que deram ao processo histórico do liberalismo brasileiro sua especificidade. O liberalismo não era apenas uma fantasia professada pelas elites brasileiras: as ideias liberais eram armas ideológicas para alcançar objetivos políticos e econômicos muito específicos.684 Passando por vários momentos e etapas, uma das características mais marcantes desse liberalismo foi a introjeção brasileira de que ser liberal era ser conservador da liberdade. A liberdade, tratada no âmbito privado, era aquela garantida aos cidadãos proprietários. Essa liberdade privada, junto a mecanismos de cooptação à escravidão, tinha como um de seus efeitos jurídicos o caráter disseminado da propriedade escrava e a 684 COSTA, Emília Viotti da. Da Monarquia à República: momentos decisivos. 6. ed. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1999, p. 134. 224 estabilidade que isso criava.685 Recebida como instituto colonial e realçada pela expansão agrícola, a liberdade repousava na submissão do trabalhador escravo mediante coação jurídica. O período de escravidão no Brasil refletiu um pacto de diferentes setores sociais e econômicos, com interesses amplos e heterogêneos, unidos contra os escravos, o que resultou em seu isolamento. As características liberais para os padrões da época, refletidas na prática política, na Constituição do Brasil e nos primeiros códigos, culminaram na consubstanciação do instituto da escravidão na superestrutura jurídico-política, com a associação de pequenos, médios e grandes proprietários de escravos.686 A proposta que procuramos lançar é, portanto, uma interpretação do liberalismo em suas peculiaridades através do Direito, isto é, do pensamento jurídico, tomando como fundamentos pontos de toque com o instituto da escravidão. Em outras palavras, isso significa dizer que o principal elemento distintivo do liberalismo brasileiro está na sua relação com a escravidão e em como o Direito a metabolizou. Não pretendemos, contudo, rotular os representantes e as tendências do liberalismo desenvolto no Brasil, mas compreendê-lo e interpretá-lo a partir desse eixo (liberalismo, Direito e escravidão), pontuando como as especificidades desse ideário se desdobraram para que modos de se pensar o Direito fossem densamente enraizados. O grande diferencial da teoria liberal na prática e na esfera do Direito, que chamamos de liberalismo jurídico, ocorreu nos mecanismos de cooptação do sistema escravista e em como a escravidão foi incorporada na superestrutura jurídico-política brasileira. Diferentemente de outros países, como Estados Unidos e França, não operou no Brasil a lógica do “tudo ou nada” no reconhecimento de direitos. Exemplo disso é justamente a concessão da cidadania e o tratamento jurídico ambíguo dado aos libertos, possibilitando pequenos espaços de “respiro”, de mobilidade social e jurídica, ao passo que as massas eram controladas. No presente capítulo, buscamos aprofundar a percepção sobre o vínculo entre Direito, liberalismo e escravidão como uma maneira de entender o lugar das ideias liberais, bem como explicar com maior detalhamento os mecanismos de cooptação que 685 VELLOZO, Júlio César de Oliveira; ALMEIDA, Silvio Luiz de. O pacto de todos contra os escravos no Brasil Imperial. Revista Direito e Práxis [online], v. 10, n. 3, p. 2137-2160, jul./set. 2019. Disponível em: https://doi.org/10.1590/2179-8966/2019/40640. Acesso em: 16 set. 2021, p. 2140. 686 Ibid., p. 2138 e 2142. 225 foram utilizados para difundir e manter séculos de escravização, o que possibilitou a disposição de um sistema pelo qual ela fosse estruturalmente incorporada no país. 5.1 LIBERALISMO, DIREITO CIVIL E ESCRAVIDÃO NO ENLACE DA MODERNIDADE E SUAS CONSEQUÊNCIAS PARA SE PENSAR O CONCEITO JURÍDICO DE PROPRIEDADE Em primeiro plano, compreender a relação entre liberalismo e Direito pressupõe tomar a modernidade como conexão entre ambos. A modernidade pode ser definida como um tempo de transição para o modo de produção capitalista, que foi acompanhado de um ciclo de revoluções. Essa passagem é marcada por uma ruptura de valores e visões de mundo, o que também significou outras formas de se pensar o Direito e a estruturação do Estado moderno. Conceitos como liberdade, propriedade e escravidão não tinham o mesmo conteúdo no processo histórico antes da modernidade. O período colonial foi caracterizado pelo Antigo Regime e pela sujeição à metrópole; e depois tivemos a ascensão dos Estados nacionais e do liberalismo, pela inserção das economias escravistas na economia-mundo dominantemente capitalista.687 A partir de um novo modelo de sociabilidade, é na modernidade que se construíram as formas contemporâneas da sociedade capitalista, inclusa a forma jurídica. É no mundo moderno que a liberdade individual passa a ser elemento central da vida política, junto com os conceitos de autonomia e vontade. Afinal, a troca mercantil depende da autonomia da vontade entre os sujeitos,688 e as ideias de liberdade e igualdade precisam sofrer uma universalização para possibilitar o funcionamento da economia nas bases do capitalismo. Isso significa que o capitalismo depende de algumas relações para a sua reprodução e determinadas formas fazem parte de sua sociabilidade, dentre elas, a forma 687 SALLES, Ricardo H. A segunda escravidão e o debate sobre a relação entre capitalismo e escravidão. Ensaio de historiografia. In: MUAZE, Mariana; SALLES, Ricardo H. [orgs.]. A segunda escravidão e o império do Brasil em perspectiva histórica. São Leopoldo: Casa Leiria, 2020. Disponível em: http://www.casaleiria.com.br/acervo/historia/muazesalles/asegundaescravidao/26/. Acesso em: 4 mai. 2022, p. 32-33. 688 VELLOZO, Júlio César de Oliveira. Direito Civil e Escravidão. Instituto Luiz Gama. Out. 2018. Disponível em: http://luizgamaeducacional.com.br/gerenciar-curso/direito-civil-e-escravidao/. Acesso em: 7 mar. 2022. 226 Estado e a forma jurídica.689 Como um dos lugares comuns da prática jurídico-política moderna e contemporânea, o liberalismo permanece como uma expressão vaga e ambígua, apresentando um caráter concomitantemente descritivo/informativo e emotivo/persuasivo. Isto é, se de um lado “liberalismo” implica uma forma específica de organização do Estado, de outro, palavras adquirem diferente sentidos de acordo com as circunstâncias em que são empregadas e, em consequência, os seus significados são determinados por funcionalidades intencionais a serviço de grupos políticos, fazendo transparecer um grande potencial de uso retórico.690 Há um viés persuasivo em palavras como “liberdade” e “igualdade”, que se colocam em uma aparência meramente descritiva, mas possibilitam a defesa de valores abstratos por aqueles que as evocam. Como recursos ou expedientes retóricos, elas não trazem como característica o potencial de indagação acerca de uma realidade, mas acompanham predeterminações ideológicas mascaradas como dados inquestionáveis acerca do mundo. A força desses expedientes retóricos e a ênfase na noção de liberdade tutelada por lei tornam o liberalismo um dos estereótipos jurídico-políticos mais expressivos no mundo moderno e contemporâneo. Ligado a conflitos de interesse e lutas pelo poder, estereótipo é, conforme Faria, um termo que remete às aparências descritivas que manipulam e escondem intenções, possibilitando que os governantes conquistem a adesão dos governados. Como o Estado moderno monopoliza a produção do Direito, fazendo-se valer de instrumentos políticos para a manutenção de um padrão específico de dominação, ocorre uma alienação cognoscível entre os “cidadãos” formalmente “iguais”: estes são levados a acreditar em uma ordem legal harmoniosa, na qual os conflitos são dissimulados e “resolvidos” pela força retórica das normas.691 A ideia de liberdade formal e a institucionalização do poder em um sistema de regras impessoais e genéricas permite que esse poder regule as formas de convivência e garanta a sua conservação. Nesse sentido, a economia se transforma em uma questão eminentemente privada e o Direito se torna predominantemente Direito Civil, 689 ALMEIDA, Silvio Luiz de. Neoconservadorismo e liberalismo. In: SOLANO, Ester [ed.]. O ódio como política: a reinvenção das direitas no Brasil. Posição 358-457. São Paulo: Boitempo Editorial, 2018. E- book Amazon, posição 358. 690 FARIA, José Eduardo. Ideologia e função do modelo liberal de direito e estado. Lua Nova Revista de Cultura e Política [online], n. 14, p. 82-92, jun. 1988. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0102- 64451988000100008. Acesso em: 12 abr. 2022, p. 82-83. 691 Ibid., p. 83. 227 consagrando os princípios jurídicos basilares ao desenvolvimento capitalista, nos quais se inclui a autonomia da vontade. Agindo como instância mediadora entre o político e o econômico no âmbito das formações sociais capitalistas, que vêm acompanhadas de contradições, o princípio da legalidade se coloca como elemento básico do Estado liberal. É ele que, em seu caráter “negativo”, traz por meio do “Estado de Direito” a noção de garantia individual. A legalidade e a garantia individual se colocam então como instrumentos retóricos que asseguram as condições de reprodução dos padrões dominantes, ocultando esse papel através de uma pretensa autonomia e exterioridade do Direito.692 Como fenômeno moderno, o Direito Civil vai se ancorar na prática da escravidão. De maneira objetiva, é possível afirmar que falar de modernidade é falar de escravidão, que também se apresenta como elemento constitutivo da vida social, econômica e jurídica do mundo contemporâneo. Nesse sentido, há todo um aparato jurídico formado para sustentar a escravidão e é dentro desse aparato que se encontra o liberalismo. O Direito Civil em suas bases epistemológicas, conforme Vellozo,693 vai unir elementos da filosofia alemã do século XIX com o romantismo e o racionalismo francês, para tratar de consciência de vontade e autonomia da vontade. As ideias de autonomia da vontade, subjetividade e propriedade não existiam antes do direito moderno, e no Direito antigo a escravidão não apresentava o status de propriedade, com delimitação racial. Assim, consciência, vontade e autonomia são no Direito Civil moderno elementos constitutivos para se falar da propriedade. Ela não é apenas de bens, mas de indivíduos, operando como uma relação jurídica, um direito fundamental. Outrossim, o Direito Civil moderno vai conceituar a propriedade como base da vontade livre e autônoma, e na modernidade será construída a ideia capitalista de propriedade, que possui significado jurídico. A modernização dos institutos jurídicos tradicionais vai culminar na noção de sujeito, como proprietário de si mesmo, dotado de consciência, vontade e possuidor de autonomia da vontade.694 Sem a união dessas 692 FARIA, José Eduardo. Ideologia e função do modelo liberal de direito e estado. Lua Nova Revista de Cultura e Política [online], n. 14, p. 82-92, jun. 1988. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0102- 64451988000100008. Acesso em: 12 abr. 2022, p. 85. 693 VELLOZO, Júlio César de Oliveira. Direito Civil e Escravidão. Instituto Luiz Gama. Out. 2018. Disponível em: http://luizgamaeducacional.com.br/gerenciar-curso/direito-civil-e-escravidao/. Acesso em: 7 mar. 2022. 694 FLORIM, Bruna Galli da Silva Prado. A formação do Direito Civil a partir da escravidão. Revista Pensamento Jurídico, São Paulo, v. 14, n. 2, p. 1-22, jul./dez. 2019. Disponível em: https://fadisp.com.br/revista/ojs/index.php/pensamentojuridico/article/view/188. Acesso em: 1 jun. 2022, p. 9. 228 características, não se podia falar que alguém era livre, ou mesmo que se encaixava no conceito de pessoa. Ser senhor da própria vontade e dos seus bens (coisas e indivíduos tomados como coisas) era ser proprietário. Para ser proprietário era necessário ser livre, podendo assim se realizar troca de bens com outros iguais proprietários. A troca mercantil depende da autonomia da vontade e das ideias de liberdade e igualdade. Em um mundo com seus alicerces fundados na força, a vontade se torna um elemento residual na relação dos poucos que são excepcionalmente livres. O Direito Civil moderno teve seus pilares estabelecidos justamente no liberalismo, de maneira que a liberdade se tornou a possibilidade de estabelecer relações com outros indivíduos que possuem autonomia da vontade e que podem se apropriar de coisas e reivindicar sua condição de proprietários. A liberdade estava, assim, atrelada à tutela dos direitos de propriedade sobre os escravos. Em sentido amplo, a ideia de pessoa se dava a partir do domínio sobre as coisas, isto é, deter, gozar e dispor de sua propriedade sem impedimentos — à exceção das limitações ditadas pela ordem pública — e sem a interferência do Estado,695 a não ser para garantir que os contratos entre as partes fossem cumpridos. Trata-se aqui de se autodeterminar conforme a sua razão e vontade. O liberalismo promete a garantia individual por meio de um arranjo que tenha o Estado de um lado e a sociedade de outro. Vemos isso pelas próprias ficções do estado de natureza e da sociedade civil, de modo que a figura do contratado está na base. Em resumo, ser livre, de acordo com a configuração liberal, é poder estabelecer relações contratuais com outros indivíduos livres. A liberdade não está na possibilidade de intervir no governo, mas tem lugar no mercado, onde as trocas mercantis se estabelecem pelos indivíduos dotados de vontade, que podem se autodeterminar. O Estado é, portanto, necessário para garantir o cumprimento dos contratos e intervém na sociedade civil para tanto. Com a abertura dos mercados e estabelecimento do circuito internacional de trocas mercantis a partir das práticas coloniais, o tráfico de escravizados operou como elemento fundamental para a sua formação. O tráfico se colocou como elemento crucial exigindo um aperfeiçoamento do Direito e a instituição da impessoalidade nas relações de troca. Generalizando-se as relações econômicas, o mesmo processo ocorreu com as relações 695 FLORIM, Bruna Galli da Silva Prado. A formação do Direito Civil a partir da escravidão. Revista Pensamento Jurídico, São Paulo, v. 14, n. 2, p. 1-22, jul./dez. 2019. Disponível em: https://fadisp.com.br/revista/ojs/index.php/pensamentojuridico/article/view/188. Acesso em: 1 jun. 2022, p. 1-8. 229 jurídicas, exigindo construções teóricas para munir os juristas frente ao processo de troca, garantindo a sua continuidade. O Direito, assim, generaliza as relações econômicas, utilizando-as como substrato da forma jurídica.696 A chamada “segunda escravidão”697 do Novo Mundo, que teve lugar a partir de 1790, aproximadamente, está relacionada ao aumento da escravidão nas plantations dos Estados Unidos, Cuba e Brasil (entre 1820 e 1860) e representa um fenômeno relevante, com algumas características distintivas.698 A exploração açucareira e mineira na América Latina teve um significado particular para a burguesia europeia, que se encontrava em pleno mercantilismo. Quer dizer, o aumento na circulação de mercadorias foi traduzido em “progresso” e a colonização do Novo Mundo funcionou como condutor de expansão da rede comercial europeia.699 Passou-se a ter um regime escravista de viés mais autônomo, duradouro e “produtivo” em termos de mercado, que foi capaz de suportar a ofensiva da Era das Revoluções, propiciando o atendimento da crescente demanda de produtos das plantations. Em grande parte, a segunda escravidão foi “pós-colonial”, de maneira que os senhores de escravos tinham uma relação mais direta com o poder.700 Logo, a segunda escravidão serviu para suprir os mercados mais amplos e precisava de um Estado que a apoiasse, sem supervisioná-la. Apresentava-se forte centralização nas fazendas e plantations, em alguns aspectos sendo mais moderna e produtiva, mas certamente não era mais humanizada. Estava ligada à aceleração do capitalismo industrial e possuía um caráter mais intensamente racial do que seu antecessor colonial, em especial no que toca o status das pessoas de cor livres.701 696 VELLOZO, Júlio César de Oliveira. Direito Civil e Escravidão. Instituto Luiz Gama. Out. 2018. Disponível em: http://luizgamaeducacional.com.br/gerenciar-curso/direito-civil-e-escravidao/. Acesso em: 7 mar. 2022. 697 A denominada “segunda escravidão” é sustentada por Dale Tomich, historiador norte-americano, no artigo Rethinking the Nineteenth Century: Movements and Contradictions (1988), inserido depois em livro publicado em 2004. O conceito tem ganhado aceitação entre historiadores da escravidão afro- americana do século XIX, principalmente nos Estados Unidos e no Brasil. Em poucas palavras, o autor indica especificidades histórico-estruturais da escravidão afro-americana próprias do Sul dos Estados Unidos, do Brasil (em especial, no Vale do Paraíba) e de Cuba no século XIX. In: SALLES, Ricardo H. A segunda escravidão e o debate sobre a relação entre capitalismo e escravidão. Ensaio de historiografia. In: MUAZE, Mariana; SALLES, Ricardo H. [orgs.]. A segunda escravidão e o império do Brasil em perspectiva histórica. São Leopoldo: Casa Leiria, 2020. Disponível em: http://www.casaleiria.com.br/acervo/historia/muazesalles/asegundaescravidao/26/. Acesso em: 4 mai. 2022, p. 33. 698 BLACKBURN, Robin. Por que segunda escravidão? In: MARQUESE, Rafael; SALLES, Ricardo H. [orgs.]. Escravidão e capitalismo histórico no século XIX: Cuba, Brasil e Estados Unidos. 1. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016. Disponível em: https://statics- submarino.b2w.io/sherlock/books/firstChapter/128005716.pdf. Acesso em: 4 mai. 2022, p. 16-17. 699 BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 18. 700 BLACKBURN, op. cit., p. 16-17. 701 Ibid., p. 16-19. 230 O liberalismo, no âmbito do circuito de trocas mercantis, está vinculado ao colonialismo e à escravidão, esta não como antítese do capitalismo,702 mas como maneira de realizar a abertura dos mercados através do tráfico. O Direito vai delimitar quem são os proprietários, livres e iguais, exercendo papel essencial na separação de raças que se encontram nessa categoria e que podem ou não ser consideradas como pertencentes ao campo da humanidade. É necessário ter em vista que o Direito brasileiro que se desenvolveu a partir da Independência nasceu atrelado com o liberalismo trazido ao continente, com ele confundindo-se. Dadas as relações políticas e econômicas que se estabeleciam para a nova ordem do capital, o aparecimento do liberalismo no Brasil era inevitável. Através da positivação da igualdade e da liberdade pelo Estado liberal, os negros e negras africanos não faziam parte desse grupo e sequer eram considerados pessoas, sendo tomados como desprovidos de vontade, autonomia e consciência. Em última instância, ser livre era ter um escravo, principal mercadoria do século XIX; ser dono, proprietário de si e de outrem. A sociedade brasileira oitocentista é, assim, articulada contra os escravos, não através de uma justificação moral, mas a partir de questões políticas e econômicas a respeito do status de uma pessoa, relacionado à possibilidade de aquisição de algo que a sociedade tomava como importante, o escravo.703 Tínhamos, assim, um movimento no qual o país se inseria (e precisava se inserir) para fazer parte do circuito de trocas mercantis. Por isso falamos que o aparecimento do liberalismo no Brasil era forçoso e, apesar de ter chegado com a Corte portuguesa em 1808, adquiriu maior relevo com o processo de Independência. A promessa emancipatória das nações modernas foi relevante para a sua absorção, que em um primeiro nível aconteceu para essa meta, dissipando-se e assumindo, principalmente no Segundo Reinado, uma versão própria, “adaptada” à localidade. A utilização dessas ideias generalizantes e universalizantes para a consecução dos interesses das elites remete ao experiente retórico que compõe o aparato liberal. A abertura dos canais marítimos e a comunicação, principalmente através de jornais e cartas, com o outro lado do continente foram categóricas para que essa absorção ocorresse em 702 VELLOZO, Júlio César de Oliveira. Direito Civil e Escravidão. Instituto Luiz Gama. Out. 2018. Disponível em: http://luizgamaeducacional.com.br/gerenciar-curso/direito-civil-e-escravidao/. Acesso em: 7 mar. 2022. 703 VELLOZO, Júlio César de Oliveira. Direito Civil e Escravidão. Instituto Luiz Gama. Out. 2018. Disponível em: http://luizgamaeducacional.com.br/gerenciar-curso/direito-civil-e-escravidao/. Acesso em: 7 mar. 2022. 231 um nível ideológico e fosse instrumentalizada para os interesses dos grupos dominantes. Tal como afirma Roberto Schwarz, “Aí a novidade: adotadas as idéias e razões européias, elas podiam servir e muitas vezes serviram de justificação, nominalmente ‘objetiva’, para o momento de arbítrio que é da natureza do favor. Sem prejuízo de existir, o antagonismo se desfaz em fumaça [...]”.704 Essa frase de Schwarz ilustra a maneira como as relações eram constituídas e como o uso das ideias liberais era propício à organização e reprodução de uma hierarquia social chancelada e legalizada pelo Direito. A legalidade é importante na medida em que se coloca também como recurso retórico, provendo a noção de garantia individual, ao mesmo tempo que é posicionada em um patamar no qual não cabe à população a intervenção direta nos assuntos públicos do Estado. A liberdade e a garantia individual estão no espaço privado, no mercado e podem existir desde que não atentem contra a legalidade, que estejam dentro dos limites da lei. Caso contrário, é executada a intervenção estatal, que pode fazer uso da violência para tanto. Dessa forma, a legalidade e o respeito aos procedimentos e formas é que definem as regras do jogo e que operam como fórmula legitimadora do sistema liberal. Até hoje os chamados princípios gerais de Direito do liberalismo jurídico conferem às sociedades de classe mecanismos que sustentam seus valores básicos. Um problema enfrentado é a ambiguidade entre o law in book e o law in action, ou seja, como transpor dificuldades para que o processo de legitimação legal-racional forjado pelo liberalismo possa seguir cumprindo seu papel ideológico e retórico em contextos políticos complexos.705 Essa relação com o formalismo e o conceito de legalidade, junto com os movimentos que se desdobraram no Atlântico, explicam por que muitas vezes liberalismo e constitucionalismo eram vistos, de início, como equivalentes. Isso aconteceu no Brasil, e as ideias estrangeiras, mormente as europeias, eram utilizadas como argumentos de autoridade e teorias para embasar o Direito que se formava. Entrando nessa lógica, o Brasil, na qualidade de colônia e depois ex-colônia, evidentemente apresentava uma falta de sincronia com os países “centrais”, o que contribuiu para a noção de um atraso ou descompasso de ideias. 704 SCHWARZ, Roberto [org.]. Ao vencedor as batatas. São Paulo: Duas Cidades, 2000 [1992], p. 18-19. 705 FARIA, José Eduardo. Ideologia e função do modelo liberal de direito e estado. Lua Nova Revista de Cultura e Política [online], n. 14, p. 82-92, jun. 1988. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0102- 64451988000100008. Acesso em: 12 abr. 2022, p. 90-91. 232 A disparidade entre as realidades tornou-se ainda mais significativa quando o liberalismo brasileiro assumiu um caráter estamental e depois expressivamente oligárquico. Considerando que não passamos pelo feudalismo, mas tinha-se uma estrutura de mando local dos senhores de terras e escravos, essa estrutura contribuiu para que o liberalismo, com seus expedientes retóricos, fosse a ideologia das oligarquias. Também não tivemos uma revolução burguesa no sentido conhecido em outros países e a formação de uma sociedade civil foi posterior à instituição do Estado brasileiro independente. Nesse sentido, o liberalismo tornou-se uma arma ideológica das elites brasileiras, que rotulavam os problemas enfrentados pela Política e pela Economia como sintomas do “atraso” em relação às nações centrais, utilizando as ideias liberais sob a argumentação de colocar o Brasil no status das nações “civilizadas”. Em sua abstração e generalização, elas traziam promessas dentro de conceitos abertos, ao passo que possibilitavam a mobilização dos instrumentos jurídicos disponíveis para o controle ideológico das massas. Segundo Viotti: [...] As elites brasileiras não podiam ignorar que o liberalismo nada tinha a ver com a realidade vivida por milhões de brasileiros. Mas atribuíam essa deficiência ao atraso. Imaginavam que nos países “civilizados” as práticas liberais seguiam de perto a teoria. Enquanto na França e na Inglaterra os liberais que se sentiram ameaçados pelas reivindicações populares começavam a criticar o liberalismo, e alguns até mesmo chegaram a pôr em dúvida a sua eficácia, no Brasil, o liberalismo continuava a funcionar como utopia, uma promessa a ser cumprida. Apontava-se para a distância entre o país real e a teoria liberal, criticava-se a sua prática, mas não suas premissas. Foi a esperança de que a promessa poderia ser cumprida que nos anos 70 inspirou a crítica às instituições, crítica essa que expressava uma crença ingênua na capacidade redentora do progresso, da ciência e das reformas institucionais.706 O Direito brasileiro foi arquitetado com o liberalismo, apropriando-se de muitas características dessa ideologia em um nível profundo. A escravidão convivia com o liberalismo em muitos lugares no mundo: a própria Inglaterra admitia e depois fazia vista grossa ao instituto, desde que não poluísse o ar e o espírito livre da nação inglesa, ou seja, desde que fora do seu território. A Inglaterra do século XVIII apoiou-se sobre essa delimitação, da comunidade dos livres, a qual passou a ter um recorte territorial e étnico, transformando-se em delimitação racial, ou seja, separando as raças dos livres e dos escravos. E o triunfo dessa 706 COSTA, Emília Viotti da. Da Monarquia à República: momentos decisivos. 6. ed. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1999, p. 166. 233 divisão foi a sua permanente e indissociável influência sobre a condição das pessoas negras. Mesmo com a liberdade, a posição dos negros e negras livres encontrou obstáculos que tornaram instransponível a linha da cor.707 Como a Inglaterra, que era tão orgulhosa da liberdade de seus cidadãos, produziu colônias nas quais havia, de maneira expressiva, pessoas virtualmente privadas de qualquer liberdade, oportunidades e controle sobre a própria vida? Nesse âmbito, o racismo surgiu como elemento essencial do paradoxo liberdade-escravidão.708 Nos debates da Inglaterra revolucionária, a palavra propriedade em termos jurídicos e no sentido econômico-produtivo era comumente utilizada.709 O indivíduo passou a ser considerado livre na medida em que era proprietário de sua pessoa e de suas capacidades: se a ideia de ser livre era estar isento da dependência de vontades alheias, a liberdade passou a existir como exercício da posse. A sociedade, por sua vez, passou a ser vista como o conjunto de indivíduos livres e iguais entre si — proprietários de suas capacidades —, ou seja, como a troca entre proprietários. Politicamente, a sociedade tornou-se artifício para a proteção da propriedade e do relacionamento de trocas.710 A proeminência do ideário liberal significou também a afirmação de um conceito de liberdade, desacreditando concepções a ela contemporâneas, como a neorromana, que continuou, contudo, a ser um espinho para os governos contratualistas e patriarcais até o século XVIII. Veja-se que quando a Inglaterra se proclamou oficialmente “uma Comunidade e Estado Livre” no século XVII, a teoria neorromana estava no cerne da propaganda posta em uso pelo governo e trazia como significado o estabelecimento de um estado de liberdade, após o regicídio de Carlos I, em 1649.711 Logo, tráfico e a escravidão foram as principais ferramentas para sustentar o Estado recém-independente, inseri-lo no circuito de trocas e possibilitar que as elites agrárias, dotadas de recursos políticos e econômicos, contribuíssem nessa relação de um lado, mantendo seus interesses protegidos de outro. Nesse ponto de vista, com a mudança da Idade Medieval para a Idade Moderna, era necessária uma justificativa que andasse 707 CASTELLS, Manuel. Ruptura. A crise da Democracia Liberal. Zahar, 2018. E-book Amazon, p. 70-74. 708 MORGAN, Edmund Sears. Escravidão e liberdade: o paradoxo americano. Estudos Avançados, São Paulo, v. 14, n. 38, p. 121-150, abr. 2000. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103- 40142000000100007&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 15 fev. 2021, p. 123. 709 CASTELLS, Manuel. Ruptura. A crise da Democracia Liberal. Zahar, 2018. E-book Amazon, p. 14. 710 MACPHERSON, Crawford Brough. A teoria política do individualismo possessivo de Hobbes até Locke. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, p. 15. 711 SKINNER, Quentin. Liberdade antes do Liberalismo. Tradução: Raul Fiker. São Paulo: Editora UNESP (UNESP/Cambridge), 1999, p. 25-26. 234 em conjunto com todas essas mudanças que ocorriam. A escravidão de recorte racial possibilitava estabelecer uma hierarquia suficiente para alimentar o sistema, com a exploração e acúmulo de recursos. O Direito, assim, como mecanismo de controle, cumpria sua função mais perversa, viabilizando a retórica liberal, conferindo garantias jurídicas aos proprietários livres e iguais entre si e intervindo no descumprimento de contratos, para a defesa do direito de propriedade. Com uma nova roupagem e a escravidão como motor da nova ordem, mantinham- se estruturas econômicas voltadas à sobrevivência de um sistema de clientela e patronagem. Para o liberalismo, interessa a conservação da liberdade, sendo ela privada, como capacidade de seu autodeterminar, realizando trocas mercantis. É exatamente por isso que o Direito Civil vai cuidar do assunto da liberdade. Portanto, o princípio da liberdade está vinculado ao poder de escolha ou autonomia e à vontade, cabíveis ao sujeito capaz de se autodeterminar (pessoa) para livremente administrar e fruir de seus bens. A formação da pessoa estava, assim, relacionada à propriedade como conceito central na codificação liberal. O patrimônio era o domínio sobre os bens, protegido na esfera particular, fazendo parte da ideia de pessoa. A igualdade, por sua vez, cumpria o papel de colocar em nível de paridade as pessoas, sujeitos de direitos e proprietários, para que realizassem contratos. Os escravos não integravam a sociedade igualitária pois não eram proprietários e sim propriedades, de tal sorte que no cerne da modernidade eram os escravos a propriedade mais importante. Assim sendo, o Direito Civil precisou tratar da escravidão.712 Em se tratando do caso brasileiro, assim como elucida Alfredo Bosi: A linguagem do escravismo, dura e pragmática, honrava-se com o nome então sagrado de liberal. O adjetivo, posto naquele contexto, não era de todo impróprio nem paradoxal na medida em que recobria os princípios do livre comércio e da não-ingerência do Estado na órbita da produção.713 O liberalismo consolidou a propriedade como um valor sagrado. Essa ideia foi abraçada pela Constituição brasileira de 1824 e pelo Direito composto no pós- Independência. Como direito inviolável, concernente aos sujeitos de direito, não cabia ao Estado tomá-lo como matéria de direito público, de modo que foi o Direito Civil que ficou encarregado da questão. Como mais importante bem e indicador de status econômico e 712 FLORIM, Bruna Galli da Silva Prado. A formação do Direito Civil a partir da escravidão. Revista Pensamento Jurídico, São Paulo, v. 14, n. 2, p. 1-22, jul./dez. 2019. Disponível em: https://fadisp.com.br/revista/ojs/index.php/pensamentojuridico/article/view/188. Acesso em: 1 jun. 2022, p. 8. 713 BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 379. 235 social, o escravo e a escravidão normalizada estão presentes no cotidiano, sendo assim elemento de atenção do Direito. Passamos a verificar, em seguida, como se dava esse tratamento pelo Direito Civil Brasileiro e quais os reflexos disso para a apreensão do liberalismo. 5.2 DIREITO CIVIL E ESCRAVIDÃO NO BRASIL: LIBERDADE PRIVADA E INSEGURANÇA JURÍDICA Para o liberalismo, a ideia de liberdade não acontece na possibilidade de interferir no governo, mas tem espaço no mercado, onde se estabelecem as relações de troca entre os indivíduos portadores de vontade e autonomia. Na modernidade, o Direito Civil que se forma não pode ser separado da noção de propriedade. Assim, liberalismo, escravidão e Direito Civil apresentam um vínculo íntimo na modernidade, de forma que, como tangenciado no capítulo anterior, esse ramo do Direito vai conferir aos escravos o tratamento de coisa, propriedade, e é essa percepção que vai preponderar ao longo do século XIX no Brasil. Ainda que o Direito Penal, por exemplo, deixasse transparecer de maneira mais evidente a incongruência do tratamento da pessoa como coisa e trouxesse alguns vislumbres — ainda que distantes e voltados à finalidade de punição — de uma ideia remota de personalidade ao falar dos escravos, o Direito Civil, partindo da concepção liberal do conceito de liberdade, os travava como bens a serem transacionados, herdados e legados. Cabia às coisas um escopo jurídico diferente do tratamento dado às pessoas. Por vezes os escravos eram tomados como bens semoventes, ou seja, bens que se moviam por força motora própria, sendo equiparados, no caso, aos animais. Apenas com as mudanças sociais e do pensamento jurídico-político brasileiro na década de 1870, junto com a ascensão e organização dos movimentos abolicionistas e do estouro de insurreições escravas, é que contestações mais profundas dariam margem à ruptura do fim do século. Neste tópico, não temos a intenção de remontar às bases epistemológicas do Direito Civil, mas apenas de explicar como a escravidão era tratada nesse cerne, como assunto privado no Brasil e quais as implicações disso para se falar em liberalismo. Como vimos, a temática não teve destaque nas normas constitucionais, que sequer faziam menção aos escravos ou à escravidão, apenas institucionalizando a categoria dos libertos. Foi no Direito Civil que muitos dos mecanismos de cooptação da escravidão se mostraram 236 presentes, e que se concretizou essa visão peculiar da liberdade. Talvez nesse ramo tenhamos um dos exemplos mais palatáveis de como os instrumentos retóricos do liberalismo operaram para difundir e manter o instituto, conservando a questão ideologicamente afastada dos “assuntos públicos”. A propriedade escrava e o tráfico foram os fundamentos da economia que se montou no Brasil oitocentista e, portanto, toda história do Direito Civil, desde o Código Comercial de 1850, foi se constituindo em torno da propriedade escrava e tem relação direta com a forma de organização do trabalho no Brasil. Através do Direito Civil é possível apreender como o Direito brasileiro não era exatamente silente sobre escravidão (ainda que as normas positivadas o tenham sido por muito tempo quanto à pauta emancipatória), pelo contrário, tinha-se um sistema sofisticado que acabava contribuindo para a situação precária caracterizada pela insegurança jurídica dos escravos. Não era incomum que casos muitos semelhantes fossem decididos de maneira bastante diferente pelos julgadores.714 Essa lógica pode ser interpretada como um desdobramento do pacto dos amplos setores sociais contra os escravos, pois apesar do fato de que existiam normas aplicáveis a estes, elas ficavam sujeitas à perspicácia, e por vezes ao arbítrio, do julgador, mas sem se desvencilhar de um formalismo retórico, que transparecia uma falsa aparência de legitimidade e de respaldo legal. Falamos em aparência, pois os instrumentos liberais se faziam valer de expedientes retóricos, incluindo a ideia de liberdade, na tentativa de legitimação da prática jurídico-política. Pela lei, o tráfico já deveria ter sido extinto desde 1831, e perdurava a promessa da emancipação. Com o advento da Independência, era necessário dar o próximo passo para a formação da ordem jurídica nacional. A Constituição de 1824 trouxe os fundamentos dessa nova ordem, mas não revogou automaticamente as normas a ela anteriores e a Constituinte de 1823 havia determinado a recepção da legislação portuguesa elaborada até o evento da Independência. Segundo Apostolova,715 a Constituinte fez uma escolha política ao recepcionar o direito português no país, considerando que os seus representantes estavam cientes de que 714 VELLOZO, Júlio César de Oliveira. Direito Civil e Escravidão. Instituto Luiz Gama. Out. 2018. Disponível em: http://luizgamaeducacional.com.br/gerenciar-curso/direito-civil-e-escravidao/. Acesso em: 7 mar. 2022. 715 APOSTOLOVA, Bistra Stefanova. O debate sobre a fundação dos cursos jurídicos no Brasil (1823- 1827). Uma reavaliação. Varia Historia [online], v. 33, n. 62, p. 419-458, 2017. Disponível em: https://doi.org/10.1590/0104-87752017000200007. Acesso em: 1 jun. 2022, p. 435 e 449. 237 se tratava de uma legislação elaborada no Antigo Regime,716 pelos monarcas portugueses, e que refletia as relações sociais e políticas da época. Interessante notar que ocorreu então um “diálogo” com o legado jurídico português, enquanto as novas normas (brasileiras) eram conjuntamente aplicadas. Por sua vez, leis portuguesas determinavam que a absorção do direito romano deveria ocorrer em obediência à “boa razão” e não de forma automática. Essa determinação acerca do direito romano provinha da Lei Máxima de 18 de agosto de 1769, mais conhecida por “Lei da Boa Razão”,717 nome conferido pelo jurista e político português José Homem Correia Telles,718 que publicou comentário à mencionada lei em 1824 e dizia ter a norma refugiado as leis romanas que em boa razão fossem fundadas. Logo, além das normas brasileiras que surgiam sobre o escravismo e a herança das ordenações portuguesas, tinha-se o direito romano. Remontando ao papel da codificação, podemos dizer que uma de suas principais funções é simplificar e concentrar as normas de determinado segmento. Assim, a decisão de não codificar o Direito Civil acabou tornando-o mais complexo. O julgador deveria, desse modo, ser grande conhecedor das normas do passado e do aparato jurídico brasileiro, simultaneamente. Em seu Escravidão no Brasil: ensaio histórico-jurídico-social, já esclarecia Perdigão Malheiro que quanto a este tema: [...] nossas leis são escassas e como que fugitivas a tal respeito, principalmente nas infinitas y relações civeis que ligão os escravos e os senhores entre si e com terceiros, nas questões cardeaes de estado de liberdade ou escravidão, e em tantas outras que emergem constantemente.719 716 Isso se deu através da Lei de 20 de outubro de 1823, aprovada pela Constituinte, que declarava permanecer em vigor a legislação pela qual o Brasil se regia até 25 de Abril de 1821, assim com as leis promulgadas por D. Pedro na qualidade de Regente e Imperador, bem como demais decretos das Cortes Portuguesas especificados. In: BRASIL. Lei de 20 de outubro de 1823. Declara em vigor a legislação pela qual se regia o Brazil até 25 de Abril de 1821 e bem assim as leis promulgadas pelo Senhor D. Pedro, como Regente e Imperador daquella data em diante, e os decretos das Cortes Portuguezas que são especificados. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/LIM....-20-10- 1823.htm#:~:text=LEI%20DE%2020%20DE%20OUTUBRO,Cortes%20Portuguezas%20que%20s% C3%A3o%20especificados. Acesso em: 1 mai. 2022. 717 POLLIG, João Victor. A transformação do direito no mundo moderno: um estudo analítico sobre a Lei da Boa Razão (1769). Fronteiras & Debates, Macapá, v. 4, n. 1, jan./jun. 2017. Disponível em: https://periodicos.unifap.br/index.php/fronteiras. Acesso em: 1 jun. 2022, p. 133. 718 TELLES, José Homem Correia. Commentario critico à Lei da Boa Razão. Lisboa: Typografia de M. P. de Lacerda, 1824, p. 2. 719 MALHEIRO, Agostinho Marques Perdigão. A Escravidão no Brasil: ensaio histórico-jurídico-social. Parte I. Jurídica. Direito sobre os escravos e libertos. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1866. Biblioteca Digital do Senado Federal. Disponível em: http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/174437. Acesso em 30 abr. 2022, p. 1. 238 Como colocado por Malheiro, as leis eram escassas e evasivas sobre os escravos, sua situação de liberdade e relação com os senhores, o que era tratado fugitivamente pelas normas cíveis. Chegaram a ocorrer tentativas de se elaborar um Código Civil no Brasil. O jurista Teixeira de Freitas foi contratado, em 1855, para fazer o insumo de um projeto de consolidação das leis civis. A ideia era que ele realizasse como que uma varredura desse “emaranhado” de normas, isto é, das antigas leis romanas, das leis portuguesas e brasileiras que eram utilizadas na prática judiciária do país. Três anos depois, foi apresentado o resultado de seu trabalho, contudo, o compilado de leis civis não tratava da escravidão, mas tentava propor solução diferente ao problema. Conhecido como um dos maiores jurisconsultos da época (de acordo com Nabuco de Araújo), Teixeira de Freitas procurou contornar a questão de forma peculiar.720 Quando indagado sobre sua escolha pela comissão de avaliação do Ministério da Justiça, ele justificou que a escravidão era um mal entre nós, lamentável e condenado a se extinguir em um tempo mais ou menos remoto. Sugeriu então que fosse realizado um capítulo “avulso” no cerne da reforma das leis civis, mas que elas não fossem manchadas com disposições vergonhosas que não serviriam para a posteridade, constando, assim, apenas o estado de liberdade, mas não o seu correlato “odioso”.721 O que ele enfim propôs foi que a abordagem do assunto fosse realizada à parte, unindo as leis concernentes à escravidão (que não eram muitas) em um “Código Negro”, que seria facilmente descartado mediante o fim do instituto, em uma tentativa de não consolidar as disposições que tratassem da escravidão no que estava em vistas de ser a maior lei civil do Império.722 Cumpre advertir, que não ha um só lugar do nosso texto, onde se trate de escravos. Temos, é verdade, a escravidão entre nós; mas, se esse mal é uma excepção, que lamentamos; condemnado á extinguir-se em época mais, ou manos, remota; façamos também uma excepção, um capitulo avulso, na reforma das nossas Leis Civis; não as maculemos com disposições vergonhosas, que não podem servir para a posteridade: fique o estado de liberdade sem o seu correlativo odioso. As Leis 720 PENA, Eduardo Spiller. Um romanista entre a escravidão e a liberdade. Afro-Ásia, Salvador, n. 18, p. 33-75, 1996. Disponível em: https://periodicos.ufba.br/index.php/afroasia/article/view/20900. Acesso em: 2 mai. 2022, p. 33. 721 FREITAS, Augusto Teixeira de. Consolidação das leis civis. 2 v. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2003. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/item/id/496206. Acesso em: 4 mai. 2022, p. xxxvii. 722 PENA, op. cit., p. 34. 239 concernentes á escravidão (que não são muitas) serão pois classificadas á parte, e formarão nosso Código Negro.723 De acordo com Neves, o jurista liberal procurou deslocar o problema julgado “vergonhoso” das relações escravocratas para outro diploma normativo para tentar reduzi-las a uma exceção passageira. Buscava, desse modo, afirmar a coerência liberal da consolidação de leis recorrendo a essa separação. Pretendia manter, nesse sentido, o escravismo condizente com as expectativas da sociedade mundial (em vias de ser eliminado).724 Pode-se dizer que ele visualizava como o paradoxo liberdade-escravidão se colocava como problema no Direito e no liberalismo brasileiro e que não havia solução simples para a questão. Esse é mais um dos exemplos do receio de alguns juristas e políticos, desde a outorga da Constituição de 1824, de formalizar juridicamente a feição vergonhosa do país, que legitimava a escravidão. Essa ficção, bastante engenhosa, foi depois bastante criticada por Joaquim Nabuco — que via na lei um instrumento de transformação —, já que a artimanha existia para não expor suscetibilidades. Isto é, normatizar a condição dos escravos seria o mesmo que a reconhecer como decisão jurídico-política.725 Diria posteriormente Nabuco, na obra O Abolicionismo que: Já existe, felizmente, em nosso país, uma consciência nacional - em formação, é certo - que vai introduzindo o elemento da dignidade humana em nossa legislação, e para a qual a escravidão, apesar de hereditária, é uma verdadeira mancha de Caim que o Brasil traz na fronte. Essa consciência, que está temperando a nossa alma, e há de por fim humanizá-la, resulta da mistura de duas correntes diversas: o arrependimento dos descendentes de senhores, e a afinidade de sofrimento dos herdeiros de escravos.726 O trecho acima reflete a diversidade de visões sobre a própria função do Direito e seu potencial. No caso de Teixeira de Freitas, para ele competia ao arcabouço jurídico valorizar e regular práticas que refletissem valores e tradições a serem perpetuados, 723 FREITAS, op. cit., p. xxxvii. 724 NEVES, Marcelo. Ideias em outro lugar? Constituição liberal e codificação do direito privado na virada do século XIX para o século XX no Brasil. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 30, n. 88, p. 5-27, jun. 2015. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102- 69092015000200005&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 1 jan. 2020, p. 8. 725 PENA, Eduardo Spiller. Um romanista entre a escravidão e a liberdade. Afro-Ásia, Salvador, n. 18, p. 33-75, 1996. Disponível em: https://periodicos.ufba.br/index.php/afroasia/article/view/20900. Acesso em: 2 mai. 2022, p. 34. 726 NABUCO, Joaquim. O Abolicionismo. Grandes nomes do pensamento brasileiro. São Paulo: Publifolha, 2000, p. 1. 240 conquanto para Nabuco, o campo do Direito era lugar de renovação, e através dele que as mudanças deveriam ser conduzidas. A visão de ambos sobre a escravidão também se choca pontualmente no que se refere à forma pela qual caberia ao Direito abordá-la: em Teixeira de Freitas, era um assunto à parte, que precisava ser tratado dessa maneira, ao passo que para Nabuco a escravidão tinha que ser admitida como um problema e um mal a ser revolvido pela via legal. Em uma segunda edição da obra (1865), Teixeira de Freitas reconheceu a lacuna apontada, porém, manteve a decisão de não incluir na compilação os dispositivos escravistas em seu texto principal, inserindo-os somente como adendo, através de “notas explicativas”. A opção reafirmava seu desejo inicial de classificar em separado todas as leis relacionadas com a escravidão. Ou seja, a “mácula” do nosso Código Negro estaria asilada sob pequenas e inúmeras notas de rodapé, de difícil leitura, protegendo assim o “estado de liberdade” do sistema jurídico civil brasileiro.727 A sua recusa em incluir as disposições pode também ser explicada por como o jurisconsulto entendia o ato da produção jurídica e pela sua preocupação com o formalismo, isto é, para ele não fazia sentido regular um assunto pertencente ao passado, que logo mais se dissiparia.728 A comissão de avaliação julgou, em seu relatório, sensível a omissão realizada a respeito das disposições concernentes à escravidão, já que ela deveria supostamente constituir, em decorrência de motivos políticos e de ordem pública, uma lei especial, de maneira que convinha saber qual era o estado da legislação.729 Para Teixeira de Freitas, não era a norma um instrumento de transformação social ou político, o que pode ser apreendido pelo seu grande apego ao direito romano. O Direito estava ali para consolidar práticas sociais que refletissem os costumes e tradições que uma sociedade pretendia tomar como fundamentais e a escravidão, nesse sentido, era algo a ser deixado e esquecido, não cabendo ao Direito assumir no compilado de normas civis algo que era incompatível, pelo menos a nível doutrinário-retórico, aos padrões das sociedades “civilizadas”. A atitude, desse modo, deixava menos brechas à crítica do Direito brasileiro como antiquado e apegado aos valores do Antigo Regime, ainda que de modo superficial, e projetava maior longevidade ao Código em elaboração. 727 PENA, Eduardo Spiller. Um romanista entre a escravidão e a liberdade. Afro-Ásia, Salvador, n. 18, p. 33-75, 1996. Disponível em: https://periodicos.ufba.br/index.php/afroasia/article/view/20900. Acesso em: 2 mai. 2022, p. 36-37. 728 PENA, loc. cit. 729 FREITAS, Augusto Teixeira de. Consolidação das leis civis. 2 v. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2003. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/item/id/496206. Acesso em: 4 mai. 2022, p. xxxvii, nota de rodapé nº 10. 241 Interessante notar que no esboço de codificação de Teixeira de Freitas era estabelecida a separação entre os direitos pessoais e reais (das coisas), de modo que apenas os suscetíveis de aquisição de direitos se encontravam na primeira categoria. Ademais, falava-se em capacidade jurídica, distinguindo-a da personalidade, não admitindo esta última gradações, diferentemente da capacidade de direito. Essa concepção liberal individualista define e discrimina quem é ou não pessoa, em cujo campo a capacidade jurídica se associa à visão individualista possessiva do conceito de lógica proprietária, definidor da metodologia civilista do século XIX, em relação à qual a ideia de patrimônio vai ser deduzida diretamente da personalidade.730 Para Teixeira de Freitas: Tomada a propriedade neste sentido amplo, como complexo dos direitos pessoaes—obligationes—, e dos direitos reaes— jura in re—, é objecto do que chamão os Allemaes theoria do patrimônio, ou— direitos patrimoniaes—. [...] Estes direitos patrimoniaes contrapoem-se em tal caso aos direitos pessoaes em sentido muito differente do nosso, isto é, comprenhendendo os direitos concernentes ao estado do homem, sua capacidade de obrar, adquirir e dispor ; e até os direitos políticos, que nao pertencem ao Direito Privado.731 A proposta de Teixeira de Freitas acabou sendo inutilizada para a formalização de um compilado legal, visto que a comissão de avaliação julgou que não seria propício não falar na consolidação das leis civis da escravidão, ao passo que, ao que nos parece, corroboraram com a ideia de que trazer normas específicas e direcionadas ao instituto, ou regularizá-las em um Código, seria assumir a escravidão e seus males, o que seria um problema diante da pressão inglesa para o seu fim e aos olhos das demais nações “cultas”. Evidentemente, havia também a questão do descontentamento popular e da opinião pública, que poderiam tomar a ação como alvo direto de críticas. A falta de clareza, de outro lado, dada a complicação exposta por Teixeira de Freitas, evitava reboliços, deixando espaços livres para manobras e gerando mais oportunidades para a satisfação de interesses das elites proprietárias. 730 FLORIM, Bruna Galli da Silva Prado. A formação do Direito Civil a partir da escravidão. Revista Pensamento Jurídico, São Paulo, v. 14, n. 2, p. 1-22, jul./dez. 2019. Disponível em: https://fadisp.com.br/revista/ojs/index.php/pensamentojuridico/article/view/188. Acesso em: 1 jun. 2022, p. 15-16. 731 FREITAS, Augusto Teixeira de. Consolidação das leis civis. 2 v. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2003. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/item/id/496206. Acesso em: 4 mai. 2022, p. LXX, nota de rodapé nº 73. 242 Antes da rejeição, todavia, houve um interessante episódio no cerne do Instituto da Ordem dos Advogados Brasileiros e que apresentou certa relação com o debate sobre o ventre livre. Era costume que os senhores libertassem alguns de seus escravos através da vontade testamentária. Geralmente, não era libertado número considerável de escravos ou escravas, apenas um ou dois, mas a prática era regular em testamentos, impondo por vezes a satisfação de determinada condição para tanto. A questão era recorrente nos tribunais, que recebiam uma série de ações judiciais movidas pelos escravos (através de advogados como seus curadores), pleiteando sua liberdade. Vellozo e Almeida explicam que isso se dava, principalmente, em virtude de duas razões: a primeira pode ser atribuída à chamada “economia de salvação”, isto é, daquelas medidas tomadas a partir de fundamentos religiosos para evitar que a alma fosse enviada ao inferno ou ao purgatório após a morte. E a segunda razão eram os filhos e filhas decorrentes de estupro, pois muitas vezes os senhores tinham crianças com as escravas e desejavam libertá-los. Não raro, os testamentos impunham condições para que isso acontecesse, uma espécie de indenização aos senhores. Determinavam, por exemplo, que a escrava ou escravo trabalhasse determinado tempo para a família ou herdeiro do finado. Essa liberdade acompanhada de condição era chamada de statu liber (“estado de liberdade”).732 Sobre esse “estado de liberdade” surgia a dúvida: se a escrava beneficiada pelo testamento estivesse grávida, a criança seria livre ou escrava? Como ficaria essa criança após o cumprimento da condição estabelecida em testamento? Levado um caso a conhecimento do Instituto da Ordem dos Advogados Brasileiros, o tema foi discutido em outubro de 1857, logo antes de Teixeira de Freitas entregar a sua primeira versão do compilado de leis civis. Ele se manifestou no sentido de que a criança era escrava, já que assim o seria sua mãe, antes de cumprir a condição. Para ele, não cabia recorrer aqui ao direito natural, por exemplo, mas ao fato de que as leis vigentes (isso foi antes da Lei do Ventre Livre), não tomavam esse posicionamento e ele seria contrário ao direito romano. Joaquim Nabuco e Perdigão Malheiro colocavam-se em sentido oposto.733 732 VELLOZO, Júlio César de Oliveira. Direito Civil e Escravidão. Instituto Luiz Gama. Out. 2018. Disponível em: http://luizgamaeducacional.com.br/gerenciar-curso/direito-civil-e-escravidao/. Acesso em: 7 mar. 2022. 733 PENA, Eduardo Spiller. Um romanista entre a escravidão e a liberdade. Afro-Ásia, Salvador, n. 18, p. 33-75, 1996. Disponível em: https://periodicos.ufba.br/index.php/afroasia/article/view/20900. Acesso em: 2 mai. 2022, p. 38. 243 Perdigão Malheiro afirmou que os filhos eram livres, já que as mães tinham alcançado a manumissão (concessão de alforria), de modo que a limitação desta aos serviços que deveriam ser prestados não alterava o estado de liberdade. O jurisconsulto Caetano Soares também apresentava posicionamentos que harmonizavam com essa visão, tentando conciliar o direito antigo e moderno privilegiando a liberdade e a “boa razão” para se interpretar o direito romano. Para eles, qualquer limitação à liberdade contrariava o espírito “moderno e civilizado”, o direito natural e mesmo as disposições do direito romano.734 Para Teixeira de Freitas, presidente da sessão e do Instituto naquele tempo, a legislação romana solucionava definitivamente o caso que se discutia em concreto, sobre o estado, livre ou não, de Jacinthia, criança filha da escrava Marianna, libertada no testamento de sua senhora D. Angélica, sob a condição de apresentar o seu valor em dinheiro para a herdeira à qual havia sido legada.735 Através de fragmentos de Ulpiano, Teixeira de Freitas falava de um “estado médio” entre a escravidão e a liberdade, chamado pelos romanos de statu liber (estado livre). Porém, para Teixeira de Freiras, a sua interpretação era de que esse estado seria concebido como escravo enquanto pendesse a condição. A pessoa permanecia escrava até que a condição fosse resolvida e, uma vez escrava, assim seriam seus filhos. Tudo parecia se resumir, nas decisões dos julgadores, à semântica do Português: quando a frase escrita no testamento primeiro concedia a liberdade e depois acrescentava a condição, optava-se pela liberdade. Mas quando a cláusula dos serviços era anterior à sentença que falava da liberdade, resolvia-se pela escravidão.736 A resolução do problema contou com a renúncia pública de Teixeira de Freitas à presidência do Instituto, trocando farpas com Nabuco e Perdigão Malheiro através do jornal Correio Mercantil. Depois de uma série de adiamentos, houve nova reunião dos advogados em dezembro de 1857, na qual decidiram enfim pela liberdade dos filhos da statu liber. Na votação, foi unânime a perspectiva de que quando a liberdade fosse conferida, no testamento, antes de tratar da condição, a liberdade do filho era devida. A 734 PENA, Eduardo Spiller. Um romanista entre a escravidão e a liberdade. Afro-Ásia, Salvador, n. 18, p. 33-75, 1996. Disponível em: https://periodicos.ufba.br/index.php/afroasia/article/view/20900. Acesso em: 2 mai. 2022, p. 52-54. 735 Ibid., p. 43. 736 Ibid., p. 54-55. 244 via contrária já encontrou uma votação mais acirrada, com oito votos contra sete, a favor da liberdade.737 A questão da Codificação do Direito Civil e da polêmica relacionada ao “estado de liberdade” trazem algumas percepções sobre como a propriedade escrava era concebida e tratada juridicamente no Brasil, de acordo com o pensamento liberal. Para o Direito Civil brasileiro, o escravo enquanto coisa não estava suscetível às normas destinadas aos indivíduos livres e iguais, os homens brancos de bem e cidadãos proprietários. Era perceptível que a regulamentação específica do assunto (como sugerido pela proposta de Teixeira de Freitas do “Código Negro”) ou a simplificação dela: (i) assumiria a decisão jurídica do país de manter o escravismo; (ii) facilitaria o entendimento e acesso a respaldos legais que dessem margem a ações voltadas à liberdade dos escravos; (iii) seria benéfica para garantir os interesses das elites proprietárias; e (iv) daria lugar a mecanismos de cooptação da escravidão. A ação retórica de não simplificar as normas gerava a impressão equivocada de que não havia esforço legislativo para a mantença da escravidão, possibilitando que apenas os conhecedores das leis navegassem por esse campo. De outro lado, essa última premissa também reafirmava e possibilitava alguns espaços de “respiro” para que os direitos dos escravos fossem discutidos. Relativamente à problemática do statu liber, ela reflete a expressão prática corriqueiramente reativa do Direito oitocentista e reforça a argumentação de que as elites proprietárias precisaram se flexibilizar estrategicamente, em vários momentos, para que a permanência da escravidão fosse possível. Vemos que toda a questão se apresenta com base em um costume da vida privada que, de tão recorrente, precisou de um parecer jurídico. Foi então o Direito obrigado a enfrentar o debate dessa “liberdade condicional” através do testamento, o que apresentou ganhos do lado dos escravos não repercutindo, todavia, em uma discussão ou crítica mais profunda sobre o conceito de propriedade. Ser parte da sociedade era ser proprietário, livre, com autodeterminação sobre si e seus bens, fazendo uso da sua liberdade para realizar trocas. Quando havia descumprimento contratual, o Direito Civil entrava em ação. Ter um escravo era o que diferenciava aqueles do mundo dos humanos não livres, do mundo das coisas, daqueles que não eram considerados pessoas, desprovidos de autodeterminação. Citando 737 PENA, Eduardo Spiller. Um romanista entre a escravidão e a liberdade. Afro-Ásia, Salvador, n. 18, p. 33-75, 1996. Disponível em: https://periodicos.ufba.br/index.php/afroasia/article/view/20900. Acesso em: 2 mai. 2022, p. 69-72. 245 novamente a obra de Joaquim Nabuco, apesar de ter sido publicada após os embates travados com Teixeira de Freitas, ela demonstra que, aos fins do século, seriam reavaliados os debates sobre a natureza jurídica do conceito de pessoa, o que teria como um de seus impulsos o avanço dos movimentos abolicionistas: É, com efeito, difícil hoje a um liberal ou conservador, convencido dos princípios cardeais do desenvolvimento social moderno e do direito inato - no estado de civilização - de cada homem à sua liberdade pessoal, e deve sê-lo muito mais para um republicano, fazer parte homogênea de organizações em cujo credo a mesma natureza humana pode servir para base da democracia e da escravidão, conferir a um indivíduo, ao mesmo tempo, o direito de tomar parte no governo do país e o de manter outros indivíduos - porque os comprou ou os herdou - em abjeta subserviência forçada, durante toda a vida. Conservadores constitucionais; liberais que se indignam contra o governo pessoal, republicanos, que consideram degradante o governo monárquico da Inglaterra e da Bélgica, exercitando dentro das porteiras das suas fazendas, sobre centena de entes rebaixados da dignidade de pessoa, poder maior que o de um chefe africano nos seus domínios, sem nenhuma lei escrita que o regule, nenhuma opinião que o fiscalize, discricionário, suspeitoso, irresponsável: que mais é preciso para qualificar, segundo uma frase conhecida, essa audácia com que os nossos partidos assumem os grandes nomes que usam - de estelionato político?738 Remanescia uma bipolaridade entre o direito real e pessoal, relevante para entender o que estava por trás da legislação civil, que era pautada basicamente por esses dois blocos de direitos. Teixeira de Freitas tomava os direitos pessoais como aqueles que afetavam uma ou mais pessoas e que, apenas por intermédio destas, recaíam sobre as coisas.739 Nessa visão, direitos reais e pessoais mantinham relação com a propriedade, colocando-se, contudo, em polos diferentes: da pessoa, proprietária, a quem recaíam direitos e as questões relacionadas aos seus bens, as coisas. E estas, de outro lado, pertencentes ao proprietário e colocadas ao seu dispor.740 A escravidão estava na base das relações sociais, econômicas e políticas, representando importante unidade de troca no circuito mercantil, de modo que não havia como o Direito não tratar dela, pois a instituição estava ali, como parte da vida jurídica. 738 NABUCO, Joaquim. O Abolicionismo. Grandes nomes do pensamento brasileiro. São Paulo: Publifolha, 2000, p. 7. 739 FREITAS, Augusto Teixeira de. Consolidação das leis civis. 2 v. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2003. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/item/id/496206. Acesso em: 4 mai. 2022, p. CXIV. 740 RUSSOWSKY, Iris Saraiva. Direitos pessoais e escravidão no século XIX. Revista Jurídica Luso- Brasileira, ano 2, n. 4, p. 1019-1055, 2016. Disponível em: https://www.cidp.pt/revistas/rjlb/2016/4/2016_04_1019_1055.pdf. Acesso em: 5 mai. 2022. 246 O caminho da omissão e do silenciamento, contudo, era comum, ou seja, muitas vezes o problema não era tratado em seu cerne e não havia grande uniformidade nas decisões. Seria o direito privado quem cuidaria da escravidão, não lhe cabendo lugar nas disposições constitucionais, por exemplo. Mas tinha-se algumas brechas e espaços de “respiro”, como viria a ser o caso das chamadas ações de liberdade, com relação às quais Luiz Gama e seus colegas fizeram trabalho sublime. Por meio delas os advogados, atuando como curadores dos escravos, acionavam o Poder Judiciário para pleitear sua liberdade, em casos de escravização ilegal — reescravização, inclusive. Faziam uso de normas como a Lei do tráfico, a Lei do Ventre Livre (que previa a matrícula obrigatória dos escravos) e a Lei de 1831 — ou “Lei Feijó” —, da qual se retirava o argumento do “solo livre”, visto que determinava em seu Art. 1º que os escravos que entrassem no território ou portos nacionais, vincos de fora, ficariam livres. O escravo costumava ser depositado, muitas vezes, na casa do próprio advogado,741 e forçava-se a sua venda através da justiça ou o pagamento de valor determinado pela justiça para que alcançasse a liberdade. Vale mencionar que com a proibição do tráfico, um novo aprendizado precisou ser incorporado, consistente no fato de que cresceria a intervenção do Estado imperial nas relações escravistas. E depois com a Lei do Ventre Livre, foi colocado em voga o antes inviolável direito de propriedade, assim como a exclusividade da prerrogativa senhorial acerca da liberdade do escravo. Definindo regras e procedimentos sobre o acesso à liberdade, acabaram se ampliando os espaços de negociação em prol da liberdade dos escravos.742 As ações de liberdade revelam a participação dos escravos em uma cultura legal que contribuiu para a conquista da liberdade, ainda que a produção legislativa da época não corroborasse para tanto, o que auxiliou o processo de perda de legitimação da escravidão. Apesar de consistirem em ações individuais, elas atingiram efeitos significativos quando alcançaram elevado número de pessoas em virtude da repercussão das sentenças entre os escravos, bem como advogados, juízes e juristas em geral.743 741 VELLOZO, Júlio César de Oliveira. Direito Civil e Escravidão. Instituto Luiz Gama. Out. 2018. Disponível em: http://luizgamaeducacional.com.br/gerenciar-curso/direito-civil-e-escravidao/. Acesso em: 7 mar. 2022. 742 CASSOLI, Marileide Lázara. As leis e a liberdade: senhores, escravos e práticas jurídicas. Mariana, 1850-1888. Revista Latino-Americana de História, v. 2, n. 9, p. 97-116, dez. 2013. Disponível em: https://dialnet.unirioja.es/descarga/articulo/6238494.pdf. Acesso em: 2 jun. 2022, p. 98. 743 FLORIM, Bruna Galli da Silva Prado. A formação do Direito Civil a partir da escravidão. Revista Pensamento Jurídico, São Paulo, v. 14, n. 2, p. 1-22, jul./dez. 2019. Disponível em: 247 Depois do fim do tráfico atlântico, houve um período de crescente instabilidade e insegurança jurídica para os libertos. Crescia o tráfico interno e a demanda por escravos, contando com o aumento dos preços nas vendas. Em contrapartida às ações de liberdade, tinha-se o que Grinberg chamou de “ações de escravidão”, por meio das quais os senhores entravam na Justiça para reaver ex-escravos.744 Tornava-se mais custoso e difícil a aquisição de novos escravos e escravas, de modo que a perda de escravos representava grande prejuízo econômico, além de, simbolicamente, remeter à perda do acesso ao mundo dos livres. A solução dos herdeiros, principalmente dos pequenos proprietários, quando seus ascendentes libertavam escravos através da vontade testamentária, era recorrer ao Judiciário.745 Esclarece Keila Grinberg que, pensando nas ações de liberdade que tiveram lugar no Brasil e nos Estados Unidos, é interessante notar que, com poucas exceções, os conflitos que chegavam nos tribunais versavam, no fundo, sobre o direito de propriedade e não sobre a liberdade. Juridicamente, quando se falava do direito do escravo de receber carta de alforria, discutia-se o direito de doação e a reivindicação do escravo pela compra de sua liberdade. Procurava-se legitimar uma transação comercial.746 Os acordos de liberdade ganharam força na década de 1880, tanto pelos acertos feitos através do fundo de emancipação, como pela maior flexibilidade da alforria por terceiros. Também era alimentada a perspectiva do fim da escravidão e o temor de que isso ocorresse sem indenização aos proprietários. A possibilidade de alforria acabava ficando muitas vezes à mercê da vontade senhorial, funcionando duplamente como uma oportunidade longínqua de liberdade e um mecanismo de controle pelos senhores. Por isso a importância dos processos civis movidos pelos escravos a partir de seus advogados curadores.747 Não havia segurança de condições sobre as decisões a serem tomadas no caso concreto, que não raro contavam com a possibilidade de reversão. Esse é um dos motivos https://fadisp.com.br/revista/ojs/index.php/pensamentojuridico/article/view/188. Acesso em: 1 jun. 2022, p. 10. 744 GRINBERG, Keila. Liberata: a lei da ambiguidade — as ações de liberdade da Corte de Apelação do Rio de Janeiro no século XIX. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisa Social, 2010. E-book. Disponível em: http://books.scielo.org/. Acesso em: 10 mai. 2022, p. 8-9. 745 Ibid., p. 9-10. 746 GRINBERG, Keila. Alforria, direito e direitos no Brasil e nos Estados Unidos. Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 1, n. 27, p. 63-83, 2001. Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/2130. Acesso em: 10 mai. 2022, p. 74. 747 CASSOLI, Marileide Lázara. As leis e a liberdade: senhores, escravos e práticas jurídicas. Mariana, 1850-1888. Revista Latino-Americana de História, v. 2, n. 9, p. 97-116, dez. 2013. Disponível em: https://dialnet.unirioja.es/descarga/articulo/6238494.pdf. Acesso em: 2 jun. 2022, p. 102 e 109. 248 pelos quais o liberto, ao alcançar esse estado, buscava-se afastar ao máximo do mundo dos não livres, ainda que isso significasse adquirir escravos para si. Ainda assim, essas “brechas” no sistema possibilitavam, do lado dos escravos, uma perspectiva de melhoria na situação da liberdade e na vida social, ainda que seu alcance fosse particularmente difícil. Do lado dos senhores, elas contribuíam para que os escravos remanescessem trabalhando, até alcançarem alguma perspectiva. Pois os outros caminhos possíveis além desses eram a insurreição, a fuga ou o suicídio, que não eram interessantes aos proprietários. Pensando na forma como a escravidão se desenvolveu, o Direito teve o papel de simultaneamente prolongar o poder dos proprietários sobre os seus escravos, ao passo que trazia brechas ou respiros no sistema que possibilitavam que escravos e libertos tivessem alguma perspectiva de melhoria e desafiassem, pelas vias legais, o poder dos senhores. A condição de liberto era caracterizada por uma grande fragilidade, ou seja, tinha uma vida instável, na qual remanescia o temor de que suas conquistas pudessem ser revertidas a qualquer tempo, ainda mais considerando o perigo da reescravização.748 A liberdade individual, como elemento e valor crucial para o liberalismo, tem natureza particular, cabendo o seu tratamento jurídico através do campo privado, assim sendo regulada pelo Direito Civil. Esse contexto vai despertar as noções de ir e vir, liberdade de expressão, mas também as ideias de ser proprietário e de separação entre Estado e sociedade civil. No âmbito da sociedade civil, ou seja, do mercado e das relações entre os contratantes, é que têm lugar as práticas e leis civis e, desse modo, é nesse campo que a escravidão vai ser concebida.749 Quanto ao pacto social que cria a ordem constitucional e garante liberdade individual aos sujeitos de direito, dotados de consciência, autonomia e vontade, os escravos não faziam parte dele e eram tomados como seus inimigos, visto que sequem podiam ser enquadrados no conceito de pessoa, coisas o sendo. 748 GRINBERG, Keila. Liberata: a lei da ambiguidade — as ações de liberdade da Corte de Apelação do Rio de Janeiro no século XIX. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisa Social, 2010. E-book. Disponível em: http://books.scielo.org/. Acesso em: 10 mai. 2022, p. 5. 749 FLORIM, Bruna Galli da Silva Prado. A formação do Direito Civil a partir da escravidão. Revista Pensamento Jurídico, São Paulo, v. 14, n. 2, p. 1-22, jul./dez. 2019. Disponível em: https://fadisp.com.br/revista/ojs/index.php/pensamentojuridico/article/view/188. Acesso em: 1 jun. 2022, p. 9-10. 249 5.3 LIBERTOS E OS MECANISMOS JURÍDICOS DE COOPTAÇÃO DA ESCRAVIDÃO NO BRASIL OITOCENTISTA O Direito brasileiro construído no pós-Independência fez parte da lógica de uma escravidão pós-colonial, que fomentava a expansão capitalista, sem se desvencilhar de valores e tradições do Antigo Regime, mantendo estruturas arcaicas e perpetuando-as nas relações jurídico-políticas através da patronagem, do clientelismo e do favor. Apresentamos esse cenário dizendo que o Brasil era uma das muitas engrenagens na máquina de mudanças que se desenvolveram na esfera internacional na modernidade, de tal modo que a convivência entre liberalismo e escravidão não era única e exclusiva da nossa realidade, assim como não foi a introjeção dos conceitos liberais de propriedade, liberdade e igualdade — os dois últimos pautados no primeiro. A grande particularidade do nosso contexto está no modo como a escravidão foi metabolizada, em especial, pelo Direito. Mantinha-se uma ambiguidade entre o reconhecimento gradual de direitos e a existência de instrumentos jurídicos que propiciavam o controle das massas. Nesse entremeio, existiam brechas que oportunizavam através do Direito a luta por condições menos precárias de liberdade. Dentre esses “respiros”, falamos anteriormente da discussão sobre o pecúlio dos escravos, da possibilidade (ainda que de difícil alcance) da alforria e da manumissão, da questão do statu liber e das ações de liberdade, bem como outras ações civis, nas quais os escravos e libertos reescravizados recorriam ao Poder Judiciário através de advogados como seus curadores. Todo esse escopo serve para ilustrar e exemplificar a ambivalência e a imprecisão do Direito no caso concreto para a solução de demandas envolvendo esses grupos (escravos e libertos). Preponderava a insegurança jurídica, não havendo certeza, nem do lado dos escravos nem dos senhores, sobre os resultados do acionamento da Justiça. Porém, no caso dos senhores, eles podiam sem dúvida esperar especial favorecimento. Aos fins do século cresceram esse tipo de demandas, o que foi adicionado à onda de transformações alavancada na década de 1870, com o incitamento da crença de que a escravidão estava com os dias contados e de que a Abolição era um passo necessário, em termos civilizatórios e comerciais. A escravidão foi colocada na lista de “atrasos” do país em relação às nações europeias e era preciso encontrar soluções para esse empasse. O Direito Civil exerceu um papel essencial para a manutenção da escravidão, dificultando o acesso objetivo a um aparato normativo que trouxesse disposições 250 tangíveis sobre a matéria, ao mesmo tempo que propiciava esses espaços de “respiro”, importantes para o avanço na luta por direitos, mas também utilizados para a justificativa e legitimação das ideias liberais. Afinal, se pensarmos no início do século, o Brasil era composto por uma população em boa parte escravizada, o que exigia certos instrumentos que mantivessem esses indivíduos dentro do sistema. Em especial, os princípios de liberdade e igualdade se mostravam como relevantes expedientes retóricos. A representação que é construída a partir do Direito Civil moderno traz justamente a separação entre Estado e sociedade civil, de modo que no Brasil a escravidão foi tratada como assunto particular e concernente às relações contratuais estabelecidas entre os cidadãos iguais, livres e proprietários, tendo-se maior intervenção estatal no assunto a partir da Lei do Tráfico e, depois, da Lei do Ventre Livre. Nesse sentido, fala Alonso, sobre a pauta emancipatória, que: A forma mais adequada era paulatina. O Ventre Livre seguia um exemplo bem-sucedido noutros países, não afetaria a propriedade presente e estipulava essa marcação de década, tão cara às reformas imperiais. Iria solucionar o problema gradualmente, dando à escravidão uma sobrevida de vinte anos, ao estabelecer o protetorado do senhor sobre o ingênuo.750 O excerto acima resume a ideia de que a propriedade era tomada — a nível constitucional — como um direito inviolável, base dos direitos civis e políticos dos cidadãos brasileiros, junto com a liberdade e a segurança individual (Art. 179, caput, da Constituição de 1824). Daí podemos extrair que, refletindo sobre a noção de garantia individual preconizada pelo Estado Liberal e o modo como a escravidão foi interiorizada na superestrutura jurídico-política brasileira, o Direito funcionava essencialmente para a “proteção” da propriedade, no sentido de salvaguardar os direitos da pessoa sobre a livre disposição e uso das coisas. Ainda que o liberalismo pregasse a ideia de impessoalidade, ela era cabível no nível das trocas mercantis, entre os iguais em condições e recursos. A pessoalidade vai persistir nas relações sociais e na reprodução de suas hierarquias nas estruturas jurídicas. Somado a isso, vimos que as elites imperiais não eram simplesmente homogêneas, mas corroboravam com determinados interesses e valores que precisavam ser conservados. Em meio a tudo isso, remanesce a pergunta: como a escravidão conseguiu permanecer por tanto tempo? Em que medida liberalismo e Direito se relacionam com 750 ALONSO, Angela. Idéias em movimento — A Geração de 1870 na crise do Brasil-Império. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002, p. 81. 251 esse processo? O Direito brasileiro nasceu “de mãos dadas” com o liberalismo, e digeriu de maneira específica a escravidão, havendo elementos que nos auxiliam a entender como se desenvolveu esse relacionamento tão duradouro e como ele foi legitimado, com fulcro no próprio ideário liberal, suprimindo opiniões dissidentes. De um lado, a própria organização das relações de poder possibilitou que isso acontecesse, o que contou como o chancelamento, pelo Direito, do pacto contra os escravos, institucionalizado com a Constituição de 1824, que afirmava juridicamente os privilégios da elite proprietária. Para além disso, mecanismos jurídicos de cooptação da escravidão funcionavam de maneira a aliciar os segmentos sociais para que contribuíssem com o pacto e, em consequência, com a mantença da instituição. Quando nos referimos a esses mecanismos, queremos dizer que o seu funcionamento dependia de uma relação de troca de benefícios, ainda que em parâmetros desiguais, agindo eles dentro da vida legal. Poderíamos falar de como esse aliciamento se dava nos mais diversos setores, veiculado por meio das ideias liberais e da preconização do direito de propriedade. Contudo, nos interessa focar na figura do liberto, que se tornou com a Constituição “liberal” uma categoria específica, que tinha direitos reconhecidos, ao mesmo tempo que as pessoas livres de cor não eram colocadas no mesmo patamar que os brancos livres. O que se estabeleceu foi uma situação de liberdade frágil ou “quase-liberdade”, visto que remanescia o temor de que a qualquer momento essa condição poderia ser revertida. Essa categoria ficava, em palavras rudimentares, com “um pé de cada lado”, entre o mundo dos escravizados e o mundo dos livres, e era preciso certo impulso para que os pertencentes a esse grupo reproduzissem as estruturas escravistas, o que não era uma tarefa simples, já que todo o sistema se baseava na lógica da violência e no isolamento dos escravos, algo que evidentemente fica na memória. Relembra Blackburn que no geral havia a proibição de que os escravos deixassem a propriedade em que trabalhavam a menos que tivessem autorização do senhor, eram impedidos de ter alguma formação (por exemplo, serem alfabetizados),751 dentre muitas outras restrições, sem nem entrar no tópico dos absurdos da violência e castigos cotidianos. Essas regras diziam muito sobre o sistema. 751 BLACKBURN, Robin. Por que segunda escravidão? In: MARQUESE, Rafael; SALLES, Ricardo H. [orgs.]. Escravidão e capitalismo histórico no século XIX: Cuba, Brasil e Estados Unidos. 1. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016. Disponível em: https://statics- submarino.b2w.io/sherlock/books/firstChapter/128005716.pdf. Acesso em: 4 mai. 2022, p. 21. 252 A existência desses mecanismos não anula, de modo algum, as lutas voltadas ao reconhecimento de direitos e à pauta emancipatória. Esse esquema teórico apenas nos auxilia a compreender como a cooptação criou uma estabilidade desse sistema, tal como afirmam Vellozo e Almeida: “o escravismo brasileiro possuía um poderoso e perverso mecanismo de cooptação: a consolidação da liberdade para um ex-escravo estava em sua adesão à escravidão como sistema, à sua transformação em proprietário”.752 Corrobora do mesmo diagnóstico Rafael Bivar Marquese,753 tratando do caráter disseminado da propriedade escrava e da estabilidade gerada por isso. Utiliza o autor este argumento para justificar por que não aconteceram outros grandes episódios de contestação e resistência coletiva como o exemplo do Quilombo dos Palmares,754 a partir de determinado momento da história do Brasil. Conforme Marquese: [...] para garantir a reprodução da sociedade escravista brasileira no tempo, fundada na introdução incessante de estrangeiros, era fundamental criar mecanismos de segurança que pudessem evitar um quadro social tenso como o do Caribe inglês e francês ou mesmo o de Pernambuco no século XVII. A libertação gradativa dos descendentes dos africanos escravizados — não mais estrangeiros, mas sim brasileiros — constituiu o principal desses meios. A prova definitiva da validade dessa equação é a associação de negros e mulatos libertos e livres com o sistema escravista: o grande anseio econômico e social desses grupos era exatamente a aquisição de escravos, ou seja, tornar- se senhor. Diversos trabalhos recentes documentam a prática bastante comum de negros e mulatos livres, libertos e mesmos escravos serem donos de escravos.755 Partimos, assim, da premissa maior de que a consolidação da liberdade era onde residia o fundamento de cooptação dos libertos e que, assim como os escravos eram vistos como inimigos da nação, manter a coesão do sistema era uma questão de segurança 752 VELLOZO, Júlio César de Oliveira; ALMEIDA, Silvio Luiz de. O pacto de todos contra os escravos no Brasil Imperial. Revista Direito e Práxis [online], v. 10, n. 3, p. 2137-2160, jul./set. 2019. Disponível em: https://doi.org/10.1590/2179-8966/2019/40640. Acesso em: 16 set. 2021, p. 2149. 753 MARQUESE, Rafael de Bivar. A dinâmica da escravidão no Brasil: resistência, tráfico negreiro e alforrias, séculos XVII a XIX. Novos estudos CEBRAP, São Paulo, n. 74, p. 107-123, mar. 2006. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S0101-33002006000100007. Acesso em: 1 jan. 2019. 754 A região da Serra da Barriga, atualmente localizada no município de União dos Palmares em Alagoas, fazia parte da Capitania de Pernambuco no século XVII. Ela abrigou o Quilombo dos Palmares, um dos mais longos e vigorosos da história do Brasil, que chegou a atingir mais de 10 mil habitantes. A organização da vida política dos quilombolas se dava pelas formas tracionais centro-africanas, com um estado organizado pelo controle de um rei e chefes de povoados. Chegou a ser firmado um acordo de paz entre o rei Ganga Zumba e o governador de Pernambuco em 1678, conforme LARA, Silvia Hunold. Palmares, Cucaú e as perspectivas de liberdade. In: LIBBY, Douglas Cole; FURTADO, Júnia Ferreira [orgs.]. Trabalho livre, trabalho escravo: Brasil e Europa, séculos XVII e XIX. São Paulo: Annablume, 2006. p. 361-382, p. 362. 755 MARQUESE, op. cit., p. 118. 253 nacional. Como desdobramento disso, a concessão de cidadania a esse grupo — libertos brasileiros — formalizava a sua participação no processo eleitoral, ainda que de forma limitada ou mesmo simbólica (somente nas eleições primárias e subordinada a uma renda mínima). Talvez ela represente o exemplo mais claro da existência de mecanismos de cooptação. Observamos que diversos setores foram reunidos em torno das ideias liberais para o movimento de Independência, dentre eles, escravos e libertos que vislumbravam no liberalismo uma esperança de liberdade e melhoria de sua situação. Os libertos alcançaram cidadania, tornando-se uma categoria dotada de direitos civis, ainda que concebida como passiva no tocante aos direitos políticos, cuja restrição os tornavam diminutos. A perspectiva de que os libertos brasileiros e seus descendentes eram aliados, e não inimigos da nação, foi ventilada em 1822, nos debates das Cortes de Lisboa, quando estava sendo definido o caminho da Independência do Brasil. Nas discussões com os parlamentares portugueses sobre os critérios de cidadania e participação política a serem dispostos pela Constituição que estava por vir, Custódio Gonçalves Ledo afirmava que os libertos eram interessantes à sociedade e aos rumos da indústria e que privá-los do direito de votar apenas serviria para agravar o mal da escravidão.756 Exercendo trabalhos marginais, em sua grande maioria, os libertos brasileiros eram empregados no controle e repressão dos africanos, exercendo uma função que os brancos não queriam: manter a “ordem” nas fontes, praças e em muitas ruas das cidades brasileiras, perseguindo fugitivos e contendo rebeliões escravas.757 Em outras palavras, havia um comprometimento social com a instituição da escravidão, que não vinha apenas dos senhores brancos, o que se tornou elemento decisivo para garantir a segurança do sistema escravista brasileiro.758 Outro mecanismo, além da concessão de cidadania, eram os padrões de alforria e manumissão. Marquese também frisa que nas últimas três décadas tem sido notada estreita relação entre o que aconteceu na história do Brasil com o volume do tráfico negreiro transatlântico e as altas taxas de alforria. Basicamente, a população negra livre 756 MARQUESE, Rafael de Bivar. A dinâmica da escravidão no Brasil: resistência, tráfico negreiro e alforrias, séculos XVII a XIX. Novos estudos CEBRAP, São Paulo, n. 74, p. 107-123, mar. 2006. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S0101-33002006000100007. Acesso em: 1 jan. 2019, p. 122. 757 REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil. A história do levante dos malês em 1835. Ed. revista. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 175. 758 MARQUESE, op. cit., p. 121. 254 teve sua gênese nessa dinâmica. As alforrias eram mais comuns para as escravas, muitas em idade fértil, o que também contribuiu, em alguma medida, para a diminuição da população escrava.759 As atividades desempenhadas pelos libertos enquanto escravos (ao exemplo das tarefas rurais e urbanas que não exigiam qualificação) transmutavam-se na recomposição de laços familiares e culturais entre gerações que obtinham a liberdade através da manumissão e das alforrias. Esses são movimentos que podem ser tidos como parte de certo processo institucional de transformação de status, em larga escala. Ademais, as atividades econômicas rurais e urbanas eram predominantemente baseadas na escravidão, o que se somava a uma estrutura de posse dos escravos na qual eles eram distribuídos por diferentes faixas de riqueza, e não concentrados nas mãos dos senhores com mais recursos, ou mesmo exclusivamente com os proprietários brancos, ilustrando a disseminação da escravidão.760 A alforria foi sedimentada pelo costume, de maneira que não havia regulação específica pela lei brasileira. Ela passou a ser disseminada no escravismo brasileiro com maior amplitude no cenário pós-Independência. A alforria e a manumissão marcavam a passagem da escravidão para a liberdade pela via institucional e tinha-se, desse modo, a liberdade como um objetivo e uma possibilidade, ainda que de difícil alcance. Este se colocava como o passo mais importante dentro da trajetória de ascensão social do escravo, ou seja, a entrada no mundo dos livres.761 Como grandes conquistas e formas de resistência ao domínio senhorial,762 a falta de maior atenção do Direito à organização de procedimentos voltados à temática também contribuía para que os escravos em busca da liberdade ficassem sujeitos ao arbítrio dos senhores, o que acabava desembocando no Poder Judiciário. Diferentemente do contexto de outros países como a França e a Inglaterra, os escravos que tentavam obter a liberdade por via judicial compunham um número bem 759 MARQUESE, Rafael de Bivar. A dinâmica da escravidão no Brasil: resistência, tráfico negreiro e alforrias, séculos XVII a XIX. Novos estudos CEBRAP, São Paulo, n. 74, p. 107-123, mar. 2006. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S0101-33002006000100007. Acesso em: 1 jan. 2019, p. 109 e 119. 760 Ibid., p. 109 e 119. 761 MATHEUS, Marcelo Santos. A produção da liberdade no Brasil escravista (Século XIX). Revista História [online], São Paulo, v. 37, p. 1-32, 2018. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1980- 4369e2018025. Acesso em: 4 mai. 2022, p. 5-7. 762 LARA, Silvia Hunold. Fragmentos setecentistas. Escravidão, cultura e poder na América portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 345. 255 mais expressivo,763 abrindo caminho jurídico para a libertação de outros escravos. No Brasil, tal como esclarece Lara,764 estudos de regiões específicas demostram que ocorreu um aumento das ações de liberdade a partir de fins do século XVIII, o qual se demonstrou significativo em cidades como o Rio de Janeiro, onde o acionamento da justiça governamental se fazia mais intenso. Sobre isso, explica Grinberg que: Tanto as tentativas de libertação por via da intervenção do Estado quanto as expectativas na próxima emancipação geral só aumentaram com o início dos conflitos políticos que resultaram na Independência do Brasil. Nesse período, o Rio de Janeiro foi palco de inúmeras fugas e ameaças de desordem por parte de escravos, para as quais o próprio D. Pedro I deu a sua contribuição: em dezembro de 1822, já depois de proclamada a separação política de Portugal, o então imperador prometeu a liberdade aos escravos que se alistassem nas tropas brasileiras, e, mais tarde, estabeleceu que os proprietários deviam mandar um a cada cinco de seus escravos, para que tomassem parte nas tropas. Isso fez com que cativos fugissem para se alistar como voluntários, entendendo que esse seria um bom caminho para a posterior aquisição de liberdade e autonomia, num movimento extremamente semelhante ao realizado por escravos norte-americanos durante a Guerra de Independência, quando muitos fugiram para se alistar junto às tropas dos Estados Unidos e da Inglaterra como resposta às promessas de libertação. Da mesma forma, no período posterior à emancipação política, vários escravos dos dois países sofreram decepções, principalmente pelo aumento do tráfico negreiro (no caso dos Estados Unidos, a reabertura) causado pelo reaquecimento da economia exportadora.765 Esse argumento de Grinberg reforça a noção que viemos defendendo, de que o pacto contra os escravos, delineado por Vellozo e Almeida, vai se consolidar juridicamente através do processo de Independência. O Imperador já percebia a esse tempo a importância de garantir o apoio das elites imperiais e de conferir segurança aos 763 Não expressamos a totalidade dos números de ações de liberdade, alforrias e manumissões em nível nacional, pois os estudos historiográficos sobre o assunto contam mormente com uma abordagem regional, ao exemplo da pesquisa de Silvia H. Lara citada (que trata do recorte do Rio de Janeiro) ou de Heloísa Maria Teixeira (2014), que cuida do Termo de Mariana (MG). A reunião de informações sobre o assunto implica um aprofundamento de pesquisa e coleta de dados nos órgãos administrativos e judiciários locais. Um ponto em comum das pesquisas historiográficas voltadas ao tema na última década é que as análises de registros se inclinam a demonstrar que os referidos instrumentos eram utilizados de maneira mais expressiva no Brasil. Dados trazidos por Douglas Lima (2020), debruçando- se sobre os documentos oficiais de Casa Borba Gato, em Sabará, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, na obra Libertos, Patrone e Tabeliães: a escrita da escravidão e da liberdade em alforrias notariais, corroboram com esse argumento. 764 GRINBERG, Keila. Alforria, direito e direitos no Brasil e nos Estados Unidos. Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 1, n. 27, p. 63-83, 2001. Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/2130. Acesso em: 10 mai. 2022, p. 69-71. 765 Ibid., p. 72. 256 planos políticos de estruturação do Estado brasileiro, o que significava apaziguar os ânimos da população escrava, com perspectivas de mudanças. Pensando na noção de propriedade que vai ser consumada com a nova Constituição e com o panorama apresentado sobre o manejo das leis civis, podemos dizer também que a característica de permeabilidade do Direito Civil se colocou, em um sentido amplo, como uma forma ou caminho para a cooptação. Isto é, tínhamos uma falta de clareza e objetividade quanto às normas aplicáveis à escravidão, sem simplificar ou codificar a legislação, de certa forma dificultando o acesso a esse conteúdo, o que ficava a cargo dos juristas operadores de sua técnica, conhecedores de um saber altamente específico. Por outro lado, essa falta de transparência (e de segurança jurídica) trazia oportunidades para que esse campo fosse permeado por tentativas de interpretações do Direito. Ela não fechava, desse modo, as possibilidades de transformação da prática jurídica, e simultaneamente as limitava, mantendo certo controle sobre os seus instrumentos. Isso pode ser apreendido pelas ações de liberdade e pelos padrões de alforria e manumissões que abriam caminhos à liberdade, ainda que seu alcance fosse difícil e não contasse com facilitações por parte da lei. Esses mecanismos, o processo histórico que gerou as especificidades do liberalismo brasileiro, a maneira como foram organizadas as relações políticas e econômicas e, em consequência delas, a distribuição do poder entre as elites proprietárias e o Imperador, foram fatores que contribuíram para o sucesso do pacto contra os escravos. Os mecanismos de cooptação estruturados nesse âmbito também corroboraram para a longevidade (e particularidade) da escravidão no Brasil. Delineada a substancialidade dos mecanismos de cooptação para melhor compreender o eixo liberalismo, Direito e escravidão, passamos na sequência a acoplar essas percepções retomando o nosso debate inicial, As ideias fora do lugar, aprofundando a análise sobre qual o lugar das ideias liberais no Brasil oitocentista e como podemos vislumbrar a sua especificidade a partir do Direito, para interpretar a realidade nacional. 5.4 DE VOLTA AO DEBATE DAS IDEIAS FORA DO LUGAR: O BRASIL PELAS LENTES DO LIBERALISMO JURÍDICO Sumariamente está montada uma comédia ideológica, diferente da européia. É claro que a liberdade do trabalho, a igualdade perante a lei e, de modo geral, o universalismo eram ideologia na Europa também; mas lá correspondiam às aparências, encobrindo o essencial — a 257 exploração do trabalho. Entre nós, as mesmas idéias seriam falsas num sentido diverso, por assim dizer, original.766 No excerto acima, de Ao Vencedor as batatas, Schwarz fala da maneira como as ideias liberais foram incorporadas no Brasil, de um modo diverso e original — expressão que deixa o entendimento tácito sobre a perversidade com a qual foram tomadas. O que procuramos demonstrar é que o discurso eurocêntrico foi absorvido no país, e que a noção de descentramento de ideias, presente na proposta de Schwarz, concerne à realidade interna, devendo a partir dela ser compreendido. Isto é: [...] se insistimos no viés que escravismo e favor introduziram nas idéias do tempo, não foi para as descartar, mas para descrevê-las enquanto enviesadas — fora de centro em relação à exigência que elas mesmas propunham, e reconhecivelmente nossas, nessa mesma qualidade.767 Não podemos, é claro, isolar o país de um contexto maior, isto é, do processo de consolidação do capitalismo e disseminação de teorias através dos canais do Atlântico. Afinal, era inevitável “a presença entre nós do raciocínio econômico burguês — a prioridade do lucro, com seus corolários sociais — uma vez que dominava no comércio internacional, para onde a nossa economia era voltada”.768 Porém, é necessário considerar o processo histórico e as especificidades que o caracterizam no Brasil. A perspectiva sobre As ideias fora lugar tem respaldo em uma falta de correspondência ou descrição da realidade brasileira a partir das ideias do liberalismo. Contudo, de acordo com Schwarz, “O teste da realidade não parecia importante”.769 Isto é, de início não havia uma preocupação com a aderência dessas ideias no Brasil, e depois elas foram utilizadas ao máximo como ferramentas ideológicas. Quanto a essa aparente desconexão com a realidade nacional que viemos abordando, ela pode parecer à primeira vista uma questão de simples dissonância entre teoria e prática, no que se diz respeito à assimilação doutrinária e à aplicabilidade das ideias liberais. O que seria condizente com a defesa, equivocada segundo o nosso posicionamento, de que teríamos internalizado essas ideias de maneira inadequada ou malfeita em virtude de alguma espécie de falha ou desentendimento de seu conteúdo, 766 SCHWARZ, Roberto [org.]. Ao vencedor as batatas. São Paulo: Duas Cidades, 2000 [1992], p. 12. 767 SCHWARZ, Roberto [org.]. Ao vencedor as batatas. São Paulo: Duas Cidades, 2000 [1992], p. 21. 768 Ibid., p. 13. 769 Ibid., p. 15. 258 como sintoma de atraso, frente às nações “civilizadas”. Sobre a problemática de se falar das ideias liberais como fora do lugar, diz Ricupero que: Mais especificamente, os críticos costumam tomar o título, “As ideias fora do lugar”, como a tese e não como o problema do qual parte a análise. Assim, apesar das reiteradas explicações de Schwarz, não se costuma perceber que o autor lida com um sentimento de despropósito bastante difuso no século XIX e posteriormente em relação à vida ideológica brasileira.770 Todavia, o “sentimento de despropósito” gerado precisa ser visto para além de uma suposta incongruência entre teoria e prática. Contamos com a reprodução das mesmas contradições que o liberalismo produziu em outros lugares, o que implica necessariamente admitir a sua relação no mínimo problemática com a escravidão. Em outros lugares, como pontuado por Schwarz, ela encobria o essencial (a exploração do trabalho). Assim, “Impugnada a todo instante pela escravidão a ideologia liberal, que era a das jovens nações emancipadas da América, descarrilhava. Seria fácil deduzir o sistema de seus contra-sensos, todos verdadeiros [...]”.771 Aqui, as atenções não pareciam se voltar ao encobrimento dessas ideias, mas a uma retórica de aliciamento, por meio da qual a ilusão resultante era de que aquele era o único caminho viável para o desenvolvimento do país em alguma harmonia com as economias centrais e de que a liberdade estava no foco das relações políticas e jurídicas. Inobstante a escravidão particularíssima que tivemos, o Direito conseguiu de algum modo intensificá-la em um nível de introjeção profundo, conferindo a ela uma longevidade fora do comum, ainda que cotidianamente estivessem em choque as promessas realizadas pelos representantes do liberalismo brasileiro e as ações políticas que esses agentes tomavam. Podemos então dizer que a força retórica do discurso liberal vai ser exprimida ao máximo no Brasil, causando esse imenso sentimento de desconforto entre uma generalidade e uma universalização de ideias que não tinha como foco o reconhecimento de direitos de todos e para todos (muito menos para todas). Essa força retórica fará parte do processo de formação do Direito brasileiro, enraizando exclusões que ganharam caráter permanente nos séculos seguintes. 770 RICUPERO, Bernardo. O lugar das ideias: Roberto Schwarz e seus críticos. Sociologia & Antropologia, Rio de Janeiro, v. 3, n. 6, p. 525-556, jul./dez. 2013. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2238- 38752013000600525&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 16 dez. 2020, p. 528. 771 SCHWARZ, Roberto [org.]. Ao vencedor as batatas. São Paulo: Duas Cidades, 2000 [1992], p. 15. 259 Como instrumento de controle, o Direito formado serviu para consolidar o poderio de grupos privilegiados, não apenas no Brasil, mas mundo afora, abraçando o liberalismo no eixo da modernidade. Tivemos uma escravidão mais “moderna”, produtiva e muito violenta, persistentemente resguardada e chancelada pelo Direito. Mas o fato é que o pensamento jurídico brasileiro que se desenvolveu em torno do liberalismo se apropriou dessas ideias, principalmente no Segundo Reinado, fazendo um blend entre a doutrina transportada do outro continente e as interpretações locais estratégicas sobre elas. A “liga” da relação entre liberalismo e Direito será exatamente a escravidão. Uma escravidão que foi tratada como assunto que dizia respeito aos contratantes em sua vida civil e que contava com um pacto, institucionalizado pela própria ordem constitucional, dos mais amplos setores sociais contra os escravos. Havia um compromisso social de isolamento desse grupo, pois interessava o afastamento do mundo dos não livres, um lugar moribundo e socialmente renegado e escondido, deixado à deriva. Um lugar onde não se queria estar. Daí a especificidade no tratamento jurídico do liberto brasileiro, categorizado pela Constituição de 1824. Ele era peça central em um movimento de aliciação, que guardava em si uma contradição fundamental: o reconhecimento de direitos, face ao extremo controle. Através de mecanismos voltados à situação frágil e estruturalmente precária da liberdade, o compromisso social contra os escravos era legalizado e renovado pelo Direito. O grande mecanismo de cooptação foi o controle sobre a liberdade e do que chamamos de “quase-liberdade” do liberto brasileiro e, a partir desse leque de possibilidades de domínio e exploração, alguns desdobramentos são visíveis. A manifestação dessa ambiguidade entre reconhecimento de direitos e controle pode ser observada através da concessão de cidadania aos libertos, dos padrões de alforria e manumissão e de um modo geral pelo que denominamos de permeabilidade do Direito Civil, como expressões latentes de cooptação dos libertos, que conseguimos mais facilmente identificar. Nisso tudo, o liberalismo ofereceu conceitos e expedientes retóricos centrais para que a escravidão fosse mantida e reafirmada, colocando a propriedade como objeto fundamental do Direito e condicionando a ela a própria ideia de pessoa. Liberdade e igualdade, em última instância, passaram também a se resumir a ela. O escravo era uma presença “ausente” e ambígua, visto que estava na base das relações sociais e jurídico- políticas, cujo trabalho fomentava a economia do país, ao mesmo tempo que a escolha do Direito brasileiro sobre o seu tratamento era a omissão ou a interpretação “entrelinhas” 260 de possíveis normas aplicáveis a casos concretos, dentro do emaranhado das leis portuguesas, brasileiras e do direito romano. Evitava-se a discussão mais profunda sobre a natureza do direito de propriedade e dos problemas de tratar pessoas como coisas. A linha entre esses dois blocos de direitos (pessoais e reais) se tornava mais tênue quando conveniente, visto que — pelo menos para o Direito Penal — tinha-se um vislumbre da noção de personalidade, cumprindo frisar que isso se dava essencialmente para punir os escravos. Talvez não haja melhor definição objetiva para esse contexto do que uma constante violência multifacetada contra os escravos e que se exprimia no Direito através da violência jurídica. Essa violência ocorria desde as normas que tratavam dos castigos “moderados” (ao exemplo do Código Criminal) e da desumanização em geral dos escravos até a sua consequente desqualificação como pessoas, presente nos alicerces do Direito Civil e repisada nos debates parlamentares. Ela era efetivada pela insegurança jurídica, fragilidade e precariedade da liberdade (que se sumarizava conceitualmente no Direito como desdobramento da noção de propriedade), bem como pela normalização do isolamento dos escravos, retroalimentando a ideia de que eram uma “mancha negra” (expressão corrente utilizada pelos parlamentares brasileiros) que deveria ser expurgada ou, pelos menos, branqueada. Direito e liberalismo, lado a lado, metabolizaram a escravidão como um universo colocado intencionalmente à parte, à exceção, ao mesmo tempo que a instituição estava na base de todas as relações do tecido social. Para que a escravidão sobrevivesse por tanto tempo, foram imprescindíveis o enraizamento e a legitimação repetida, através do próprio arcabouço liberal, da ideia de que os escravos eram inimigos da nação, estrangeiros sem lugar no Brasil e que o seu único destino possível era o total afastamento. Dentro dessa realidade sui generis, o espaço ocupado pelas ideias liberais foi o de conferir fundamentos à constituição do próprio Direito, fazendo com que a escravidão fosse introjetada na superestrutura jurídico-política brasileira. Ainda que a Abolição chegasse, essa relação estrutural não seria abandonada, continuando a reverberar. Dizemos, assim, que um vínculo íntimo foi estabelecido entre liberalismo, Direito e escravidão, bem como que a expressão jurídica do liberalismo no Brasil foi bastante peculiar — em especial, o Direito brasileiro vai se estruturar junto com o aparecimento das ideias liberais no país —, ainda mais quando pensamos sobre a institucionalização do pacto contra os escravos e nos mecanismos de cooptação da escravidão. É importante refletirmos sobre o que essas relações que foram travadas têm a nos dizer sobre o Brasil. 261 Houve uma decisão deliberada, por parte da elite proprietária e com o apoio dos mais amplos setores sociais, que trazia em seu pano de fundo: (i) a exploração maximizada da mão de obra escrava para sustento e financiamento da nova ordem que se erigia; (ii) a apreensão semântica da ideia de liberdade como aquela destinada para os que eram formalmente iguais, isto é, os livres proprietários; (iii) a consciência da elite dominante da perda do escravo como objeto de interesse político e econômico; e (iv) a instrumentalidade das ideias liberais para manutenção da escravidão, tanto quanto possível, com o isolamento dos “indesejáveis”. Qual é esse Brasil, formado através do liberalismo? Ele é, antes de tudo, um país que se estabeleceu por meio de um Direito de bases excludentes, incorporando a escravidão em sua superestrutura jurídico-política. Mantendo o olhar no pensamento jurídico que se consolida nos Oitocentos, é nesse momento que é criado um esquema de autolegitimação normativa, que não recobra um vínculo sistêmico com a ideia de justiça. A nação e a Constituição precisavam ser liberais, assim como o modelo das nações centrais, e enquanto esta condição fosse cumprida, as normas estavam legitimadas pelo sistema. Então, se determinado ato jurídico-político estava de acordo com essas ideias, pouco importava um aprofundamento maior nas suas contradições, fossem elas internas do próprio ideário, ou concernentes a problemas que deveriam ser enfrentados pelo Direito e que eram simplesmente ignorados, em prol da manutenção dos interesses das classes dominantes. Eram as elites intelectuais e proprietárias que se encontravam no cerne do poder e mantinham o monopólio do saber jurídico e, em consequência, da discricionariedade — ou arbitrariedade — de definir o que podia ou não ser considerado como liberal. A particularidade na absorção dessas ideias está na máxima retenção de sua força retórica para manter os envolvidos dentro do sistema, reproduzindo as suas estruturas a partir da ampla disseminação da propriedade escrava, de maneira que essa reprodução não ocorria apenas pelos homens brancos. Em última instância, o liberalismo jurídico pode ser visto como a expressão das ideias liberais através das estruturas do Direito e do pensamento jurídico, tendo a propriedade como conceito central, e operando a partir da universalização das noções de liberdade e igualdade, baseadas no primeiro. Pensando nas diversas etapas que o liberalismo vai passar no Brasil e nas mudanças desenvolvidas na autopercepção de seus representantes e adversários sobre o 262 que significaria “ser liberal”, observamos que as características acimas apresentam-se como constantes nesse movimento, ainda que ocorra após 1850, com a Lei de Terras, a incorporação institucional do conceito moderno de propriedade. A concentração do latifúndio, com a ampla disseminação da propriedade escrava e a derrocada dos projetos abolicionistas no epílogo da libertação dos escravos no país foram alguns dos fatores que contribuíram para que os ex-escravos fossem deixados de lado, ignorados como vergonha nacional e abandonados na esperança de que simplesmente sumissem do território. Essa escravidão com recorte racial implicará uma série de medidas insistentes em alocar a população negra como eterna estrangeira no país. Com a República, tivemos um desenvolvimento das teorias cientificistas, voltadas à superioridade racial. Isso para dizer que uma das principais consequências desse cenário é o desembocar na questão racial, no racismo estrutural que se consumou. Entender o liberalismo brasileiro é compreender, antes de tudo, sob quais práticas e fundamentos o nosso Direito se apoiou e como foi criada uma perspectiva própria sobre o que era o liberalismo. Prova disso é a distinção autodenominativa entre liberais radicais e moderados, para fazer referência ao quanto essas tendências, de maneira mais ou menos incisiva, guardavam relacionamento mais estrito com o ciclo de revoluções do Atlântico. Para Lynch, o processo de Independência resultaria em uma cisão entre liberais de direita e esquerda no Brasil.772 A sociedade brasileira, formada depois da constituição do Estado nacional, materializou-se através de uma forte hierarquia, ratificada pelo liberalismo estamental do Segundo Reinado. A sobrevivência do liberalismo teve que contar com a flexibilização das elites imperiais, diante das animosidades do Imperador e da pressão popular em situações limítrofes, de iminente ruptura. Isso não impossibilitou, é claro, o potencial transformador do Direito, sentido e apropriado pelos grupos que seguiam com suas lutas pela liberdade e por condições mais dignas de vida. As brechas no sistema foram aproveitadas para exercer esse potencial, abrindo um importante caminho para mudanças. Do ponto de vista da atualidade, refletindo sobre os sentidos dos conceitos de cidadania e legitimidade das normas jurídicas, há um constante sentimento de incerteza e 772 LYNCH, Christian Edward Cyril. O Conceito de Liberalismo no Brasil (1750-1850). Araucaria, 9(17), p. 212-234, 2007. Disponível em: https://revistascientificas.us.es/index.php/araucaria/article/view/1156. Acesso em: 21 jan. 2021, p. 224. 263 desconfiança em relação às instituições jurídicas, seu funcionamento e sua credibilidade. Essa sensação é extensiva no que diz respeito àqueles e àquelas que ocupam lugares de tomada de decisão, ensejando dúvidas sobre o seu comprometimento e polidez no exercício das funções designadas. Essas ondas de suspeição, descrédito e insegurança remetem a um prognóstico que envolve, dentre os seus fatores, a consolidação do modelo de democracia liberal, a duras penas, nos dois últimos séculos, sob o discurso de oposição aos Estados absolutistas dos Antigos Regimes e ao arbítrio institucional.773 É cediço que a formação política e econômica do Brasil foi marcada pelo mandonismo, clientelismo e pessoalidade nas relações, por uma administração paralela e privada, que não ficou para trás. E essa situação ainda é bastante grave em diversas regiões do país, em especial as mais afastadas das capitais, onde a atuação estatal tarda, em muito, a chegar. Pensando na ideia de cidadania consolidada no Brasil, ela traz essa carga de uma noção de liberdade iminentemente privada e de uma compreensão mormente passiva no que se diz respeito ao exercício dos direitos políticos, o que pode ser atribuído à forma pela qual esses direitos vêm sendo tratados desde a Constituição de 1824. Com relação ao voto, ele se colocou primeiro pelo parâmetro censitário e limitado à liberdade- proprietária, depois excluindo na República a participação dos analfabetos, que constituíam a maioria do contingente populacional. O voto feminino foi reconhecido somente em 1932, sendo posteriormente incorporado na Constituição de 1934. A passagem para a República significou também o agrupamento dos ex-escravos no mundo dos livres — e das pessoas —, mas sem o emprego de esforços para possibilitar a sua inclusão ou desvinculação da hierarquia social criada. Esse escopo auxiliou para manter o cerne do pacto contra os escravos, que era justamente a mantença da escravidão entre nós e o isolamento da população negra. A sua desinstitucionalização não culminou em uma automática desconstrução ideológica, de modo que as ideias que reafirmaram e buscaram autolegitimar por séculos a escravidão permaneceram em nossa superestrutura jurídico-política. 773 CASTELLS, Manuel. Ruptura: a crise da democracia liberal. Zahar, 2018. E-book Amazon, p. 48. 264 CONCLUSÕES O esquema teórico das Ideias fora do lugar nos auxilia a compreender processos específicos da realidade nacional. Refletindo primeiramente sobre a proposta de Schwarz, vemos que, apesar das críticas acirradas, muitos de seus pontos permanecem válidos. Talvez a maior de suas contribuições tenha sido exatamente chamar a atenção para algo que não era naturalmente construído. Não contamos com o surgimento endógeno das ideias liberais no país, de modo que elas foram, de fato, transportadas para a nossa realidade sem grande preocupação em descrevê-la. Porém, defendemos que a realidade brasileira não apresenta uma relação de exterioridade propriamente dita com essas ideias. Elas foram apropriadas e, assim como em outros países periféricos, deixaram de ser estranhas, no sentido de que passaram a se manifestar a partir de algumas peculiaridades como o favor — que é, inclusive, indicado por Schwarz — e através do desenvolvimento da ordem social competitiva. Alguns autores e autoras são relevantes para esse debate, ao exemplo de Florestan Fernandes e Viotti, além de Alfredo Bosi e demais utilizados no capítulo primeiro desta tese. Com foco nesses três, Florestan nos abre os olhos sobre a formação da “burguesia nacional” e como não podemos ignorar a presença desse raciocínio — o burguês — entre nós, ainda que a partir de outros parâmetros de análise. A obra de Viotti conferiu importante alicerce para este trabalho, visto que sua apreensão sobre o liberalismo encontra seus fundamentos na ação política, demonstrando como se criou uma grande utopia em torno das ideias liberais. A partir de Bosi, conseguimos nos desvencilhar das acepções tradicionais e autodenominadas de liberalismo, enxergando mais a fundo o seu vínculo com a colonização. Reconstruir esse debate foi importante ponto de partida para analisarmos o estado da arte acerca da discussão sobre as particularidades do liberalismo no Brasil. Mais do que indicarmos pontos fortes e fracos do conceito de Schwarz, o que mais nos interessa é o entendimento de que havia algo que parecia deslocado e que não se colocava da mesma forma no Brasil, em relação às nações europeias. Ainda assim, o Brasil estava inserido em um contexto macroeconômico que não poderia ser ignorado. Caminhando então para uma perspectiva focada no eixo liberalismo, Direito e escravidão, vimos que a ideologia liberal apareceu no Brasil exatamente quando o nosso Direito estava em formação e quando não tínhamos ainda uma sociedade civil desenvolvida. Foi então estruturado o Estado brasileiro em torno dessas ideias. O que 265 buscamos demonstrar foi que o liberalismo é uma expressão ideológica, que alcançou muitos lugares e que a forma pela qual se projetou no Brasil carregava suas contradições internas, sem deixar de ser liberalismo. A resposta sobre o que é diferente no liberalismo jurídico no Brasil não está, contudo, na ideologia, mas nas especificidades da realidade brasileira. O liberalismo constituiu a forma pela qual as contradições do capitalismo foram mais bem trabalhadas, para dar conta da escravidão e dos problemas do capitalismo industrial. O liberalismo não é, contudo, a realidade material em si, mas uma forma pela qual a realidade material se apresenta para nós, em nossas consciências, moldadas no interior da vida e da dinâmica social capitalista. Daí a noção de que o liberalismo jurídico no Brasil somente pode ser efetivamente apreendido do ponto de vista interno. Nas próprias contradições da realidade material brasileira é que essas peculiaridades se demonstram, e foi esse o grande esforço de pesquisa deste trabalho. Ou seja, adentrar nessas contradições, admitindo o Direito como peça central. Procuramos abordar como ocorreu a metabolização entre liberalismo e escravidão no Brasil, a partir do Direito, isto é, do discurso jurídico. Outrossim, o discurso jurídico foi a chave de regulação entre liberalismo e escravidão, que serviu para especificar as características de dominação, em determinado período histórico. O liberalismo foi filtrado e remodelado de diferentes formas na América Latina. Ocorreu aqui uma estratégica filtragem no que convinha às práticas de dominação social. A maneira como o liberalismo se relacionou com a escravidão e o Direito é fundamental para compreender as condições específicas da formulação social brasileira. Pensando também no contexto em que o país se inseria, são relevantes a relação de dependência e o papel desempenhado pelo Brasil na economia mundial. A crise econômica na esfera internacional e a necessidade de reorganização da economia brasileira surtiram efeitos nas diferentes etapas ou tipos de liberalismo que tivemos. O liberalismo da década de 1820, por exemplo, não será o mesmo do fim do século. Entretanto, mantivemos nesse âmbito bases como a liberdade individual, mas apresentando formas de aclimatação próprias dessas ideias. Em um primeiro momento, a liberdade a ser conservada pelos liberais vai ser tomada como contraponto do controle e opressão das forças estrangeiras, voltando-se ao livre comércio. Em especial, o comércio de escravos. Então amplos setores unidos em prol da Independência, vista justamente como medida necessária para a liberdade, logo teriam as suas esperanças de liberdade e mobilidade social dissipadas com o cenário da 266 dissolução da Constituinte de 1823. O liberalismo das elites imperiais teve que se flexibilizar diante das hostilidades do Imperador, resultando enfim em um grande pacto contra os escravos, institucionalizado pela Constituição de 1824. De um lado, as elites proprietárias se fizeram valer da retórica liberal e de promessas não cumpridas, ao passo que o Imperador vislumbrou a possibilidade de manter seus interesses pessoais. A escravidão era base de todas as relações do tecido social e da economia e coube ao Direito chancelar a hierarquia estabelecida e garantir que os escravos continuassem sendo o objeto mais importante e distintivo de poder, como propriedade. Foram estabelecidas duas principais formas de se diferenciar o escravo do não escravo. Corroborando com a pesquisa e a perspectiva do Prof. Dr. Silvio Luiz de Almeida, a primeira delas era pela sua identidade (ou subjetividade) jurídica. Isto é, considerando que ele não possuía autonomia, vontade e consciência aos olhos do Direito, não podendo se autodeterminar, ele não era proprietário de si e seus bens, não era pessoa, mas coisa, cabendo-lhe o tratamento a partir dos direitos reais, das coisas. E aqui a intersecção entre liberdade e propriedade é significativa. Ser livre era ser proprietário e a igualdade formal, em última instância, era a paridade entre os proprietários, sujeitos livres, para que realizassem trocas mercantis. E daí, a segunda característica, era, notavelmente, a raça. Ela se colocou como fator objetivo de exclusão social. Cumpre notar que liberalismo e constitucionalismo no Brasil foram, no começo, admitidos como sinônimos, o que contribuiu para que a ideologia fosse vista nessa fase inicial como uma ferramenta emancipatória em relação à metrópole e como uma proposta de formalização e reconhecimento de direitos. Nessa transição para a Independência e nova ordem constitucional, permaneceram a patronagem, o clientelismo e o favor da herança colonial. Manter os indivíduos dentro do sistema, especialmente aqueles que não eram considerados pessoas, não era uma tarefa fácil. Assim, essa exploração precisava ser justificada e legitimada. A solução estava em uma complexa estratégia de aliciamento. Daí entram os mecanismos de cooptação da escravidão, de tal sorte que a principal peça era o liberto brasileiro, que representou uma categoria prevista pela Constituição de 1824. A separação entre escravos e libertos era importante para a continuidade da exploração a partir do instituto da escravidão, para a sua mantença, também para conter que as decisões de fuga, revoltas, insurreições e suicídios fossem preferidas, em 267 detrimento de permanecer dentro do sistema. Melhor dizendo, a cooptação voltada à situação de liberdade era o guarda-chuva desse aliciamento. Trazia-se a liberdade como ponto mais alto da vida social do escravo, determinando um objetivo, ainda que de difícil alcance. Possibilitava-se que essa liberdade pudesse ocorrer pela via legal. Do lado dos libertos brasileiros, era necessário que eles continuassem a reproduzir as ideias de fundo escravista, ainda que as memórias de violência e exploração não fossem esvaídas. Para isso, eles precisavam acreditar nessa premissa de que o escravo era o mais importante objeto da economia e que a situação precária e reversível de liberdade poderia ser garantida a partir da aquisição de escravos. Era esse o limite distintivo do mundo dos livres do mundo dos não livres. As longas discussões da Constituinte de 1823 ilustram a cidadania como um conceito crucial, por meio da qual houve uma ampliação no que tange aos indivíduos atingidos, porém trazendo uma distribuição desigual de direitos. Não mais se queria falar de homens de bem ou mesmo de súditos. Eram os cidadãos aqueles das nações “cultas” e “civilizadas”. Para isso, era imperativo enfrentar o problema da escravidão, que remanescia em tensão constante com a autolegitimação das ideias liberais, mesmo não se tendo qualquer intencionalidade em efetivamente aboli-la. Enxergando a relação entre colônia e metrópole como uma escravidão entre nações, o estrangeiro não era bem-vindo, muito menos o estrangeiro africano que era tomado como a verdadeira escória da sociedade, não sendo nem mesmo considerado parte dela. A resposta para o problema estava na concessão da cidadania aos libertos, ainda que limitada e politicamente passiva. A liberdade reversível a que essa categoria tinha acesso, ou do que chamamos de “quase-liberdade”, era salvaguardada mediante o isolamento do mundo dos não livres, não cidadãos e não humanos (pessoas). Se o Direito Constitucional determinou quem eram os cidadãos — ativos e passivos, ainda que tal distinção tenha sido tacitamente incorporada —, o Direito Civil reafirmou a escolha de tratar o escravo como coisa. Essa alternativa culminava em não o considerar assunto de direito público, mas de direito privado. Como propriedade, os bens dos senhores precisavam ser “protegidos” diante de terceiros, interferindo o Estado apenas para o cumprimento de contratos. O Direito Civil, como um campo no Brasil oitocentista que não contou com a sua simplificação ou codificação, trazia óbices ao seu acesso mediante um emaranhado de normas portuguesas, brasileiras e romanas de difícil apreensão. Porém, contava com uma certa permeabilidade, caracterizada por “brechas” ou “respiros” ao reconhecimento de 268 direitos. Esse arcabouço contribuiu para a situação ambígua, contraditória e dotada de insegurança jurídica da situação de liberdade, que se resumia a transações ou negociações de propriedade. Mas o ponto é que essa permeabilidade também funcionava como porta para a cooptação, à medida que trazia perspectivas sobre a liberdade, contudo, garantindo o extremo controle das massas. Essa cooptação é algo que pode também ser observado nos padrões de alforria e manumissão. Refletindo sobre eles, o Brasil teve uma taxa mais expressiva em sua quantidade, bem como no que se diz respeito às ações de liberdade, do que em outros países, como os EUA. Diferentemente desse país e de outros como a França, outro tópico digno de destaque é que o reconhecimento de direitos não se baseou na lógica do “tudo ou nada”. E isso foi utilizado para a manutenção do sistema, com bases coloniais, arcaicas e violentas, ao passo que se visava incluir o país no grupo das nações “cultas” através da modernização. Foi sedimentado um mecanismo de “autolegitimação” das normas liberais. Uma norma, para ser válida, deveria ser considerada liberal. Mas quem falava o que era ou não liberal eram as elites imperiais. Portanto, a validade das normas segundo essa visão não tinha como fundamento último qualquer ideia de justiça social, mas as bases do ideário liberal. Essa é uma das razões pelas quais dizemos que o liberalismo brasileiro ainda era liberalismo, manifestado em suas contradições (como o relacionamento com a escravidão), mas ganhando particularidades através da materialidade histórica. Diante desse escopo, não podemos presumir que houvesse qualquer ingenuidade das elites imperais quanto à força de expedientes retóricos desse ideário, particularmente no que tange aos conceitos de liberdade e igualdade, fundamentados na propriedade. Eles foram utilizados para o mencionado aliciamento e sua instrumentalização foi determinante para a escravidão continuada que tivemos. Ao invés de um mero transplante apático de ideias, ocorreu a apropriação e o seu uso como armas ideológicas. Ainda que em um primeiro momento essas ideias tenham sido absorvidas sem uma abordagem própria, sendo reproduzidas para justificar a ação política, isso vai acontecer em sequência, no Segundo Reinado. É nesse período que passamos a ter interpretações internas sobre o liberalismo brasileiro e que são sofisticadas as ferramentas ideológicas para suprir os problemas vinculados às nossas próprias contradições. Somava-se ao repertório europeu a experiência nacional. Somente no Segundo Reinado é que o liberalismo estamental passa 269 a ser contestado, por pensadores como os intelectualmente marginalizados da Escola de Recife. Industrialização, avanço tecnológico, crescimento da vida urbana e organização dos movimentos emancipatórios foram alguns dos fatores que corroboraram com um “surto de novas ideias” e com o desenvolvimento da crença de que a escravidão estava, enfim, com os dias contados. Um dos ganhos intelectuais no Segundo Reinado foram as ideias trazidas pela Escola de Recife, em caráter contestatório ao liberalismo estamental estabelecido, em uma dinâmica que não se via desde a década de 1820, no liberalismo heroico. As perspectivas de seus representantes mostraram-se relevantes para solidificar visões direcionadas à realidade nacional e aos problemas internos de organização política que o país enfrentava. Algo marcante vai ser a relação entre liberalismo e conservadorismo e como essas tendências assim autonomeadas transitaram no poder. A complexidade de suas nuances não pode ser resumida em uma afirmação de equivalência entre as correntes, porém, um dos interesses conjugados no início da segunda metade do século XIX foi a mantença da escravidão. As disputas foram intensificadas com a Lei do Tráfico e a Lei de Terras de 1850, que colocava em voga a inviolabilidade do direito à propriedade. Nas últimas décadas do Império, essas diferenças entre as tendências tornaram-se mais expressivas e a discussão sobre o direito de propriedade voltaria a reunir o setor que tanto havia insistido na salvaguarda de seus escravos como bens passíveis de disposição, e agora permanecia detendo o poder sobre a terra. Destacamos que a legalidade é uma manifestação específica da sociedade capitalista, de modo que o liberalismo pode adquirir características reacionárias em momentos de crise, tempos nos quais a legalidade pode ser tomada como pauta de viés progressista, mediante violações de limites determinados por lei. Quando foi admitida a iminência do fim da escravidão, deu-se a largada de uma verdadeira corrida entre as tendências autodenominadas liberais e conservadoras, importando quem tomaria as medidas, em detrimento de seu conteúdo. A Lei de Terras também teve o viés de impedir que ex-escravos e imigrantes tivessem as suas próprias terras, tornando-se trabalhadores abundantes e baratos para os latifundiários. Podemos notar um caráter marcadamente reativo da produção legislativa, que buscava responder no limite a ameaças de perturbação da ordem instituída. O debate 270 sobre a Lei de Terras é também relevante para notar que o Brasil, diferentemente dos países europeus, era um país predominantemente agrário. A partir da Lei de Terras e da descentralização de poder, somada à concentração de latifúndio que viria a partir dela, é que o coronelismo encontraria suas bases, a partir da reorganização das elites agrárias. O Direito trabalhou para manter o mundo dos não livres apartado da sociedade civil, negando-lhe o reconhecimento ao pecúlio, à formação familiar e uma série de outros direitos, sem falar dos castigos e da pena de morte aos escravos. Curiosamente, o Direito Penal dava vislumbres da ideia de personalidade aos escravos, mas de maneira exclusiva para puni-los. Um outro exemplo do isolamento do mundo dos não livres foi a impossibilidade dos escravos de terem suas próprias terras, como pode ser observado na Lei de 1850. Logo, o conjunto de mecanismos de cooptação por meio do discurso jurídico serviram para garantir a permanência da escravidão, que se deu através e com o impulso da via legal. Quando o direito inviolável de propriedade passou a ser de fato ameaçado, pequenos, médios e grandes proprietários de escravos voltaram a se unir, independentemente de seu autodenominarem liberais ou conservadores. A saída para garantirem os seus anseios baseava-se na ideologia que defendia a propriedade como um direito fundamental. Procurando uma outra roupagem, a saída antevista foi justamente a descentralização política e a República. Com a Lei de Terras e o reconhecimento do conceito moderno de propriedade, a organização que se colocava estava voltada a uma estrutura descentralizada. A ideia de descentralização política também atraía um setor mais “progressista” da elite agrária, que buscava novos espaços para ampliação de poder. Nesse momento, entra novamente a chave do discurso jurídico. A centralização política não interessava às classes proprietárias, pois restringia a expansão do seu poderio e submetia ao crivo do governo central as decisões políticas. A escravidão, na esfera internacional, não era mais tomada como algo interessante do ponto de vista do circuito de trocas mercantis. O discurso jurídico foi relevante para que a escravidão fosse eliminada paulatinamente, dando mais tempo às classes proprietárias para que se organizassem em torno das mudanças que estavam por vir. A escravidão foi perpetuada ao seu máximo, até que esse plano, que vinha desde os tempos da Conciliação entre liberais e conservadores, pudesse ser executado. Com o fim do tráfico, a escolha para a pauta emancipatória foi a via legal, lenta e gradual, sem grandes ameaças ou contraposições aos proprietários. 271 Tivemos, é claro, importantes ganhos nesse percurso, como o reconhecimento ao pecúlio e maior proteção aos vínculos familiares por meio da Lei do Ventre Livre e, dentre outros, a intensa mobilização do aparelho judicial pelas ações de liberdade. Mas não houve uma preocupação do liberalismo nem do Direito brasileiro com o que aconteceria com esses grupos após a emancipação. E as ideias, sobre eles e elas como inimigos da nação, estavam tão enraizadas que não iriam simplesmente se esvair após uma lei que determinou a libertação e entrada dos escravos no mundo dos livres e humanos em meros dois artigos. De todo modo, o que pretendemos enfim frisar é que as ideias liberais e escravagistas permaneceram incorporadas na estrutura jurídico-política brasileira. Esse arcabouço desemboca, em última instância, na questão racial e no racismo estrutural. O liberalismo não era um só. Longe de ser uma fórmula estanque, suas ideias trouxeram uma forma, a ser preenchida pelo conteúdo da realidade material. Relacionando-se primeiramente à libertação em face da metrópole, o liberalismo foi a utopia heroica da Independência. Foi adquirindo facetas estamentais após a dissolução da Constituinte de 1823 e advento da nova ordem constitucional. Passou a significar uma oposição partidária em relação aos “conservadores”, remontando no fim do Império à conservação do direito de propriedade sobre terras, transmutando-se em um liberalismo oligárquico no início da República. Por meio deste trabalho, procuramos demonstrar que o liberalismo brasileiro vai além da mera rotulagem de tendências e que o modo como o Direito tratou a metabolização entre liberalismo e escravidão é crucial para o entendimento dos diversos liberalismos que tivemos no país. Além disso, em como a ideologia liberal representa uma chave teórica relevante para apreender as formas de se pensar o Direito no Brasil e descontruir valores longamente introjetados em nossa superestrutura jurídico-política. Propusemos, desse modo, a noção de liberalismo jurídico para analisar essa relação, levando em conta que ele abarcaria as bases desse ideário — como a ideia de propriedade e os expedientes retóricos de liberdade e igualdade —, mas que o liberalismo brasileiro não se encontrava estagnado frente às mudanças da realidade social, sendo trabalhado em novas formas para transpor contradições e sendo definido em suas peculiaridades pela realidade material. Com esta pesquisa, nossa intenção não era exaurir o debate sobre o liberalismo como ideia fora do lugar, mas lançar novas perspectivas e possibilidades de reflexão, tomando o Direito como ferramenta primordial de análise e sublinhando como essa 272 relação (liberalismo-escravidão) foi digerida a partir dele, isto é, da via legal, na nossa realidade. A forma jurídica no Brasil oitocentista foi moldada pelo liberalismo, significando dizer que as manifestações nessa esfera, e sua própria constituição, sofreram implicações essenciais a partir disso. Esperamos que este trabalho incite novas propostas, voltadas à interpretação da realidade nacional, a partir dela mesma, e compreendendo a relevância do Direito para tanto. 273 REFERÊNCIAS ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS. Acadêmicos. Sílvio Romero. Biografia. Disponível em: https://www.academia.org.br/academicos/silvio-romero/biografia. Acesso em: 2 mai. 2022. ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS. Acadêmicos. Tobias Barreto. Biografia. 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