UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE MARCELINO DONIZETI DE OLIVEIRA GALDINO RELAÇÕES DIALÓGICAS ENTRE O TEXTO VERBAL E A OBRA PICTÓRICA São Paulo 2009 MARCELINO DONIZETI DE OLIVEIRA GALDINO RELAÇÕES DIALÓGICAS ENTRE O TEXTO VERBAL E A OBRA PICTÓRICA Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras do Centro de Comunicação e Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Letras. Orientadora: Profª. Drª. Aurora Gedra Ruiz Alvarez São Paulo 2009 G149r Galdino, Marcelino Donizeti de Oliveira. Relações dialógicas entre o texto verbal e a obra pictórica / Marcelino Donizeti de Oliveira Galdino – 2009. 82 f. : il. ; 30 cm. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2009. Bibliografia: f. XX-82. 1. Dialogismo. 2. Interdiscursividade. 3. Semiótica greimasiana. I. Título. CDD 809 MARCELINO DONIZETI DE OLIVEIRA GALDINO RELAÇÕES DIALÓGICAS ENTRE O TEXTO VERBAL E A OBRA PICTÓRICA Dissertação apresentada à Universidade Presbiteriana Mackenzie como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Letras Aprovado em BANCA EXAMINADORA _____________________________________________________________ Profª. Drª. Aurora Gedra Ruiz Alvarez – Orientadora Universidade Presbiteriana Mackenzie _____________________________________________________________ Profª. Drª. Maria Luiza Guarnieri Atik Universidade Presbiteriana Mackenzie _____________________________________________________________ Profª. Drª. Norma Discini de Campos Universidade de São Paulo Dedico este trabalho aos meus queridos pais, Miguel e Iolanda. À minha esposa amada, Érika Ehara Galdino, que pacientemente esteve ao meu lado durante todo o trabalho. Aos meus irmãos Marcos, Márcio, Mauro e Ísis. Aos verdadeiros amigos que sempre me acompanharam. A todos aqueles que de alguma forma me apoiaram e me incentivaram a trilhar este caminho. E, finalmente, à professora Aurora que não só me orientou tecnicamente, mas, principalmente, ensinou-me o verdadeiro significado de ser mestre. AGRADECIMENTOS À Instituição Universidade Presbiteriana Mackenzie pelo ambiente inspirador. Aos professores que sempre me incentivaram e participaram de minha formação desde as séries iniciais. À minha orientadora Profª. Drª. Aurora Gedra Ruiz Alvarez, a quem serei sempre grato pelas orientações técnicas e pela dedicação para comigo, além da insistente motivação para escrever e estudar sempre. À Profª. Drª. Maria Luiza Guarnieri Atik, do Mackenzie, pelas orientações muito pontuais que foram de grande ajuda na minha qualificação. À Profª. Drª. Norma Discini de Campos, da Universidade de São Paulo, pelo tempo dedicado à leitura do trabalho e pelos estímulos e orientações na qualificação. A maior parte das gaivotas não se preocupa em aprender mais do que os simples fatos do vôo – como ir da costa à comida e voltar. Para a maioria, o importante não é voar, mas comer. Para esta gaivota, contudo, o importante não era comer, mas voar. Antes de tudo o mais, Fernão Capelo Gaivota adorava voar (Richard Bach). RESUMO Este trabalho tem como propósito analisar e relacionar entre si textos verbais e não verbais. Observamos os recursos propiciadores de leituras, assim como os elementos constitutivos de sentido encontrados na construção dos contos “Leite empedrado”, de Fabrício Carpinejar, e “Apenas eco”, de Flávio Izhaki, publicados na obra Contos sobre tela, de Marcelo Moutinho. Também estudamos as pinturas “As gêmeas”, de Alberto da Veiga Guignard, e “Moças”, de Di Cavalcanti, presentes na obra supracitada como referencial de intertextualidade e interdiscursividade. Dessa forma, analisamos as intenções, os pressupostos e os implícitos inscritos nos discursos dos textos verbais e visuais, com base nos fundamentos teóricos da filosofia da linguagem de Bakhtin e da semiótica francesa de Greimas. No exame dos textos, pretendemos ainda discutir a questão relativa à materialidade da linguagem utilizada nos contos, bem como os efeitos de sentido que essa escolha textual produz de um campo novo de descrição e de análise do não verbal. Em primeira instância, não pressupomos o repasse do não verbal pelo verbal, mas apresentamos um instrumental de interpretação das imagens. Por meio deste estudo, acreditamos encontrar uma forma de analisar, construir significados e mostrar as relações da leitura do signo verbal e do texto plástico-pictórico. Palavras-chave: Dialogismo. Interdiscursividade. Semiótica greimasiana. ABSTRACT The purpose of this paper is to analyze and relate verbal and nonverbal texts with each other. We observe the resources that stimulate readings, and also the constitutive elements of meaning found in the elaboration of the short stories: "Leite empedrado", by Fabrício Carpinejar, and "Apenas eco", by Flávio Izhaki, both published in the book Contos sobre tela, by Marcelo Moutinho. We also study the paintings "As gêmeas", by Alberto da Veiga Guignard, and "Moças", by Di Cavalcanti, that are included in the book abovementioned as reference of intertextuality and interdiscursivity. Therefore, we examine the intentions, assumptions and implicit elements registered in the discourses of verbal and visual texts, based on the theoretical aspects of the philosophy of language studied by Bakhtin and the French semiotics of Greimas. In the analysis of the texts, we intend to discuss the question related to the materiality of the language used in the short stories, as well as the effects of meaning that this textual choice produces from a new field of description and analysis of the nonverbal. At first, we do not assume the transfer of the nonverbal to the verbal, but we present an instrument to interpret the images. With this study, we aim to find a way to analyze, elaborate meanings and show the relations in the reading of the verbal sign and also of the pictorial text. Keywords: Dialogism. Interdiscursivity. Greimasian semiotics. SUMÁRIO INTRODUÇÃO .................................................................................... 10 1 RELAÇÕES DIALÓGICAS ENTRE O TEXTO VERBAL E A OBRA PICTÓRICA ........................................................................................ 13 1.1 ANÁLISE DA CONSTITUIÇÃO DA IMAGEM ..................................... 15 1.2 A PALAVRA E O SENTIDO ................................................................ 17 1.3 O PERCURSO GERATIVO DE SENTIDO 19 2 ANÁLISE SEMIÓTICA DA PINTURA “MOÇAS”, DE DI CAVALCANTI, E DO CONTO “APENAS ECO”, DE FLÁVIO IZHAKI ................................................................................................ 21 3 ANÁLISE SEMIÓTICA DA PINTURA “AS GÊMEAS”, DE ALBERTO GUIGNARD, E DO CONTO “LEITE EMPEDRADO”, DE FABRÍCIO CARPINEJAR .................................................................. 47 3.1 O DUPLO COMO ELEMENTO DE ANÁLISE COMPARATIVA ......... 60 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................... 67 5 REFERÊNCIAS .................................................................................. 73 6 ANEXOS ............................................................................................. 75 10 INTRODUÇÃO O propósito deste trabalho é analisar e relacionar entre si textos verbais e não verbais, apontando como os elementos constitutivos de sentido são utilizados nos enunciados para a produção de sentido dos textos estudados. Para tanto, abordamos os recursos propiciadores dessas leituras, os elementos recorrentes na construção dos contos “Apenas eco”, de Flávio Izhaki (2005), e “Leite empedrado”, de Fabrício Carpinejar (2005), bem como os elementos constitutivos presentes nas pinturas “As gêmeas”, de Alberto da Veiga Guignard (1940), que faz parte da coleção Nacional de Belas Artes/IPHAN/MinC, e “Moças”, de Di Cavalcanti (1968)1. Os contos e as pinturas presentes no livro Contos sobre tela, de Marcelo Moutinho, que reúne dezesseis escritores que se inspiraram em pinturas e esculturas de grandes artistas nacionais e produziram contos a partir de seus olhares sobre o tema apresentado nos textos pictóricos. Dessa observação sobre o uso das diversas linguagens sobre os mesmos assuntos, depreendemos as relações de intersemioticidade e interdiscursividade que mereceram um exame acurado neste trabalho. Assim, estudamos a materialidade da linguagem utilizada nos contos e nas pranchas, bem como discutimos as escolhas discursivas sugeridas pelas opções realizadas pelo criador e pela dinâmica do texto. Com esse propósito, visamos à formulação da análise comparativa entre o verbal e o não verbal, ou seja, analisamos a (re)construção de um texto a partir de outro texto de natureza semiótica diferente. Com este estudo, acreditamos encontrar um meio de apreender e construir os significados dos enunciados analisados a partir da leitura dos contos e dos textos plástico-pictóricos. Desse modo, podemos dizer que é possível concretizar um aparato instrumental teórico que permita a interpretação desses e de outros textos. Por meio desses estudos, buscamos estabelecer as relações dialógicas e discursivas que unem tais enunciados pela escolha de um lugar social, histórico e cultural comum, e também pelos próprios ideais de modo de presença. Por esse motivo, esses fenômenos são tratados como realidades intersemióticas 1 As duas pinturas que ilustram este trabalho foram escaneadas do livro: MOUTINHO, Marcelo (org.). Contos sobre tela. Rio de Janeiro: Pinakotheke, 2005. 11 compreendidas como uma das faces do dialogismo de Bakhtin. Também procuramos mostrar a relação que existe entre os textos examinados e o modo como estabelecem inter-relações: A enunciação do narrador, tendo integrado na sua composição uma outra enunciação, elabora regras sintáticas, estilísticas e composicionais para assimilá-la parcialmente, para associá-la à sua própria unidade sintática, estilística e composicional, embora conservando, pelo menos sob uma forma rudimentar, a autonomia primitiva do discurso de outrem, sem o que ele não poderia ser completamente apreendido (BAKHTIN, 2006a, p. 151). As práticas discursivas envolvem um enunciador e sua produção em um contexto histórico-social concernente à situação. Nesse processo de enunciação que está inserido nas esferas ideológicas existem diferenças profundas. Cada campo da criatividade ideológica tem um modo próprio de orientação para a realidade, refletindo seu modo e dispondo de função própria no conjunto da vida social. É a partir do caráter semiótico que é possível observar todos os fenômenos ideológicos sob a mesma definição geral. Dessa maneira, estudamos como os mecanismos discursivos podem estabelecer as relações dialógicas que se conectam aos acontecimentos que as envolvem. Isso significa que o estudo das relações dialógicas nos permite perceber os outros discursos que fazem parte ou que estão ligados a tais relações, e entender as diferentes ideologias e as posições axiológicas dos sujeitos. A partir dessas concepções, as práticas discursivas podem ser entendidas como enunciados verbais ou verbo-visuais inseridos em determinadas situações discursivas que os legitimam, garantindo sua produção, circulação e recepção pelo leitor dos textos. Assim, o objetivo principal deste trabalho é desenvolver perspectivas voltadas ao estudo comparativo e interpretativo de textos que retomam o mesmo tema, no caso deste trabalho, os contos e as suas respectivas pinturas. Para tanto, investigamos como são utilizados os elementos que constituem essas relações. Esperamos mostrar como o processo de interpretação e a construção diferenciada desses textos podem gerar, ou não, a mesma significação. Pretendemos, por conseguinte, fazer a leitura imagética do signo linguístico com a finalidade de conhecer as propostas de interação verbal e visual como parceria para a leitura e a 12 formação de múltiplos olhares e, consequentemente, múltiplas leituras. Também buscamos verificar a intencionalidade presente nos diferentes textos. 13 1 RELAÇÕES DIALÓGICAS ENTRE O TEXTO VERBAL E A OBRA PICTÓRICA As relações dialógicas, segundo Bakhtin, são: Relações (semânticas) entre toda espécie de enunciados na comunicação discursiva. Dois enunciados, quaisquer que sejam se confrontados em um plano de sentido (não como objetos e não como exemplos linguísticos), acabam em relação dialógica (BAKHTIN. 2006b. p. 323). Assim como em outras artes, na literatura é muito frequente um texto retomar outro para confrontá-lo ou reafirmá-lo. Diferentemente de um texto de caráter científico que cita outras fontes de forma explícita, o texto literário faz essas citações, geralmente, em forma de alusão intertextual. Às vezes, não somente as ideias ou o estilo de outro autor permeiam o tecido narrativo, também encontramos ocorrências em que as apropriações de elementos constitutivos de sentido acontecem entre textos de diferentes linguagens como, por exemplo, um texto pictórico e um texto verbal, como é o caso da análise deste trabalho. Esse diálogo2 produzido entre os enunciados é o resultado de certas recorrências de elementos encontrados nos dois textos. Quando um texto faz citação de outro, tem a intenção de reafirmar ou inverter, sacralizar ou contestar e deformar alguns sentidos do texto citado para estabelecer uma relação contratual ou polêmica com ele. É o analista do discurso que vai interpretar como textos de diferentes linguagens interagem ou podem interagir. Nesse gesto analítico de reconstrução dos sentidos, observamos a intersecção entre as pinturas e os contos produzidos a partir da interpretação que contistas fizeram das imagens. Dessa forma, o estudo semiótico tem como papel descrever e explicar o que o texto diz e como ele diz analisando, de forma minuciosa, os diversos textos para construir seu sentido a partir do jogo da interdiscursividade3 nas relações com o contexto daqueles enunciados. 2 Segundo Bakhtin, diálogo ou dialogismo são as relações de sentido que se estabelecem entre dois enunciados. O processo de dialogização da palavra é interno, pois é perpassada sempre pela palavra do outro. 3 A interdiscursividade pode ser definida pela forma de como um autor assemelha-se ou inspira-se em outro para conduzir o seu discurso, ou seja, o desenvolvimento do tema de sua obra. Esse termo diz 14 O trabalho de interpretação semiótica procura conhecer como ocorre a construção de sentido em uma pintura, um conto, uma encenação, ou qualquer outro texto que possa ser interpretado. Segundo Santaella, Semiótica é a ciência que tem por objeto de investigação todas as linguagens possíveis, ou seja, que tem por objetivo o exame de modos de constituição de todo e qualquer fenômeno como fenômeno de produção de significação e de sentido (1999, p. 13). Seguindo a mesma forma de pensamento, a análise semiótica greimasiana é uma teoria de interpretação que busca enfocar a edificação dos propósitos nos diversos textos. Essa teoria mostra o mundo como um conjunto de tessituras (interdiscursos) a ser descoberto. Assim, o entendimento do texto no sentido integral é analisado a partir de observações principiadas nos elementos constitutivos de sentido, ou na materialidade do seu conteúdo. Isso significa que os estudos teóricos apontam para uma mesma direção no que diz respeito à relação de sentido na construção e na interpretação de diferentes textos. Nessa concepção, toda obra literária e, consequentemente, toda obra pictórica podem ser analisadas a partir dos postulados teóricos formulados por Bakhtin, que vê a linguagem como um processo de interação entre sujeitos constituídos de forma social e histórica. Vejamos: No dialogismo incessante, o ser humano encontra o espaço de sua liberdade e de seu inacabamento. Nunca ele é submetido completamente aos discursos sociais. A singularidade de cada pessoa no “simpósio universal” ocorre na “interação viva das vozes sociais”. Nesse “simpósio universal”, cada ser humano é social e individual (FIORIN, 2006b, p. 28). Portanto, a linguagem só é compreendida se houver apreensão dos seus elementos constitutivos. Isso implica em tempo, lugar, participantes e seus propósitos comunicativos que podem ser variados como, por exemplo, recuperar algo já dito para reafirmá-lo ou negá-lo, introduzindo outro olhar sobre o já visto/dito, desvelando outros sentidos e estabelecendo uma compreensão ativa. Na produção da análise semiótica, a tradução de um texto pode ser feita sob dois enfoques: um que enfatiza um fazer interpretativo e outro que procura mostrar a respeito ao diálogo entre discursos ou à forma como um determinado tipo discursivo se constitui em relação a outros tipos já conhecidos. 15 produção de sentidos. O uso dos diferentes mecanismos de constituição de sentido em determinado texto é o que permite a (re)leitura de uma tipologia textual em outro, ou seja, é na recorrência de certos elementos que o enunciatário percebe a intertextualidade em ambos. Assim, a imagem visual é representada no texto verbal, ou vice-versa, evidenciando os elementos que compõem a intersemiótica4. O conceito de intersemioticidade é importante para a teoria da semiótica francesa devido ao valor que atribui ao princípio de imanência, isto é, dentro das singularidades de cada texto, de certa forma, todos se completam e se reafirmam. O estudo das relações entre os textos verbais e os pictóricos que representam os verbais, de acordo com a análise semiótica, deve oferecer uma aplicação da relação de interpretação e produção de sentido, privilegiando a pesquisa e a reflexão desse processo. É justamente essa compreensão que se espera do leitor dos textos escritos e das pinturas. Portanto, a interdiscursividade tende a ser paralela em todas as artes, já que os gêneros que agrupam todos os enunciados são determinados a partir do plano de conteúdo, não do plano da expressão. Ao imitá-los, passa a expressá-los por mimese5, adaptando-se a eles e originando vários gêneros que resultarão em elementos representantes de expressão. Além disso, cada arte pode traduzir a outra a partir de sua natureza, recriando- a dentro do seu universo. E, mais uma vez, ocorre o paralelismo que vai permitir que os mesmos gêneros aconteçam, ou sejam representados, em todas as outras artes. Consequentemente, todos os gêneros da literatura podem ser repetíveis na pintura, da mesma forma que todos os gêneros da pintura podem ser descritos na literatura, ou em outras artes mesmo com as respectivas adaptações. Porém, tais adaptações podem sofrer alterações de toda ordem: enformar-se de acordo com o suporte escolhido, receber outra denominação dos objetos representados, traduzir um olhar diferente sobre o mundo. Essas alterações ocorrem porque uma releitura é criada segundo a interpretação e o conhecimento linguístico e cultural do criador. 1.1 ANÁLISE DA CONSTITUIÇÃO DA IMAGEM 4 Intersemiótica é o termo utilizado para representar a interpretação dos signos verbais por outros não verbais, ou vice-versa. Também representa a interpretação de um tipo de texto por outros diferentes: a literatura pelo cinema, a pintura pela literatura, e assim por diante. 5 O conceito de mimesis é apresentado por Platão para se referir à imitação da natureza pelo homem. 16 A representação plástico-pictórica é uma simulação do fazer humano em relação ao modo como é compelido a criar e a exteriorizar seu entendimento de mundo interior. A pintura é a arte que utiliza as tintas para representar a imaginação do homem, sua necessidade de recriar e de mostrar as diferentes formas como interpreta sua realidade. Na composição pitoresca, o artista privilegia o espaço, a cor, a linha, a forma e a ilusão concernente ao texto pictórico, ao passo que o texto verbal procura criar o mesmo objeto a partir de sua descrição por meio de palavras. É nesse ponto que as duas artes convergem, pois se completam dentro de suas diferenças. Enquanto uma se apoia no visual e na criação imagética da representação do objeto, o texto verbal cria a descrição do mesmo objeto com os signos verbais. Portanto, trata-se de um processo de intersemioticidade que (re) afirma o momento da representação de uma dada realidade mediada por linguagens diferentes. A pintura sugere a realidade do seu sujeito enunciador por meio de elementos materializadores visuais como cores, linhas, formas e outros meios presentes na pintura. Os textos escritos, por sua vez, para expor o mesmo objeto, utilizam todo um mecanismo de descrição que usa palavras permitindo que o enunciador possa representar o momento da constituição da enunciação. Diante disso, se ambas as artes criam as imagens e evocam a essencialidade do olhar, abre-se também a possibilidade da sobreposição entre elas. Ora, se é possível a relação entre textos de diferentes gêneros, por que seria diferente entre os textos verbais e os visuais? A semiótica é a teoria que analisa todo tipo de texto, logo, é também o aparato teórico para que possamos estudar as diferentes maneiras de representação do enunciador. O sentido, contudo, não está apenas nos elementos explícitos nas formas da língua organizada em enunciados, mas na parte percebida ou realizada em imagens. Está também em elementos não verbais, no contexto extraverbal e na parte presumida que torna a expressão plena de significado para o interlocutor. Assim, podemos dizer que o sujeito é o criador do sentido no processo de leitura dos textos. Cada fruidor, portanto, fará a sua leitura segundo a sua experiência, o seu conhecimento acerca do objeto lido. A importância desse fenômeno surgiu a partir da concepção bakhtiniana de interação entre os mais variados textos. Essa relação dialógica, segundo o teórico, é a relação do enunciado inscrito em um dado momento, ou seja, o texto não é visto 17 isoladamente, mas sim a partir da relação com outros discursos similares. Segundo Fiorin (2006b, p. 17) em seu livro Introdução ao pensamento de Bakhtin, há três eixos básicos sobre o pensamento bakhtiniano: unicidade do ser e do evento, relação eu/outro e dimensão axiológica. São essas coordenadas que estão na base da concepção dialógica da linguagem. Isso quer dizer que um enunciado só pode ser estudado mediante o momento de sua criação e a partir de todo o contexto que o envolve. É levado em consideração nos dois grupos de análise o tipo de abordagem que foi dado em cada texto; pois, se na representação pictórica há a preocupação com os elementos figurativos como o cromatismo, a topologia e as composições eidéticas, nos textos verbais a preocupação do enunciador fica por conta do processo de narratividade e os elementos de isotopias utilizados para mostrar sua intencionalidade. Essa constatação é o ponto de partida desta análise. A análise semiótica como uma teoria de significação que busca enfocar a construção de sentido nos diversos textos, entre eles o pictórico, norteia o estudo das relações que se estabelecem entre o conto de Flávio Izhaki e a pintura de Di Cavalcanti que foi o referencial para a produção do conto. “O primeiro conceito de dialogismo diz respeito, pois, ao modo de funcionamento real da linguagem: todos os enunciados constituem-se a partir de outros”. (FIORIN, 2006b, pág. 30) Essa teoria mostra o mundo como um emaranhado de tramas que se interligam e se completam gerando, por meio do diálogo estabelecido pelas suas singularidades, um produto final que é a exposição do que foi apreendido pela interpretação. A problemática da significação é estudada a partir de estudos que partem da Semântica Estrutural, proposta por Ferdinand de Saussure, em sua obra Curso de Linguística Geral. A partir deste ponto os linguistas preocuparam-se com a análise de unidades maiores do que simplesmente a palavra. Algirdas Julien Greimas, linguista lituano de origem russa que contribuiu para a teoria da Semiótica e da narratologia, aposta na possibilidade de uma metalinguagem teórica que seja capaz de abordar todo processo de construção dos textos. Nessa concepção, toda obra literária e, consequentemente, toda obra pictórica são consideradas um texto a ser interpretado pelo leitor. A possibilidade de leitura de uma imagem é garantida pela referencialidade presente na obra, o que garante seu prestígio como um tipo de linguagem a ser analisada. Dadas essas propriedades, não se trata de dizer que a imagem também 18 informa ou comunica como o texto verbal, mas sim que ela se constitui em um texto em sua especificidade. Isso principia a observação nos modos como os elementos constitutivos da imagem são organizados; implica também no trabalho de interpretação da imagem como representação de um todo para sustentar a intencionalidade produzida com os textos verbais. 1.2 A PALAVRA E O SENTIDO O valor conotativo de uma palavra, uma expressão ou um texto depende sempre de uma situação sócio-histórica e cultural em que se situa. Todo o contexto, no momento da enunciação, define sua intencionalidade, seu discurso e a maneira como o enunciador do texto utiliza os mecanismos de significação. Assim, de acordo com sua intenção naquele momento, o enunciador pode apresentar um texto utilitário voltado inteiramente para a realidade empírica, com o objetivo de informar um conteúdo, lançar mão dos recursos que apenas são encontrados na linguagem literária, e criar um texto temático-figurativo. Porém, o leitor desse texto pode, às vezes, não perceber a diferença entre o sentido denotativo ou a plurissignificação utilizada pelo enunciador, o que impossibilita o entendimento do texto. O conto em análise é um bom exemplo de linguagem polissêmica. A constituição do conjunto conteúdo/expressão apresenta uma trama de elementos coesivos que dá significação à expressão e procura dar a tessitura necessária à construção textual, permitindo que o leitor possa identificar na microestrutura e na macroestrutura os elementos constituintes de sentido do texto. O texto literário, como no caso do conto em análise, é voltado para o conteúdo. O importante é a maneira como o texto foi construído, mais até do que a própria realidade retratada na narrativa. Esse tipo de texto não tem a obrigatoriedade da objetividade encontrada em textos não ficcionais que ilustram certa realidade mediante a imagem criada pelo modo de apresentação do conteúdo. Dessa maneira, o texto como objeto cultural – um romance, uma pintura, uma música – tem sua especificidade e sua distinta forma de constituição e de manifestação. Entretanto, esses objetos ainda não estão prontos, pois se destinam à fruição e dependem de um posicionamento de recepção e compreensão do leitor dos textos. 19 1.3 O PERCURSO GERATIVO DE SENTIDO A escolha do processo de análise deste trabalho se justifica pelo fato de que no percurso gerativo existe a possibilidade de interpretação em diferentes níveis, em uma sucessão de patamares. Cada um deles está suscetível a receber uma descrição mais adequada que produza sentido e cuja interpretação obedece a um processo que parte do mais simples até o mais complexo. O que diferencia a semiótica greimasiana das demais é que o sentido encontrado em uma interpretação é estudado a partir das relações semi-simbólicas entre o plano de expressão e o plano de conteúdo. Segundo Barros (2002b, p. 15), no percurso gerativo de sentido: Prevê-se a apreensão do texto em diferentes instâncias de abstração e, em decorrência, determinam-se etapas entre a imanência e a aparência e elaboram-se descrições autônomas de cada um dos patamares de profundidade estabelecidos no percurso gerativo. O conto “Apenas eco”, de Flávio Izhaki, será abordado sob o viés da análise semiótica, segundo os princípios da teoria greimasiana. Neste enfoque metodológico, observaremos os três percursos gerativos de sentido: nível das estruturas fundamentais, nível das estruturas narrativas e nível das estruturas discursivas. Em cada um desses níveis existe um componente sintáxico e um componente semântico que serão comentados mais adiante. As estruturas discursivas, conforme Diana, 2002, são consideradas as menos profundas ou as mais superficiais; as estruturas semionarrativas, por sua vez, dividem-se em dois patamares: um nível narrativo ou superficial e outro profundo. Cada um desses patamares (narrativo profundo, narrativo superficial e discursivo) constitui o percurso gerativo de sentido e está dividido em uma sintaxe e uma semântica. Um ponto importante a ser observado com relação a leituras mais profundas ou superficiais é que cada um desses elementos não comportam, dentro da teoria semiótica, nenhum juízo de valor como se o profundo fosse mais importante do que 20 o superficial. Cada um tem sua significação que está articulada em camadas, em uma rede de significações, em que os níveis ora especificam, ora são especificados. 21 2 ANÁLISE SEMIÓTICA DA PINTURA “MOÇAS”, DE DI CAVALCANTI, E DO CONTO “APENAS ECO”, DE FLÁVIO IZHAKI 2.1 O PERCURSO GERATIVO DE SENTIDO NA PINTURA6 A necessidade de se comunicar e se expressar faz com que o homem crie diferentes formas de representação daquilo que quer informar. Assim, para se fazer entender, interagir, explicar ou tentar compreender o mundo que sempre o cercou, o homem cria diferentes linguagens que coexistem e se completam com o mesmo propósito. Dessa forma, desde os tempos mais remotos, utiliza pinturas como meio de representação do seu cotidiano, das caças, da natureza e também dos elementos de sua religiosidade. O desenvolvimento da pintura, assim como da oralidade, foi um passo fundamental no desenvolvimento do ser humano. Por meio desses recursos, o homem passou a registrar tudo o que era importante para sua vida. Mas foi principalmente na pintura rupestre que o homem encontrou sua maior fonte de representatividade, percebendo que era possível descrever todas as suas ações, 6 Imagem escaneada do livro: MOUTINHO, Marcelo (org.). Contos sobre tela. Rio de Janeiro: Pinakotheke, 2005. 22 evocar sua divindade e ornar sua moradia. Ao mesmo tempo, compreendeu que sua comunicação oral não garantia a permanência de seu gesto criador. Nesse momento, houve a confirmação da importância da pintura na vida do homem. Assim, no decorrer da história e no desenvolvimento das habilidades de interação, a intersemioticidade foi se firmando como o meio de completude da expressividade do homem. A pintura é a arte que privilegia o espaço, a cor, a linha e as formas, já a literatura privilegia as palavras e ambas têm a mesma finalidade. A literatura sugere imagens subjetivas criadas pelas palavras, enquanto a pintura representa plasticamente a realidade. Se ambas criam imagens e evocam a essencialidade do olhar, abre-se a possibilidade de um imbricamento entre elas já que nas peculiaridades de cada linguagem são postas suas diferenças e semelhanças em traduzir, explicar ou entender o modo como o homem enxerga o seu mundo. Sendo assim, verificamos no conto “Apenas eco”, de Flávio Izhaki, as possibilidades de correspondências com a pintura “Moças”, de Di Cavalcanti, que foi o ponto de partida para a criação do texto verbal. Isso significa que o conto foi escrito a partir do recorte de uma realidade apresentada na prancha. Esse dado nos conduz a algumas indagações: há no conto os mesmos elementos constitutivos de sentido que existem na pintura? O autor se apoiou nos mesmos mecanismos de significação? Essas indagações são o ponto de partida para a análise das recorrências entre os textos citados. Novamente destacamos a utilização da análise semiótica neste estudo com finalidade de mostrar até que ponto acontece, ou não, a intersemioticidade. 23 A análise semiótica francesa é uma teoria que busca a formalização da construção de sentidos nos diversos textos utilizados pelo homem. Mostra também o mundo como um emaranhado de tramas que se interligam e se completam, gerando um produto final que é a exposição do que foi apreendido pela interpretação por meio do diálogo estabelecido pelas suas particularidades. Para o estudo da articulação entre o plano de conteúdo e o plano de expressão apreendidos na leitura desta prancha usaremos como ferramenta o quadrado semiótico proposto por Greimas. Visto que o quadrado semiótico consiste na representação visual da articulação lógica de qualquer categoria semântica. Assim esta etapa do estudo tem a intenção de analisar como os elementos compositivos da pintura “Moças” abordam todo processo de construção de significação. HOMOGÊNEO HETEROGÊNEO MONOCROMÁTICO COLORIDO HORIZONTAL VERTICAL NÃO – HETEROGÊNEO NÃO – HOMOGÊNEO NÃO – COLORIDO NÃO – MONOCROMÁTICO NÃO – VERTICAL NÃO – HORIZONTAL • HOMOGÊNEO → NÃO-HOMOGÊNEO → HETEROGÊNEO Na categoria eidética, onde se estuda as relações entre as formas, observamos as redes de oposição entre os corpos arredondados e voluptuosos das três moças, que praticamente preenchem toda a cena, em contraste com o modo como a mesa e o vaso com flores foram concebidos. 24 • MONOCROMÁTICO → NÃO-MONOCROMÁTICO → COLORIDO Há uma oposição entre o padrão monocromático das paredes, que são vermelhas de um tom escuro, e dos vestidos das moças (vermelho, roxo e verde), o que remete a uma idéia de padronização, em relação ao colorido das flores que estão dentro do vaso, sobre uma toalha branca, de uma mesa em segundo plano na pintura, que mesmo nesta condição chama mais atenção que as protagonistas em destaque. • HORIZONTAL → NÃO-HORIZONTAL → VERTICAL A disposição das linhas horizontais, nos encostos das cadeiras, na mesa ao fundo, no decote do vestido da moça de vermelho e a posição dos braços da segunda moça, estão em oposição às linhas verticais que compõe as paredes, a toalha da mesa e os braços da primeira moça. Como foi estudado anteriormente, no nível fundamental são abordadas as oposições semânticas que estão na base da construção de um texto. A prancha em análise que serviu de inspiração para o conto mostra uma cena em que estão retratadas três moças. Elas estão em uma sala pouco iluminada, onde é possível ver que as paredes são pintadas de vermelho e marrom, o que deixa o ambiente deveras escuro. Essa descrição mostra que é um ambiente propício para esconder a verdadeira identidade de quem quer que esteja por ali. Não há, nesse cômodo, a claridade característica de um lugar alegre onde as pessoas procuram entretenimento. Mas trata-se de um ambiente apropriado para encobrir atos que supostamente infringem um código de conduta socialmente aceito. A alegria que poderia ou deveria estar presente na vida de pessoas tão jovens não é observada nas expressões das três moças da tela. Todas estão sentadas e se mostram muito pensativas ou apreensivas pela espera de algo ou alguém. A moça em destaque, situada à esquerda da tela, está vestida de vermelho, cor que pode remeter à paixão ou a algo perigoso, de acordo com um conhecimento popular e folclórico, em que as cores são vistas em oposição semântica, onde, por exemplo, o branco, por exemplo, representa a paz, a luz ou a vida, em oposição ao preto que representa a guerra, a escuridão ou a morte. Dentro deste conhecimento cultural pode-se dizer que o vermelho remete ao perigo ou á sensualidade, que é o que queremos abordar neste contexto da obra. Ela tem a mão 25 direita sob o queixo e a outra está solta pelo do corpo. Seu semblante mostra que está muito pensativa, e a maneira como apoia o cotovelo no braço da cadeira revela certa impaciência. A moça do meio está com um vestido roxo. Uma de suas mãos segura a outra e ambas estão apoiadas nos joelhos. Ela tem um olhar muito inexpressivo e está encostada na parede, como se estivesse com o pensamento bem longe daquele lugar. A terceira moça, que está à direita, veste um vestido verde escuro, também tem as mãos sobre os joelhos e, novamente, uma mão está segurando a outra. Ela está olhando para o lado e tem uma expressão de preocupação. Entre as três moças, é possível ver ao fundo uma mesa com uma toalha branca, onde há um vaso de cor marrom com flores diversas e bem coloridas, que talvez sejam artificiais. Esse ambiente criado pelo artista exibe o mesmo estado de espírito das moças. As figuras visuais – moças – remetem a atores do enunciado materializado segundo volumes portentosos e voluptuosos da temática do artista. Assim, se forem levados em consideração os temas abordados pelo artista Di Cavalcanti em sua época, como por exemplo, as festas populares, pessoas comuns, feiras, a sensualidade das mulatas e as prostitutas, além de comparar com o texto escrito a partir da leitura destas imagens do quadro, é possível inferir que a prancha pode retratar um prostíbulo. Nesta primeira parte da análise, são observadas as seguintes oposições semânticas: P.E. CORES QUENTES vs. CORES FRIAS P.C. FELICIDADE vs. TRISTEZA • FELICIDADE → NÃO-FELICIDADE → TRISTEZA Quando o artista prepara suas tintas, telas e demais materiais utilizados na representação de sua expressividade, parte da sua inspiração e de todo um contexto para compor o seu trabalho. Assim, além do tema de sua pintura, ele escolhe as cores segundo as impressões que quer causar. Um dos efeitos que consegue transmitir é a dicotomia causada pela sensação de quente ou frio, felicidade ou 26 tristeza, e assim por diante. Isso significa que ele usa as cores como ferramentas para construir a significação de algo que quer expor. Dessa maneira, o artista consegue fazer com que o leitor de suas imagens perceba que as cores quentes são associadas ao sol e ao fogo: amarelo, laranja e vermelho. As cores frias, por sua vez, são associadas à água, ao gelo, ao céu: violeta, azul e verde. As cores quentes são consideradas excitantes e as cores frias são calmantes. Além dessa analogia de quente e frio, o pintor consegue se expressar de acordo com a significação universal das cores em que o vermelho pode significar perigo ou paixão. Exatamente como a mulher em destaque na qual não é possível identificar se sua intenção é atrair ou atacar. A mesma cor é propositalmente apresentada no conto para representar as cores das paredes: “neste ambiente de paredes vermelhas me aqueço, nesta penumbra viscosa me escondo” (IZHAKI apud MOUTINHO, 2005, p. 73). Dessa maneira, confirmamos a associação que pode ser feita entre as cores e as sensações que podem causar. Portanto, nesta prancha existe a isotopia cromática com a reincidência da cor vermelha, o que sugere a sensualidade característica das obras de Di Cavalcanti. P.E. MÃOS TENSAS vs. MÃOS RELAXADAS P.C. APREENSÃO vs. RELAXAMENTO • APREENSÃO → NÃO-APREENSÃO → RELAXAMENTO As moças retratadas demonstram em seus olhares, suas expressões e seus gestos uma impaciência incontida por algo que estão esperando. É perceptível que não se trata de uma situação confortável já que estão muito inquietas. O fato de a primeira moça apoiar o queixo na mão e o cotovelo no braço da cadeira mostra que está esperando algum acontecimento. Segundo Weil e Tompakow (1997, p. 49), “a expressão onde o queixo está apoiado nas mãos é uma espera firme, impaciente, desafiadora, e pode ser lido como uma postura negativa”. As outras duas moças estão com suas mãos apoiadas sobre o colo e ambas seguram uma mão com a outra. Os estudiosos consideram que essa postura é uma expressão clara de tensão demonstrada pelas mãos. Esse gesto pode indicar que a pessoa está se “segurando 27 em algo para não cair (no desespero)”, “preparando para a luta”, “apaziguando seus sentimentos”, ou “pedindo socorro” (WEIL; TOMPAKOW, 1997, p. 179). Isso quer dizer que é possível perceber que as três moças estão impacientes e inseguras com o que pode acontecer a qualquer momento. A mesma situação pode ser observada no conto. Por mais que a personagem seja sujeito do seu querer – seduzir o parceiro para ter uma relação amorosa regular ou para ter um filho –, ela é assujeitada pelo companheiro que domina a forma como a relação deve acontecer, ou seja, uma relação temporária. Ela não encontra caminhos seguros para conseguir o que almeja. P.E. ARTIFICIAL vs. NATURAL P.C. VIDA vs. MORTE • VIDA → NÃO-VIDA → MORTE Em meio a esse ambiente triste e pouco iluminado percebemos ao fundo, entre as três moças, uma mesa com um vaso com flores coloridas. O que pode significar esse ornamento? Podemos deduzir sobre essa cena que, na melhor das hipóteses, são flores artificiais ou, mesmo que não sejam, representam uma felicidade que não existe naquele lugar. O fato de o vaso estar sobre uma toalha branca em um lugar onde as paredes são pintadas de vermelho, demonstra que somente aquele pequeno espaço possui a luz inexistente em todo o restante do ambiente. Segundo o hábito popular, as flores são utilizadas para alegrar o ambiente, enfeitar ou agraciar alguém. Isso pode ter sido feito para equilibrar o uso (ou a falta) de outras cores na tela, ou para dar outro acento tonal àquele espaço. Podemos inferir ainda que a cor branca da toalha representa a paz e que sustenta o único lugar de felicidade da casa. Trata-se de uma situação artificial em relação àquela realidade das moças ali presentes. Assim como a realidade retratada na prancha, observamos que no conto a personagem não encontra a paz em momento algum. No início da trama, ela busca um companheiro, em outro trecho, tenta ter um filho. Em ambas as situações as personagens vivem uma grande insegurança e uma total falta de afeto. 28 P.E. RETAS vs. CURVAS P.C. RETILINIDADE vs. ROTUNDIDADE • RETILINIDADE → NÃO-RETILINIDADE → ROTUNDIDADE As formas predominantes nesta prancha e em outras obras do artista são circulares; é a rotundidade das formas femininas. Essa rotundidade está presente no vaso vermelho, nas flores, na mesa e nas figuras femininas. Existe, portanto, uma isotopia por meio do conjunto de elementos criados por essas formas. As características notadas na prancha são recorrentes nos temas abordados pelo pintor. As mulheres, a paisagem tropical, os pescadores e os elementos da natureza foram objetos de grande paixão do artista. Ele utiliza as cores para representar a alegria do povo em qualquer situação, seja no trabalho braçal, seja no carnaval. Inicialmente seus temas parecem singelos, mas após uma análise mais atenta descobrimos outros sentidos em uma camada subjacente de subsentidos que revelam sua verdadeira impressão sobre os elementos e mostra como expressa essa leitura em suas pinturas. Se a retilinidade demonstra a retidão, a integridade moral e os bons costumes, a rotundidade da obra explora a plasticidade e a sensualidade inerentes à anatomia feminina. O olhar triste, as curvas angulosas, o ar misterioso e os movimentos lentos e preguiçosos descrevem a mulher brasileira, a dama e a meretriz. Nas telas, o pintor explora os movimentos e as posições sob todos os ângulos, realçando as formas abundantes e os contornos até os limites do fantástico e do onírico. A rotundidade marcada no quadro em análise mostra a incorporação do erótico, seja pelas imagens sensuais das três mulheres em um ambiente muito sugestivo, seja pela temática conhecida e explorada por ele. Todos os elementos utilizados para a representação da mulher brasileira estão retratados nesta pintura. P.E. EQUILÍBRIO vs. DESEQUILÍBRIO P.C. ACEITAÇÃO vs. REJEIÇÃO • ACEITAÇÃO → NÃO-ACEITAÇÃO → REJEIÇÃO 29 A pintura apresenta um desequilíbrio causado não só pela posição das três moças no espaço da tela, mas pela posição de marginalidade a que as prostitutas são condenadas pela sociedade burguesa, ratificada por todo o ambiente boêmio retratado na prancha. Afinal, o que o artista quer representar com a sua tela? A sensualidade exacerbada dessas mulheres de vida boêmia é uma constante nas obras do artista. As cores fortes, as linhas grossas, a rotundidade e os temas brasileiros expostos em sua visão nacionalista estão muito presentes nesta pintura. É possível perceber que ele opta por utilizar as três figuras não só para ilustrar o desequilíbrio existente naquela situação explícita de prostituição, mas para reafirmar essa tônica bastante recorrente em sua obra. O desequilíbrio é causado pela posição dos corpos na tela. Duas figuras à esquerda e uma à direita. Notamos que para o olhar do observador elas não formam um triângulo equilátero, característica do Quatrocentto italiano que remete ao equilíbrio da obra por meio da harmonia da disposição dos elementos do quadro. A segunda figura que ocupa um dos vértices desse triângulo virtual não ganha destaque pelo fato de estar encoberta, quase que totalmente, pela mulher da sua esquerda. As três moças estão dispostas em um espaço muito reduzido, parecendo que é pequeno demais para comportar tantas pessoas. A posição das figuras não lembra a posição dos retratos de celebridades encomendados ao pintor. Ao contrário, as figuras parecem tencionar a representação de papéis diante da sociedade. Antes, são captadas pelo olhar do criador que as surpreende em seu momento de espera, apinhadas em determinado espaço social. Por essa razão, não distinguimos bem as formas da segunda figura que está em segundo plano em relação à figura sentada que segura o queixo. O desequilíbrio materializado pela disposição das figuras na tela é percebido no plano de conteúdo e no plano de expressão. Fica muito evidente em todos os elementos que compõe o cenário que se trata de um prostíbulo, um dos temas muito abordados pelo artista. As três moças retratadas vivem em uma situação enigmática: estão naquele lugar por vontade ou por obrigação? Elas estão sentadas, mas não estáticas. Todas se mostram inquietas com mãos que não repousam sobre o colo, mas sim protegem ou escondem suas intimidades. As três têm o olhar despreocupado e alheio ao ambiente. Demonstram, porém, nas suas expressões, uma inquietação própria de quem tem muita ansiedade. 30 O conto de Flávio Izhaki escrito a partir desta pintura mostra o sujeito “moça” que, por mais que tenha se empenhado em encontrar um companheiro ou pelo menos algum homem que lhe garantisse um filho, continuou sozinha durante toda a trama já que não encontrou o seu parceiro. Por conseguinte, tornou-se uma meretriz. A sanção de sua história é disfórica, assim como as moças representadas na pintura. No nível narrativo, como visto anteriormente, analisamos a organização da narrativa pelas ações de um sujeito que age segundo seus interesses. Ele se empenha em uma transformação para atingir um objetivo e, consequentemente, receber uma bonificação porque quer ou porque foi obrigado. Segundo Fiorin (2006a, p. 29), “Uma narrativa complexa estrutura-se numa sequência canônica, que compreende quatro fases: a manipulação, a competência, a performance e a sanção”. Mas como observar esse processo de narratividade em uma pintura? Até este momento a pesquisa procurou expor os dados referentes ao plano de conteúdo do conto e sua expressão. Na comparação com a pintura é necessário que se explore o plano de conteúdo observado nos elementos recorrentes nas imagens, ou seja, examinar a maneira que o artista adotou para expor sua expressividade; é no plano de expressão, portanto, na observação das técnicas visuais e dos mecanismos utilizados para compor a prancha que encontraremos o suporte para a interpretação da obra. Assim, estudamos as categorias cromáticas, que são responsáveis pela manifestação das cores utilizadas pelo artista, as categorias eidéticas, que respondem pelas formas e as categorias topológicas, que dizem respeito à distribuição dos elementos que compõe a prancha. Em “Moças” (1968) podemos observar o percurso narrativo dos sujeitos “moças” que ora agem, ora sofrem a ação do meio em que estão inseridas. Não é possível afirmar até que ponto elas são agentes, ou se apenas sofrem as transformações de estado. Como verificamos anteriormente com base no conto “Apenas eco”, é possível afirmar que as moças trabalham em um prostíbulo. Porém, discutir se a pessoa escolheu ou foi obrigada a trabalhar em um ambiente como esse não é a nossa questão, pretendemos observar como se dá a significação por meio da pintura. Assim, a primeira coisa a ser observada na prancha é que as moças estão sentadas e, por essa razão, podemos deduzir que estão esperando algo ou alguém, ainda mais se levarmos em conta suas expressões analisadas anteriormente. 31 De acordo com Barros (2002a, p. 26): Um percurso narrativo é uma seqüência de programas narrativos relacionados por pressuposição. O encadeamento lógico de um programa de competência com um programa de performance constitui, por exemplo, um percurso narrativo, denominado percurso do sujeito. Dessa maneira, a representação abaixo mostra, por meio de um programa narrativo7, que o enunciado de estado é o enunciado resultante da transformação ocorrida com o sujeito: F = função → = transformação S1 = sujeito do fazer S2 = sujeito do estado ∩ = conjunção U = disjunção Ov = objeto-valor PN = F[S1 → (S2 U Ov)] F[S1 → (S2 U Ov)] PN1 = F (conseguir um cliente) [S1 (moças) → S2 (moças) U Ov (cliente)] PN2 = F (ter liberdade) [S1 (moças) → S2 (moças) U Ov (liberdade)] Podemos concluir que nos programas narrativos prevalece a disjunção com o objeto-valor. Na primeira situação, as moças estão à espera de um cliente para realizarem seu trabalho. Seus contratos estipulam que, se trabalham em lugar como esse, são coagidas a cumprir certas obrigações independentemente se querem ou não, pois estão lá para isso. Mas a partir da observação de suas expressões é possível perceber que não estão à vontade com a situação. No segundo programa pressupomos que elas não querem estar ali, pois querem a liberdade para fazer outras coisas, principalmente, algo que façam por vontade própria. Portanto, em ambos os programas narrativos surge a disjunção com o objeto-valor, ora um cliente que não chega logo para tirá-las daquela espera angustiante, ora a privação de fazer o que realmente querem. 7 Modelo extraído do livro: BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria semiótica do texto. São Paulo: Ática, 2002a. 32 Os elementos que compõem a pintura “Moças” podem ser observados também no conto “Apenas eco” e mostram a agonia tanto da protagonista do conto e das três moças da pintura. As personagens femininas não se sentem à vontade já que estão naquele lugar por obrigação. Os dois textos são, por essa razão, intertextuais e intersemióticos por sua natureza. Podemos observar ainda que: • S1 “moças” U Ov “Acompanhantes” • S2 “moça” U Ov “companhia” No nível discursivo é assinalado pela concretização da narrativa pelo sujeito da enunciação, que é responsável pela manifestação da maneira como o enunciado aparece no texto. Isso significa que o discurso define o produto realizado pelo sujeito e, ao mesmo tempo, esse objeto de comunicação interage entre o enunciador e um enunciatário. Em um texto verbal a enunciação é projetada com efeito de proximidade ou distanciamento, segundo os efeitos de verdade que o enunciador quer causar. Mas, em uma pintura, o que pode ser observado é o enfoque que o pintor coloca sobre as imagens que cria. Na pintura em análise, as três moças são observadas e descritas por um eu observador. Dessa maneira, ele retrata as personagens de longe, sem enquadrá-las ou mostrá-las em uma autoimagem. Esse recurso é descrito como uma desembreagem enunciva e mostra o distanciamento que o enunciador quer conferir às imagens que criou. Tal atitude de distanciamento, porém, não é observada no conto, pois a própria protagonista retrata sua vivência até aquele momento em que se transforma em uma prostituta. A tematização observada em ambos os textos é intersemiótica, mas somente como alusão intertextual. No conto a moça está desiludida com sua vida e sabe que não consegue alcançar seus objetivos. Por isso, tem uma atitude de desesperança e tristeza profunda e não vê outra solução a não ser se prostituir, afinal, chegar a esse ponto foi um processo decorrente das escolhas feitas em sua vida. A pintura parece mostrar a vivência dessas jovens, suas ansiedades e tensões. Di Cavalcanti mostra que suas relações amorosas sempre logram suas expectativas. Repete-se o drama na situação enunciativa enfocada pelo conto. O suposto rapaz pretendente do seu amor, segundo a leitura da protagonista, não demonstra tratar a relação com seriedade. Ao contrário, quer apenas aproveitar-se da inocência dela. Da sua parte, 33 apaixonada, ela se dedica inteiramente ao namorado e dele espera os mesmos sentimentos. O texto de Flávio Izhaki mostra como os sonhos de uma mulher podem, por vezes, destruí-la enquanto ela tenta desesperadamente alcançá-los. Esse paradoxo é mostrado na narrativa ao mesmo tempo em que apresenta o crescimento da menina-mulher que, como toda garota, deseja ter um amor eterno, um namorado idealizado. Essa visão simplista e um tanto ingênua da vida faz com que, desde muito cedo, ela sofra por um amor não correspondido. O suposto rapaz pretendente do seu amor, segundo a protagonista, não demonstra tratar a relação com seriedade. Pelo contrário, ele quer apenas aproveitar-se da inocência da moça. Apaixonada, ela se dedica inteiramente ao namorado e espera que ele tenha os mesmos sentimentos por ela. A única coisa que espera dele é que corresponda da mesma forma. Nas inúmeras vezes que os dois se encontram, ela se doa ao rapaz que nunca retribui como ela espera. Assim, ao longo da narrativa e da sua vida, a menina que se transformou cedo demais em uma mulher passa a ser conhecida exatamente por tentar desesperadamente encontrar um homem para acompanhá-la e, talvez, trazer alguma alegria ou propor uma relação duradoura. Contudo, todos os homens com quem ela se relaciona por alguns momentos só lhe trazem o sentimento de mais uma tentativa frustrada. Desse modo, nesse ritmo desesperador e autodestrutivo pela falta de perspectivas felizes, a narrativa se desenvolve revelando as investidas da personagem para alcançar seus objetivos, ou seja, sua esperança de encontrar um companheiro ou um possível progenitor do filho que a libertará da vida de solidão. O texto denuncia, portanto, o isolamento e a tristeza exacerbada da sociedade contemporânea. Estes elementos fazem parte das oposições temáticas, a euforia ou a disforia, ou seja, os aspectos positivos ou negativos das ações das personagens. No texto em análise, a oposição semântica que pode ser observada logo no início do conto é percebida pelo leitor na inquietante situação que é apresentada pela narradora-personagem: “crescer, foi borrar-me aos poucos” (IZHAKI apud MOUTINHO, 2005, p. 69). O que deveria ser um ato naturalmente esperado com a alegria da idade é mostrado, no decorrer da narrativa, como algo triste que deprime a personagem e lhe tira a ansiedade de crescer e ser adulta. 34 Essa situação constrangedora a que é submetida acontecia sempre que é procurada por Alfredo, um rapaz que ela tanto desejava deseja como namorado. Porém, ele a expõe a uma realidade que jamais não faz parte do discurso de suas amigas. A vergonha de se sentir “usada” e depois “descartada” lhe causa uma dor profunda: “Cedo, aprendi que era um erro crescer cedo demais” (Ibidem, p. 69). A cada episódio de sua vida, a menina-moça vê-se com mais pesar: Cedo, percebi que era impossível não crescer. Restou-me esconder em camisas largas e aparelho nos dentes, sábados desenhando felicidades e domingo assistindo a desenhos, até aparecer Alfredo e seu galanteio tradicional (Ibidem, p. 69). Tudo parece estar contra sua felicidade. As experiências negativas que tem com seu “pseudonamorado” trazem consigo uma falsa sensação de que aquela será a última vez que sofrerá por alguém, que na próxima experiência será diferente, contará para suas amigas e se sentirá realmente feliz. Porém, ela insiste sempre em um novo encontro com Alfredo, o rapaz que desde o começo não a leva a sério. Pensa que talvez ele tenha mudado, mas repete-se sempre a mesma decepção. Ela se dá contas que o moço a ilude em virtude de sua ingenuidade. A pressa e as desculpas que ele usa para livrar-se da menina são punhaladas que recebe pelos momentos de entrega: Novamente voltei correndo chorando, a vergonha que carregava comigo era também de outro, irradiava contagiosa. Luz apagada, travesseiro entre as pernas e uma inadequação permanente: muito feia, muito baixa, seios pequenos, usada, suja (IZHAKI apud MOUTINHO, 2005, p. 70). E, assim, enquanto as meninas de sua idade trocam confidências sobre seus relacionamentos, seus namoricos e possíveis futuros maridos, ela se afasta e se esconde em seu mundo tristemente marcado pelas lembranças que acumula. Tudo o que lhe ocorre só lhe causa vergonha e, por isso, não pode dizer a todos que também já tem algo para contar. Segundo Barros (2002a, p. 8), a “semiótica deve ser entendida como a teoria que procura explicar o ou os sentidos do texto pelo exame, em primeiro lugar, de seu plano de conteúdo”. Dessa forma, nesta análise do nível fundamental apontamos as oposições semânticas presentes neste conto. 35 P.C. FELICIDADE vs. TRISTEZA P.E. QUERER CRESCER vs. ARREPENDER-SE DE TER CRESCIDO • FELICIDADE → NÃO-FELICIDADE → TRISTEZA Crescer foi borrar-me aos poucos, desatar o laço que as mãos fazem com os joelhos, desapegar de mim para outro, outros. Romper os limites negros da fronteira com o mundo, inundar de vermelho o branco enevoado da vida adulta (Ibidem, p. 69). De acordo com o “contrato” implícito no discurso social e histórico da sociedade burguesa, as meninas devem crescer para serem boas companheiras e boas esposas para que não sejam condenadas socialmente. No entanto, em nenhum momento, é mencionado o trajeto que a menina tem que percorrer para se tornar o que ela tanto deseja: uma mulher realizada no plano das relações amorosas. O olhar ingênuo da menina não consegue decodificar o jogo social que camufla comportamentos e cerceia a manifestação descomedida dos sentimentos. Nesses termos, a protagonista não atende às expectativas sociais, pois sua percepção também não entende que a condição de servidão, de exploração pelo “possível” companheiro está inscrita no código social. Da voz do enunciador depreendemos que na cultura ocidental, desde a Antiguidade, as mulheres são preparadas para serem boas mães e esposas, mas nunca, em nenhum momento, foi ensinado que elas devem ser felizes antes de qualquer coisa. A tradição concebe que “lugar de mulher é em casa e servindo ao marido”. A própria Bíblia Sagrada, considerada o livro da “verdade” por muitas religiões, diz na Epístola aos Efésios 2, 34-35: Sede submissos uns aos outros no temor de Cristo. As mulheres sejam sujeitas a seus maridos, como ao Senhor, porque o marido é cabeça da mulher, como Cristo é cabeça da igreja, seu corpo, do qual ele é Salvador. Ora, assim como a igreja está sujeita a Cristo, assim o estejam também as mulheres a seus maridos em tudo. Partindo do princípio de entrega total aos seus amados em uma visão cega de paixão, seria muito difícil que a menina conseguisse mudar sua própria maneira de enxergar o mundo. A oposição semântica mencionada faz referência exatamente a 36 essa falta de perspectivas nas mudanças em relação à mentalidade repressora a que as meninas são submetidas. “Querer crescer” vai além do desenvolvimento físico, faz menção ao crescimento pessoal, social e intelectual. Na década de 1960 e 1970, enquanto as mulheres instituiam o Movimento Feminista em uma demonstração de emancipação das culturas vigentes, criavam também a oportunidade de mudança dos paradigmas sociais com relação a sua própria criação; ou seja, elas iniciaram todo um processo de tentativa de conquistar as mesmas condições sociopolíticas que os homens. Dessa época em diante, conquistaram muitos espaços antes somente restritos ao público masculino, bem como a liberdade e alguns direitos. Esse feito tornou a mulher um indivíduo autônomo, independente e capaz, seja nas profissões e em cargos de chefia, seja no sustento da família. No caso da protagonista do conto, ela não tem nome. Ela representa metonimicamente as jovens desse período histórico que passaram pela mesma situação. Da análise das relações axiológicas presentes nas oposições semânticas citadas, podemos perceber a transformação do valor de euforia marcado pelo “querer crescer” no valor disfórico de “arrepender-se de crescer”: querer crescer ------ não querer crescer ------ arrepender-se de crescer (euforia) (não euforia) (disforia) O ato de crescer, que deveria ser algo eufórico para a protagonista, é mostrado como um acúmulo de experiências negativas que fazem com que ela se arrependa de tê-las vivido. Assim, essa transformação torna-se disfórica. P.C. FELICIDADE vs. TRISTEZA P.E. SENTIR-SE MULHER vs. VONTADE DE SER CRIANÇA O conto apresenta ainda outras oposições marcadas na narrativa, como abordamos agora: O gosto daquele garoto de dezoito era amargo, cerveja e cachaça, e o nosso beijo baba espessa, salivosa, borbulhas brancas saindo pelo 37 canto da boca, e, mesmo assim, era bom, me sentia adulta, mulher, beijando um desconhecido. [...] Tive vontade de chorar, correr para minha cama e apertar meus ursinhos, cachorrinhos e gatinhos de pelúcia entre os seios e coxas. [...] Voltei para casa pesando vergonha, vermelho manchando calcinha e sonhos. Sujeira que os banhos não tiram. Cedo, aprendi que era um erro crescer cedo demais (IZHAKI apud MOUTINHO, 2005, p. 69). Nessas oposições, o que fica marcado é o peso que a menina carrega por estar crescendo e se tornando mulher. Devido às influências da idade e do ambiente, ela espera viver como suas amigas que tem sempre alguma história sobre namoricos para contar. Portanto, ela sonha em sair e encontrar alguém que a queira. Na sua busca ingênua e desejosa por se sentir mulher, entrega-se a um rapaz inescrupuloso. Apesar da experiência não lhe trazer prazer, a ansiedade por viver um mundo que a separe da infância e a introduza na maturidade faz com que aceite todas as situações às quais é exposta para superar, quem sabe, as barreiras da rejeição do seu grupo: “e, mesmo assim, era bom, me sentia adulta, mulher” (IZHAKI apud MOUTINHO, 2005, p. 69), avaliava a personagem. Desses encontros desastrosos para ela, surge com maior força a vontade de ter alguém que queira um relacionamento estável e seguro. sentir-se mulher ------ não sentir-se mulher ------ querer ser criança (euforia) (não euforia) (disforia) Os momentos de euforia em que ela se sente uma mulher, como os poucos momentos em que está com Alfredo, não são suficientes para compensar a dor da vergonha que sente pelo que faz e a dor sofrida quando ele a abandona. O ritual é sempre reproduzido fielmente e mesmo assim a menina insiste naquela relação de muito pouco provável sucesso. Diante dos galanteios de Alfredo, a protagonista se rende, pronta para atender aos desejos do rapaz. Nesse processo de passagem da euforia para a disforia fica claro que ela não estava preparada para ser mulher, tanto fisicamente como emocionalmente. Por isso, essa realidade é sancionada como disfórica para ela. P.C. CONJUNÇÃO vs. DISJUNÇÃO P.E. “ESQUECER-SE DELA MESMA” vs. “ENCONTRAR-SE EM UM FILHO” • CONJUNÇÃO → NÃO-CONJUNÇÃO → DISJUNÇÃO 38 No texto é apresentada uma situação de submissão por parte da menina que pretende alcançar seus objetivos. Como podemos observar em: [...] estava cansada de ser a outra, enjoada daquela opressão de quarto de motel barato, de sentir peso natimorto sobre mim. [...] Em maio a menstruação atrasou, e essa foi a melhor notícia. A minha vida seria ter aquele bebê; niná-lo, mimá-lo, escová-lo. O sentido era esse então, e não aquela mesquinharia de afeto (Ibidem, p. 71). A busca desesperada da moça mostrada até aqui para conseguir um namorado cessa a partir do movimento em que surge a ideia de um filho. Compreende que, com a maternidade, não será mais tão solitária e terá alguém que realmente estará com ela. Um namorado poderá abandoná-la a qualquer momento, mas um filho não a abandonará porque será dependente dela. A personagem percebe, nesse momento, que enquanto continuar se anulando para forçar um relacionamento não vai encontrar sua felicidade. Ela entende que somente um filho vai livrá-la daquela vergonhosa conjuntura de submeter-se a situações humilhantes em cantos e quartos de motel baratos na tentativa de conquistar um companheiro. A presença de um filho lhe trará mais do que companhia, é a garantia de ter alguém para poder se dedicar e para lhe proporcionar o prazer de desfrutar do instinto maternal, sentimento que jamais a dominou antes desse processo de conscientização. Portanto, a experiência que viveu até aquele momento passa a ter outro valor. esquecer-se dela mesma ------ não esquecer-se ------ encontrar-se (disforia) (não disforia) (euforia) Somente no momento em que ela se percebe como sujeito de seu destino passa a ter mais motivação em sua vida. Um filho lhe traria a redenção tão esperada. Dessa maneira ela passa a ter, pelo menos no plano do desejo, uma sensação eufórica. Nessa nova etapa de sua vida, porém, ela percebe que não é tão fácil encontrar um possível progenitor para seu filho. P.C. SOLIDÃO vs. COMPANHIA 39 P.E. “ENTREGAR-SE PARA TANTOS” vs. “ENTREGAR-SE AO BEBÊ” • SOLIDÃO → NÃO-SOLIDÃO → COMPANHIA Instala-se, então, na narrativa, a oposição deste item. Cada rosto na rua um pai, beijo de língua sêmen, dia passado espera, mês menstruado não. Nessa altura já conversava com a minha barriga, sonhava com os olhos castanhos, ousava imaginar verdes, quem sabe. Esperava que ele berrasse minha presença em choro todas as noites e o apertaria junto ao peito e lhe daria de mamar com a certeza de que meu filho precisava de mim. De mim (IZHAKI apud MOUTINHO, 2005, p. 72). O instinto maternal ajudará a personagem não só a se encontrar como pessoa, mas também a ajudaria a ter a felicidade há tanto desejava. Talvez compensasse tudo o que viveu até ali. Quando ela se dá conta disso, não mede esforços para concretizar esse novo sonho. Mais uma vez, mas de maneira intensificada, entrega- se a todos os homens que pode. Sua compulsão é maior que seus pudores e a imagem que cria de si por causa desse comportamento já não lhe importa mais. Quer a qualquer custo ter um filho. Até aquele momento ela se entregara para muitos para satisfazer seu desejo de ter companheiro, agora ela procurava um parceiro pelo desejo de ter um filho. entregar-se para tantos ------ não entregar-se mais ------ entregar-se ao filho (disforia) (não disforia) (euforia) A concretização da maternidade a libertará de tudo o que precisou suportar até aquela ocasião. Enquanto tenta encontrar um companheiro para sentir-se adulta, vive uma realidade disfórica. Somente quando redireciona seu objetivo ela passa viver um momento de euforia. P.C. APARÊNCIA vs. REALIDADE P.E. “POSE DE QUEM NADA SOFREU” vs. “MORRER AOS POUCOS” • APARÊNCIA → NÃO-APARÊNCIA → REALIDADE 40 A última oposição semântica que analisamos mostra, porém, que tudo o que a personagem faz não é suficiente para alcançar seus sonhos. Prevalecem todas as situações negativas que ela experimentou: Nesse ambiente de paredes vermelhas me aqueço, nesta penumbra viscosa me escondo, cada vez que me levam morro mais um pouco, sem direito a renascer de olhos verdes ou perdão pelas escolhas que não fiz. [...] Crescer tem essa vantagem, viver deixa essa condição, olhos negros de desafio, rímel à prova de choro, pose de quem sabe tudo e nada sofreu. Mas é apenas isso, pose, mentira, mãos enlaçando joelhos, autoproteção (IZHAKI apud MOUTINHO, 2005, p. 73-74). O conto apresenta a trajetória predominantemente disfórica a que é submetida a personagem dominada por sonhos desde a abertura da narrativa, e que foi dissuadida de encontrá-los. Ela tenta, de todas as maneiras, realizar seus objetivos e, por isso, entrega-se, anula-se, faz o que é necessário, mas mesmo assim não consegue ser feliz. Em nenhum momento há alguém para orientá-la ou protegê-la “dos seus próprios sonhos” (IZHAKI apud MOUTINHO, 2005, p. 70) já que é por causa deles que entra em uma espiral centrípeta que a conduz a sua ruína. No conto em análise, as situações de oposição semântica são percebidas desde o início e durante todo o desenvolvimento da narrativa. Há um predomínio muito grande dos aspectos negativos marcados pela disforia da vida que a moça leva. A busca desesperançosa e desesperada por braços e corpos de estranhos que possam conduzi-la a algum momento de felicidade reforça a total falta de afeto que marca sua vida. Em nenhum momento ela recebe conselhos, carinhos ou proteção. Toda a sua vida foi um desenrolar de situações depreciativas. O discurso social que determina a postura dos indivíduos, principalmente das mulheres sempre as coagindo a proceder de tal forma em dadas situações, não ensina como a protagonista, cheia de sonhos e sozinha, deve agir em um ambiente que em nada favorece seu desenvolvimento. O discurso social não é feito para o naїf8. Somente aquele que tem consciência das regras de seu jogo se salvaguarda de sofrer grandes frustrações. No nível narrativo é analisada a organização textual sob o ponto de vista de um sujeito que, a partir de um estado inicial, faz ou sofre uma transformação. Neste 8 Naїf é um termo em francês que se refere a uma pessoa ingênua. 41 momento ainda se analisam as ações, os enunciados de estado e de fazer, além do percurso narrativo das personagens. A personagem é retratada no conto como uma adolescente ansiosa por crescer e ser mulher. No ponto inicial, a menina é sujeito e é assujeitada pela sua própria vontade. Ela sofre uma situação que foi criada por ela mesma e que a empurra para os braços de um rapaz sem escrúpulos, um pouco mais velho, que a engana e em nenhum momento demonstra outro tipo de interesse que não seja sua satisfação pessoal. A narrativa que se segue mostra a transformação dessa personagem que primeiro é privada de um amor, e depois parte em busca de sua realização como mulher e mãe. Nesse trajeto ela carrega o sentimento de culpa por todas as vezes que não vive uma experiência de um verdadeiro amor. A esperança de que sua sorte mude faz com que tente desesperadamente encontrar carinho, compreensão e companhia em qualquer tipo de ambiente e com qualquer homem que consiga seduzi-la. Ela deseja algo que não tem, ou seja, está em disjunção com seu objeto de valor: o amor. Essa busca desenfreada atira-a em vários braços, porém, ela percebe nesse percurso desesperador que não é com um homem que será feliz, pois experimentou tanto essa situação até o momento e não encontrou o que sonhava. Toma consciência de que deve ter um filho já que ele dependerá dela e, portanto, não irá abandoná-la como fizeram todos os homens com quem se relacionou. Uma criança dependerá dela como mãe, não como um amante. Ela acredita que um filho vai lhe trazer a segurança e a paz que tanto deseja. Suas inúmeras tentativas frustradas de engravidar a conduzem por um caminho sem volta. Ela agora tenta desesperadamente encontrar alguém que lhe dê segurança e um filho: “Não era mais segredo, mesmo os mais novos me procuravam, calados, e eu só queria nos dias certos, senão era pecado, religiosa de ocasião, poderia acabar tendo uma filha” (IZHAKI apud MOUTINHO, 2005, p. 72). Como última tentativa para conseguir realizar o sonho de ter um filho, ela pensa em roubar uma criança no berçário onde trabalha e percebe que não tem coragem para isso, mas também porque ela mesma quer conceber seu filho. Mais tarde, após tudo o que fez e decepcionada com sua vida, transforma-se em uma prostituta. Neste nível denominado “nível das estruturas narrativas”, as oposições vistas no nível anterior, o fundamental, são assumidas como valores pelo sujeito, o 42 actante. Segundo a teoria semiótica, há neste nível dois tipos de enunciados: de estado e de fazer. Isso ocorre por meio do percurso greimasiano: manipulação, competência, performance e sanção. As transformações ocorridas pelas ações do sujeito e do objeto resultam na narratividade ao texto. No processo de manipulação, quando um sujeito age sobre outro para convencê-lo a fazer ou a querer algo, temos a maneira como se dá a ação. No caso do texto em análise, desde o princípio da narrativa a menina é manipulada pela própria vontade de ter alguém, ou seja, o seu desejo a impulsiona a querer a todo custo realizar esse capricho. Seu impulso é acentuado pelo fato de todas as meninas do colégio terem uma relação para comentar e, como é próprio da idade, a menina é facilmente influenciada por todos os estímulos ao redor. No decorrer da narrativa, apresenta-se uma sucessão de fatos criados pela personagem com a finalidade de conquistar os seus desejos. Ela se utiliza de técnicas de sedução para atrair os homens ao seu redor e para se sentir desejada, ou seja, ela manipula por sedução, como define Fiorin em seu livro Elementos de Análise do Discurso (2006a, p. 31). Essa atitude é intensificada quando ela percebe que não adianta ter os homens ao seu lado, pois eles só querem a satisfação dos desejos sexuais e não demonstram nenhuma intenção de terem um relacionamento mais sério. Ela acredita que se tiver um filho com um deles a criança lhe será leal. Por isso, parte para uma nova corrida desesperada atrás de seu novo objetivo e, mesmo assim, utiliza de sua competência de seduzir. Para alcançar seu objetivo, a protagonista transforma sua busca em uma obsessão. Ela sabe o que tem que fazer e de que maneira isso deve ser feito, portanto, tem competência para realizar sua busca. Conhece o que buscar e onde buscar. Competência, aqui, é entendida como a capacidade que o sujeito tem para realizar uma transformação narrativa. Neste caso, conquistar um homem, o futuro pai de seu filho. Esse processo de manipulação aliado à competência adquirida pela moça durante a narrativa é o que Fiorin (2006a, p. 31) chama de performance. Isso significa que no momento em que ela percebe que deve ter um filho e não um amante consegue um emprego em uma maternidade, lugar onde terá um contato maior com seu objeto de desejo. Essa transformação, representada na narrativa como a mudança de emprego, mostra o percurso que é realizado pela mulher para entrar em conjunção com seu objeto de valor: a criança. 43 O texto mostra que da mesma forma que ela manipula os homens a sua volta, desde o princípio também é manipulada pelas próprias vontades. As ações irracionais que realiza durante toda a trama para concretizar os seus sonhos não podem lhe oferecer um final diferente. Ela é vítima de uma veleidade que a leva a transformar-se em uma prostituta, ou seja, a sanção dos seus atos é disfórica, pois ela termina sua trajetória em disjunção com os sonhos que tanto deseja. Segundo Barros (2002b, p. 31): O programa narrativo constitui-se de um enunciado de fazer que rege um enunciado de estado. Ao integrar os estados e as transformações, o programa narrativo, e não o enunciado, deve ser considerado a unidade operatória elementar da sintaxe narrativa. Dessa maneira a representação abaixo mostra, por meio do programa narrativo9, que o enunciado de estado é o resultado da transformação ocorrida com o sujeito: F = função → = transformação S1 = sujeito do fazer S2 = sujeito do estado ∩ = conjunção U = disjunção Ov = objeto-valor PN = F[S1 → (S2 U Ov)] F[S1 → (S2 U Ov)] PN1 = F (encontrar um namorado) [S1 (menina) → S2 (menina) U Ov (namorado)] PN2 = F (ter um filho) [S1 (mulher) → S2 (mulher) U Ov (filho)] O que podemos concluir a partir dos programas narrativos é que prevalece a disjunção com o objeto-valor. No primeiro caso, a menina quer um namorado e tenta convencer o rapaz (Alfredo) a namorá-la, no entanto, é ineficaz com ele e com todos os rapazes com quem tenta se relacionar. No segundo exemplo, agora como uma mulher, ela quer ter um filho para livrar-se da solidão e tenta engravidar com todos os médicos residentes do local onde trabalha e outros estranhos com quem tem 9 Modelo extraído do livro: BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria semiótica do texto. São Paulo: Ática, 2002a. 44 oportunidade. Mesmo assim não realiza esse outro sonho, ou seja, ela começa e termina o texto em disjunção com os valores que tanto quer. Aqui se analisam os efeitos de ilusão e de subjetividade produzidos pelo sujeito da enunciação. Este é o nível menos superficial do discurso já que suas estruturas são mais específicas, complexas e ricas semanticamente do que nas duas estruturas anteriores: as fundamentais e as narrativas. Este é, portanto, um patamar em que a narrativa é “enriquecida”. É, antes de tudo, determinação do modo como se constrói o texto, as projeções da enunciação, os efeitos de proximidade ou distanciamento, e as relações argumentativas entre o enunciador e o enunciatário. O conto em análise é narrado em primeira pessoa: “Crescer foi borrar-me aos poucos, desatar o laço que as mãos fazem com os joelhos, desapegar de mim para outro, outros” (IZHAKI apud MOUTINHO, 2005, p. 69). Do ponto de vista da enunciação, o enunciador transmite uma projeção do eu-aqui-agora dando lugar a uma debreagem enunciativa. Para Barros (2002a, p. 57-58): O narrador é o delegado da enunciação no discurso em primeira pessoa. O sujeito da enunciação atribui ao narrador a voz, isto é, o dever e o poder narrar o discurso em seu lugar. Assim instalado, o narrador pode, por sua vez, ceder internamente a palavra aos interlocutores Essa abordagem feita pelo narrador mostra a maneira como o enunciador, projetado em um narrador em primeira pessoa, escolhe para relatar o conto e dar uma ideia de (falsa) verdade para a história. Esse recurso é adotado pelo enunciador para transmitir um conceito de proximidade com o objeto da enunciação, e tem a intenção de convencer o enunciatário dessa verdade apresentada. Todo texto é produzido com uma intencionalidade criada pelo enunciador com o intuito de parecer verdade que nem sempre é apreendida pelo enunciatário, pois este não lê da mesma maneira que o primeiro espera que aconteça. A análise do discurso tem justamente como objetivo reconhecer esses desígnios que, às vezes, não ficam tão claros para o destinatário do discurso. É a busca por uma interpretação mais próxima da verdade, segundo todos os indícios encontrados no discurso, que permite ao leitor perceber a verdadeira significação de um texto. Por isso, a análise discursiva acontece em diferentes níveis, podendo ser interpretada 45 diferentemente em cada um deles e resultando em uma leitura diversa segundo o conhecimento de mundo de cada leitor. De acordo com Barros (2002a, p. 62) “a manipulação do enunciador exerce-se como um fazer persuasivo, enquanto ao enunciatário cabe o fazer interpretativo e a ação subseqüente”. Assim, o reconhecimento das intenções de manipulação é verificado pelos mecanismos adotados pelo enunciador que permitem que o leitor perceba a verdadeira intenção do autor. Ainda segundo Barros, são dois os processos semânticos do discurso: a tematização e a figurativização. Esses recursos fornecem ao enunciador os mecanismos necessários para conseguir o seu efeito de sentido de realidade. Durante a narrativa, o sujeito enunciador apresenta alguns valores ideológicos que são disseminados como percursos temáticos e recebem os investimentos figurativos. Dessa maneira, a coerência semântica do discurso é assegurada e o enunciador conseguirá concretizar a figurativização do conteúdo apresentado. O texto em análise pode ser considerado como temático-figurativo, pois desenvolve uma ou mais linhas temáticas em que as categorias semânticas são disseminadas de modo abstrato, mas aparecem com cobertura “figurativa”; isto é, as figuras são utilizadas para concretizar os temas abordados. Assim, o conto pode ser considerado pluri-isotópico, pois desenvolve várias leituras temático-figurativas. Vejamos: • Leitura da desilusão com as pessoas: “Novamente voltei correndo chorando, a vergonha que carregava comigo era também de outro, irradiava contagiosa” (IZHAKI apud MOUTINHO, 2005, p. 70). A personagem quer acreditar que o rapaz mudou e que não a tratará mais como antes, mas percebe que certas coisas nunca mudam, pelo menos não para melhor. Assim, a desonra que sente em virtude de todo o discurso cultural que diz que a mulher deve casar- se virgem, por exemplo, faz com que ela tenha vergonha de ter se sujeitado mais uma vez a uma pessoa que não lhe traz nenhum bem, ao contrário, só lhe traz mais pesares. • Leitura da indiferença sofrida pela mulher: “Minha mãe tinha morrido e meu pai levou-me um dia ao médico, sem dizer palavra, esboçar carinho, pronunciar seu maior medo. Subiu no elevador comigo e disse que dali não passava, para 46 eu pagar a consulta com o cartão do plano de saúde e voltar de ônibus. Achou que eu estava grávida” (IZHAKI apud MOUTINHO, 2005, p. 70). A maneira como a protagonista é tratada no conto reflete, de certo modo, a forma como a maioria das mulheres se relacionam com o ambiente ao redor. A falta de sensibilidade no relacionamento com a filha é demonstrada no momento em que o pai a deixa sozinha no consultório e, em um ato de vergonha, pede que ela volte de ônibus para casa. Para ele, a probabilidade de a filha estar grávida é pior do que se estivesse doente. Esse procedimento ressalta ainda mais a sua notória incapacidade de educar a filha. • Leitura da falta de limites para se alcançar um objetivo: “Batizei cada período fértil com um médico, residente. Não era mais segredo, mesmo os mais novos me procuravam, calados, e eu só queria nos dias certos, senão era pecado, religiosa de ocasião, poderia acabar tendo uma filha” (Ibidem, p. 72). A obsessão que desenvolve por ter um filho faz com que a jovem personagem use os valores da sociedade segundo uma lógica própria. Ela se entrega sem remorsos a todos que a procuram. No entanto, sente que com a concepção do filho poderá se redimir de todos os atos que infringiram o código social. No seu raciocínio, a vida não pode ficar pior do que está, por essa razão, ter um filho é seu último recurso na tentativa paradoxal de consertar sua realidade. • Leitura da falta de perspectiva da protagonista: “Deixei a fragilidade debaixo de outros corpos, a ingenuidade esvaiu-se em líquidos – esperma, sangue, saliva. Não procure em mim aquilo que um dia fui” (Ibidem, p. 74). Na tentativa frustrada de alcançar seus objetivos, ela desiste de viver. Não consegue um companheiro, um filho ou uma vida de felicidade. Sua vida é marcada por situações agonizantes e desencorajadoras, mas a falta de oportunidade ou de orientação faz com que ela entre nessa situação caótica. A protagonista desiste de lutar pela vida e espera passivamente sua morte física, pois sua alma há tempos havia morrido. Podemos concluir do exame dos temas depreendidos que existe a predominância da disforia. Como percebemos, há uma ênfase muito grande nos aspectos negativos marcados pela disforia da vida que a personagem leva. A busca 47 desesperançosa por braços e corpos de estranhos que a conduzam a algum momento de felicidade e a total falta de afeto que marcam sua vida são os aspectos negativos desta narrativa. Este conto retrata a situação de uma personagem que sofre desde muito cedo por ser demasiado ingênua e por acreditar inteiramente nas pessoas. Ela tem um sonho como toda menina, mas permanece em disjunção com ele. Sofre não apenas porque acredita no outro, mas porque na sua adolescência e juventude não teve amparo e orientação. Mesmo assim, em quase todo o seu percurso de vida, é incansável na busca pela felicidade. 48 3 ANÁLISE SEMIÓTICA DA PINTURA “AS GÊMEAS”, DE ALBERTO GUIGNARD, E DO CONTO “LEITE EMPEDRADO”, DE FABRÍCIO CARPINEJAR 3.1 O PERCURSO GERATIVO DE SENTIDO NA PINTURA10 Alberto da Veiga Guignard (1896-1962) foi um dos maiores artistas plásticos brasileiros. Teve uma vida de devoção à arte, aos amigos, ao ensino, à contemplação da natureza e à delicadeza em sua transposição. Pintou, entre outras telas, “As gêmeas” da coleção do Museu Nacional de Belas Artes, prêmio no XLVI Salão Nacional de Belas Artes. Esta obra tem sido exposta no Louvre (França), no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque, no Museu de Arte Moderna de Tóquio, e em museus de cidades do mundo inteiro, como Roma, Viena, Berlim, Itália e todo o restante da Europa. A prancha retrata as irmãs Léa e Maura sentadas em um sofá marrom ornado com linhas que mostram o entalhe na madeira. Ao fundo temos como paisagem os 10 Imagem escaneada do livro: MOUTINHO, Marcelo (org.). Contos sobre tela. Rio de Janeiro: Pinakotheke, 2005. 49 prédios, casarões e igrejas ricamente detalhadas em seu estilo barroco. A natureza se faz presente por meio da vegetação que emoldura desde os morros até as moradias. Na parte superior da tela, o céu azul escuro é encoberto por muitas nuvens que variam entre o branco e o cinza e retratam o céu de um dia de inverno. Também pela pouca luz na cena, podemos deduzir que é um fim de tarde. Em destaque temos as irmãs que usam vestidos brancos decorados com pequenas flores vermelhas. Ambas têm as mãos no colo, uma sobre a outra. Elas demonstram que, apesar de estarem posando para a pintura, não estão à vontade já que seus olhares mostram seriedade, ou por que lhes foi pedido ou foi por causa da situação de exposição. A maneira como foram retratadas mostra como o enunciador as via; a primeira delas demonstra estar mais à vontade, por ser mais extrovertida ou por ter mais intimidade com o artista? E a segunda irmã? Parece retraída pelo fato de a primeira “estar tão à vontade com o pintor”, ou por que a tensão criada por esta retratação deixou-a assim? Uma olha diretamente para o seu observador, seu corpo está voltado para frente e as mãos estão cruzadas sobre o colo. A outra parece menos constrangida visto que está mais recuada no sofá, seu corpo está de lado e seu olhar não mira diretamente o observador, como um sinal de desconfiança. No quadrado semiótico podemos observar: HOMOGÊNEO HETEROGÊNEO MONOCROMÁTICO COLORIDO HORIZONTAL VERTICAL NÃO – HETEROGÊNEO NÃO – HOMOGÊNEO NÃO – COLORIDO NÃO – MONOCROMÁTICO NÃO – VERTICAL NÃO – HORIZONTAL 50 • HOMOGÊNEO → NÃO-HOMOGÊNEO → HETEROGÊNEO Na categoria eidética observamos a homogeneidade compositiva da cidade em segundo plano, conjunto que se opõe às duas irmãs sentadas no sofá de madeira, que mesmo sendo irmãs e com roupas parecidas, formam uma imagem destoante daquela ao fundo. • MONOCROMÁTICO → NÃO-MONOCROMÁTICO → COLORIDO O multicolorido utilizado na representação pictórica da cidade está em oposição ao monocromatismo dos vestidos das duas irmãs. Neste percurso opositivo podemos observar que a afirmação do monocromático (das irmãs) é a negação do colorido (cidade), ou de maneira inversa, o resultado será o mesmo, o que ratifica a intenção do enunciador em projetar as duas irmãs em primeiro plano. • HORIZONTAL → NÃO-HORIZONTAL → VERTICAL Na categoria topológica observamos a horizontalidade do sofá, nas linhas das janelas, dos traços (imaginários) que marcam os olhos e a boca das irmãs e da mureta que quase não aparece na pintura, em oposição a verticalidade das construções, dos corpos das protagonistas, do encosto do sofá e de uma linha (imaginária) que separa as duas irmãs. A semântica do nível fundamental abriga a organização estrutural mínima, onde os elementos constitutivos de sentido são analisados individualmente e em conjunto, apontando sua oposição ou proximidade sígnica. Trata-se, pois, da relação isotópica entre dois elementos em um mesmo eixo semântico. Na prancha em análise, os elementos de oposição partem não só das cores ou das formas, mas das próprias irmãs retratadas. Existe um conflito latente sob aquela aparente igualdade, na verdade, completamente desigual e quase antagônica. Há uma tensão clara que as mantêm presas ao pequeno sofá soturno. O nascimento de gêmeos confirma a possibilidade de a matéria se duplicar, se (re)afirmar por meio de si mesma. Pintar gêmeos é pintar o mesmo duas vezes. Desse ponto de vista, aproximar idealmente as diferenças entre os gêmeos seria, talvez, um risco. O artista parece apontar propositalmente como elas são diferentes, apesar de tudo. Nasceram juntas, sempre conviveram e, protegidas pelo ideal 51 estético da família burguesa, vestem-se igualmente mesmo sendo diferentes. A diferença entre as gêmeas é uma espécie de referência simbólica a esse abismo entre o mesmo e o mesmo do mesmo, entre a coisa e sua representação. Outras oposições que aparecem na análise desta tela são discutidas a seguir. P.C. IDENTIDADE vs. ALTERIDADE P.E. AS CORES CLARES vs. CORES ESCURAS • IDENTIDADE → NÃO-IDENTIDADE → ALTERIDADE A obra pode ser analisada sob dois enfoques que incluem o fundo que retrata uma cidade com muitos casarões de estilo barroco com seus telhados adornados e as fachadas ricamente trabalhadas. No primeiro plano, temos as figuras das irmãs sentadas em um banco marrom escuro que possui uma textura no entalhe do seu encosto. A imagem apresenta uma atmosfera úmida com cores fortes ao fundo que retratam um céu de azul intenso cheio de nuvens carregadas; também vemos os casarões em tom pastel que ora estão iluminados, ora estão escurecidos pela sombra das nuvens. As duas irmãs se destacam pela cor escura do banco que utilizam e, principalmente, pelo tom de branco matizado de vermelho do vestido que vestem. Essa combinação de cores concentradas cria um cenário contemporâneo encontrado nas pinturas pós-impressionistas. Isso quer dizer que o artista não se preocupou em manter os elementos naturalistas que expressam as mínimas variações de luz, mas em expor um todo que se equilibra nas formas, na arquitetura e nas tonalidades. O contraste cromático entre o fundo composto de cores escuras está em oposição às figuras principais em primeiro plano, que são realçadas pelas cores claras dos vestidos. Percebemos que o artista se desdobrou na representação das pregas do vestido, da estamparia delicada, do branco perolado que realça a firmeza fluida das linhas escuras que contornam as dobras do pano e os braços das modelos. Essa técnica destaca a importância das moças em relação ao segundo plano que mostra a cidade. 52 P.C. IDENTIDADE vs. ALTERIDADE P.E. HORIZONTALIDADE vs. VERTICALIDADE • HORIZONTALIDADE → NÃO-HORIZONTALIDADE → VERTICALIDADE Uma das características observadas no estilo de Guignard é a maneira como ele constrói as imagens sobrepondo cores e imagens. Tal técnica pode ser observada quando são estudadas as duas representações presentes na obra “As gêmeas”. No primeiro plano o artista registra detalhadamente as duas irmãs sentadas em um sofá de madeira entalhada. No fundo dessa primeira imagem, temos uma cena cotidiana da época em que a pintura foi realizada. Existe nesse espaço pictórico uma sobreposição das linhas verticais que contornam os prédios, igrejas e sobrados em oposição à horizontalidade marcada pelo assento e pelo encosto do sofá, pela parte do piso que aparece na base da tela e pela mureta atrás das irmãs. A linha da cintura das modelos está igualmente sobre esse eixo de oposição, de modo que a ambiguidade quanto ao espaço não acontece apenas por causa do fundo. Se a verticalidade apreendida da prancha denota a verticalidade dos centros urbanos ou se significa estar no prumo, equilibrado, é possível que no plano de conteúdo isso queira dizer honestidade, coerência de valores e justeza que são valores eufóricos. Já a horizontalidade representa o que é horizontal e paralelo ao horizonte, ou seja, o ponto de intersecção com o vertical. O horizonte é definido como a linha aparente ao longo da qual, em lugares abertos e planos, observa-se que o céu parece tocar a terra ou o mar. Quando as duas são utilizadas concomitantemente, mostram em seu conjunto que causam um equilíbrio. Se predominasse a verticalidade ou a horizontalidade, o artista não conseguiria o mesmo efeito que alcança nesta pintura. Portanto, mesmo que seja possível estudar separadamente essa sobreposição de imagens isolando o primeiro plano com o sofá e as moças e estudando o segundo plano representado pela cidade e seus prédios, interpretar a obra em sua totalidade é o único meio de apreender o discurso do artista. 53 P.C. HOMOGÊNEO vs. HETEROGÊNEO P.E. FORMAS ARREDONDADAS vs. FORMAS ANGULOSAS • HOMOGÊNEO → NÃO-HOMOGÊNEO → HETEROGÊNEO Nesta pintura predominam as linhas retas e as formas angulosas, porém elas são atenuadas pela presença das curvas discretas das nuvens e das moças. As formas angulosas são muito marcadas nos prédios, casarões e, principalmente, na linha imaginária que divide horizontalmente o sofá onde estão as irmãs, dando a falsa impressão de simetria. Um leitor desatento da imagem das irmãs pode pensar que são semelhantes, mas em um segundo momento de observação é possível perceber as diferenças marcantes entre ambas. Sentadas no sofá, as duas gêmeas são tão parecidas quanto diferentes. Uma é simétrica, relaxada, voluptuosa, penetrante; a outra é angulosa, tensa, seca, crítica. A posição dos cotovelos das duas mostra a formação de um ângulo que segundo Weil e Tompakow (1997, p. 241) quer dizer metaforicamente: “mantenha distância”. Nesta etapa da análise são estudadas as transformações na narrativa sob o ponto de vista de um sujeito. No caso desta análise, analisamos as ações das irmãs retratadas na pintura. De acordo com os estudos de Barros (2002a, p. 16): As estruturas narrativas simulam, por conseguinte, tanto a história do homem em busca de valores ou à procura de sentido quanto a dos contratos e dos conflitos que marcam os relacionamentos humanos. No estudo da pintura é necessário que se explore o plano de conteúdo observado nos elementos construtores das imagens, ou seja, a maneira como o artista os utilizou para empregar sua expressividade. Somente com a observação das técnicas visuais e dos mecanismos utilizados para compor sua prancha é que será possível fazer a interpretação desta obra. Estudamos, portanto, as figuras, as cores, o ambiente e o modo como todos esses elementos estão estruturados para mostrar a narratividade da cena do quadro. 54 A pintura retrata as duas gêmeas sentadas em um sofá de madeira entalhada. Elas demonstram, por meio de suas expressões e gestual, o modo como o artista as vê. Ao fundo, como se houvesse uma abrupta diferença de altura após a mureta, descortina-se uma paisagem urbana um tanto fantástica que talvez conserve ainda um eco do que foi e do que é o bairro carioca de Laranjeiras. Vemos campanários, prédios coloniais, sobrados, praças, palmeiras, uma mata nativa que desce dos morros e que convive com as construções. Acima de tudo isso, há um céu escurecido e povoado por nuvens carregadas. Abaixo e em primeiro plano, encontram-se as duas irmãs postadas para o seu retrato pela pintura. A primeira, a da esquerda, está sentada e apoiada no encosto do sofá, tem as mãos cruzadas sobre o colo, a expressão séria imprime ao seu gestual uma intenção de expor-se na reprodução plástica como quem domina a situação. A outra parece um pouco menos à vontade já que suas pernas e tronco desviam-se da direção dos olhos do seu observador. Para conservar a frontalidade, ela move apenas a cabeça, deixando claro seu desconforto nessa posição. Suas mãos também estão cruzadas sobre o colo como um meio de proteção e insegurança. Nessa cena, observamos que elas foram colocadas nessa posição para que pudessem ser retratadas. Porém, está claro segundo suas posturas que não lidam com essa situação da mesma maneira. Talvez pela presença do artista, um estranho que as observa detalhadamente para extrair suas formas, ou pelo constrangimento de atuar como modelo para o ato criador. Na maioria dos retratos, há dois olhares envolvidos: o de quem olha e o de quem é olhado. O espectador é um pouco de cada coisa, assim como o retratado. Aqui, há um terceiro olhar. Um olhar oblíquo que está ciente dos outros dois e que, de algum modo, olha esse olhar e fixa-se exatamente no vácuo daquela correspondência em retratá-las e mostrá-las para as outras famílias como representações pelo prisma de um artista importante e reconhecido naquela época. Os valores eufóricos não são os mesmos partilhados pelas irmãs. O que para eles representa um valor de reconhecimento social, de status, para as meninas representa uma invasão da sua intimidade; ou seja, é um valor altamente disfórico. Pelo exposto acima, o texto em análise tem os seguintes enunciados: • Enunciado de estado: os sujeitos “gêmeas” mantêm relação de junção com o conforto que tem em sua casa, o status conseguido pela posição política e 55 social do pai, bem como a segurança que a privacidade familiar pode proporcionar. • Enunciado de fazer: os sujeitos “pais” transformam a relação de junção das meninas com os objetos de segurança e privacidade quando as obrigam a posarem de modelo para um estranho. Na pintura em análise, encontram-se os seguintes enunciados de fazer e de estado: • Enunciado de estado conjuntivo: S ∩ O S (gêmeas) ∩ O (segurança e privacidade) PN1= F[S¹ → (S² ∩ Ov)] • Enunciado de estado disjuntivo: S U O S (gêmeas) U O (segurança e privacidade) PN2= F[S¹ → (S² U Ov)] F= função → = transformação S¹ = sujeito do fazer (os pais) S² = sujeito do estado (as gêmeas) ∩ = conjunção U = disjunção Ov = objeto-valor (segurança e privacidade) A organização narrativa é temporalizada, espacializada e actorizada. Para simplificar, as ações e os estados narrativos são localizados e programados temporal e espacialmente, e os actantes narrativos são investidos por categorias de pessoa. O discurso é um objeto da enunciação criado pelo sujeito da enunciação, por isso existe a necessidade de se observar todos os elementos utilizados na constituição desse enunciado, pois trazem toda a intencionalidade de quem produz o discurso. No discurso, os valores do nível narrativo estão na forma de percursos temáticos que podem ser investidos e concretizados em figuras. Do ponto de vista desse vórtice ótico que deve coincidir com o olhar do observador, tudo se organiza 56 referencialmente, ou seja, tudo é idealmente referido à distância que está de um olhar rápido sobre a cena retratada. A pintura em análise retrata as duas gêmeas sentadas em um sofá de madeira entalhada. Ao fundo, como se houvesse uma abrupta diferença de altura após a mureta, apresenta-se uma paisagem urbana um tanto fantástica que talvez conserve ainda um eco do que foi e do que é o bairro carioca de Laranjeiras. A imagem em destaque mostra um plano tão aproximado que corta o corpo das gêmeas acima da altura dos joelhos. Essa necessidade de focar as irmãs deixa claro que o importante na pintura são elas e não a retratação da cidade carioca. A cor clara utilizada nos vestidos delicadamente estampados mostra a contrariedade com a cidade ao redor, que apresenta cores fortes e linhas que traçam o rebuscamento barroco desses prédios. O aglomerado das habitações e a forma desordenada que foram retratadas podem traduzir a ideia de oposição com as meninas postadas, imóveis e perfeitas. A oposição de base com a qual o texto trabalha é a tensão entre a segurança que o artista tenta mostrar versus a insegurança causada pela desarmonia da composição estética da cidade. Essa situação fez com que toda a intimidade das meninas fosse exposta de uma maneira abrupta. Talvez elas não quisessem estar ali porque sentiam insegurança e descontentamento, mas aceitaram para manter o contrato social que permite que famílias importantes façam certos rituais, como pedir que profissionais de prestígio retratem seus entes queridos. O artista ao abordar o tema das irmãs gêmeas explora também as diferenças que as acompanham. É possível imaginar uma linha invisível que as separa na prancha. A primeira irmã à esquerda está mais iluminada e todo o fundo que está ao seu lado é separado pela linha imaginária. A irmã da direita, ao contrário, está na sombra, assim como o seu lado da pintura. Ambas concordam, porém, com suas expressões de insatisfação. Suas mãos cruzadas sobre o colo indicam que estão se protegendo. Será esta a visão do artista sobre como as famílias de prestígio interagem com a sociedade, ou a maneira como vê estas duas mulheres? Querendo assim mostrar a dualidade da identidade fraternal, onde no conjunto das suas diferenças é que resgata as semelhanças visuais, visto que são gêmeas e assim mostram-se parecidas em suas atitudes? Esta é a visão do artista ou a visão que imaginou ser a do expectador? 57 Como diz Fiorin (2006a, p. 21), a sintaxe dos diferentes níveis do percurso gerativo é de ordem relacional, ou seja, é um conjunto de regras que rege o encadeamento das formas de conteúdo na sucessão do discurso. O conto “Leite empedrado” relata a angústia de uma mulher que acaba de perder duas filhas em um açude e, ironicamente, logo em seguida dá a luz a outras duas filhas também gêmeas. O fato de a mãe ganhar duas filhas ao mesmo tempo em que sofre tão trágica perda não alivia o seu sofrimento. O paradoxo de vida e morte acompanha essa personagem tão singular por toda a narrativa: “Festa de aniversário não havia. Janaína e Jamela visitavam o cemitério. Ficavam o dia inteirinho diante da cruz das irmãs mortas” (CARPINEJAR apud MOUTINHO, 2005, p. 68). Em nenhum momento a mãe consegue se desvincular desse episódio funesto e durante toda a narrativa lamenta e compara as quatro filhas. Propositalmente ou por falta de lucidez, a mãe nomeia as novas filhas com os mesmos nomes das falecidas: “Não pensou nos nomes. Já estavam prontos, com roupas e sapatos” (Ibidem, p. 68). Essa postura adotada por Arlete, a mãe das meninas, causa certa confusão na descrição das ações praticadas pela mulher: ora ela faz alguma coisa pelas vivas, ora insiste em fazer algo e ficar lamentando pelas que se foram: “A mãe chamava pela casa as quatro filhas, duas mortas e duas vivas, entre panelas fumegando e janelas cerradas. Qual das duas vivia no escuro?” (Ibidem, p. 68). O texto é marcado pelas isotopias disfóricas da mãe que não consegue aceitar a perda das duas primeiras meninas. Esta cadeia sintagmática é observada também na figura do marido que nunca está presente e no subemprego que acentua ainda mais sua situação de infelicidade. Em seus comentários ela enfatiza a ironia do destino em tirar suas duas filhas e ao mesmo tempo presenteá-la com outras duas filhas na mesma data. A sensação que se tem a partir do ponto de vista da mulher é que a vida é pura ilusão, é triste e injusta. No conto em análise, prevalece a disforia, valor que é enfatizado pela trágica perda das duas meninas mortas em um açude e por toda a visão pessimista pela protagonista. As oposições semânticas abordadas neste conto são discutidas no seguinte percurso: 58 P.C. VIDA vs. MORTE P.E. VIDA vs. MORTE • VIDA (IRMÃS PRIMOGÊNITAS) → NÃO-VIDA → MORTE (IRMÃS MAIS NOVAS A dicotomia paradoxal que envolve toda a narrativa reflete o espírito angustiado e sempre triste da mãe que perde duas filhas afogadas em um açude. A vida das meninas que faleceram é mais importante que a vida das que nasceram posteriormente. O pesar e a autopunição por essa subtração criam uma barreira que a impede de enxergar as filhas que ganha logo em seguida. Essa mulher fica tão presa ao luto das duas primeiras filhas que não consegue perceber o quanto menospreza as duas que nasceram: “Dois minutos é pouco para uma vida, muito para uma morte” (CARPINEJAR apud MOUTINHO, 2005, p. 67). A história dessa mãe pode ser a de qualquer outra pessoa, mas a maneira como ela lida com a situação é o que torna o conto tão intrigante: “Janaína e Jamela nasceram no dia de finados. Provocação?” (Ibidem, p. 67). A temática abordada pelo enunciador reflete a única certeza que a personagem tem em sua vida: ela, assim com suas filhas, um dia morrerá! A certeza dessa mãe é refletida em todo o seu ser como mãe e mulher. O espírito pessimista e sua posição disfórica em relação à vida que vivia demonstram a maneira como encara seus problemas: “O leite empedrou como se fosse lápide o mamilo rosado. Rosa cheirosa de lápide, sem vala de pétala para sair o cheiro, sem abelhas para mudar de lugar” (CARPINEJAR apud MOUTINHO, 2005, p. 67). Os planos de expressão abordados nas impossibilidades de felicidade da mãe refletem ao mesmo tempo o plano de conteúdo que aponta para a oposição vida versus morte, pois as gêmeas que nasceram serão sempre encobertas pela perda das irmãs primogênitas. P.C. VIDA vs. MORTE P.E. ALEGRIA vs. TRISTEZA • ALEGRIA → NÃO-ALEGRIA →TRISTEZA 59 O único momento feliz que o sujeito personagem “mãe” viveu foi com certeza antes da morte de suas filhas, pois depois desse lamentável episódio ela só consegue ver o mundo pelo prisma da negatividade: “Se havia alguma coisa alegre no mundo era a dor” (Ibidem, p. 67). A escuridão da maneira como enfrenta sua vida obscurece a vida das pobres meninas que nasceram posteriormente do mesmo ventre que gerou aquelas que morreram prematuramente: “Janaína e Jamela fermentaram aos bocados, aos bordados, trancadas em casa. Idade não havia” (Ibidem, p. 67). A tristeza dessa mulher deixa de ser pessoal e passa a ser também coletiva, não chega a afetar a comunidade, mas a sua própria família: “O grito é uma forma de rir” (Ibidem, p. 68). Tudo o que representa a alegria para esta mulher foi enterrado junto com suas primeiras filhas. P.C. VIDA vs. MORTE P.E. ETERNIDADE vs. FINITUDE • ETERNIDADE → NÃO-ETERNIDADE → FINITUDE Eterno, para a mãe Arlete, é o sofrimento que sente pelas filhas que perdeu no açude. Finita é a alegria que sente por essas crianças que partiram antes da hora levando consigo o motivo de viver da mãe: “Cidade pequena é assim: tudo termina cedo para começar mais tarde. Jamela e Janaína são tão fortes que cresceram sem existir” (Ibidem, p. 68). A afirmação da eterna alegria com àquelas que se foram é negada pelo fim que tiveram. Para a mãe, a exposição da memória das duas filhas mortas é mostrada a partir das duas gêmeas que nasceram. A realidade presenciada por ela retoma o que pode ter sido de suas filhas que se foram nas duas que são representadas pelas que nasceram depois. O exercício da memória dos fatos passados é a impossibilidade de um cenário eufórico no futuro. A reminiscência é ao mesmo tempo uma produção particular e compartilhada. Particular como marca de subjetividade do sujeito mãe e compartilhada porque sua produção causa o assujeitamento das filhas que nasceram pela situação de estarem em segundo plano. Elas jamais serão alguém senão aquelas duas que nasceram na hora e no lugar errados: “Festa de aniversário não havia. Janaína e Jamela visitavam o 60 cemitério. Ficavam o dia inteirinho diante da cruz das irmãs mortas” (CARPINEJAR apud MOUTINHO, 2005, p. 68). Segundo Barros (2002a, p. 16), no nível das estruturas narrativas são construídas as enunciações do ponto de vista de um sujeito. Isso porque as “estruturas narrativas simulam, por conseguinte, tanto a história do homem em busca de valores ou à procura de sentido quanto a dos contratos e dos conflitos que marcam os relacionamentos humanos”. Neste conto, acontece apenas uma transformação significativa. O sujeito “mãe” começa a narrativa em conjunção com a memória das filhas mortas em um açude – seu objeto-valor. O fato de ter gerado mais duas filhas a obriga a desviar sua atenção desse seu objeto-valor, ou seja, o sujeito “filhas novas” transforma a situação do sujeito “mãe”. O programa narrativo deste conto é definido pelo enunciado de fazer (filhas gêmeas) que rege um enunciado de estado (mãe-mulher), ou seja, o sujeito “filhas novas” faz a transformação necessária para definir a situação de junção do sujeito “mulher” com seu objeto de valor. É nesse momento que a transformação é operada por um sujeito e pode criar outros programas narrativos. As filhas que nascem posteriormente obrigam a mulher, que está em conjunção com a memória das filhas mortas, a desviar a atenção do seu objeto-valor, mesmo contra sua vontade, para se concentrar em um novo objeto-valor que são as filhas novas. No conto em análise, encontram-se os seguintes enunciados de fazer e de estado: • Enunciados de estado: o sujeito “mãe-mulher” mantém relação de junção com o objeto-valor “memória das filhas mortas”. • Enunciados de fazer: o sujeito “filhas novas” transforma a relação de junção do sujeito “mãe-mulher” com o objeto “filhas falecidas”. Há, portanto, uma transformação de junção para o sujeito “mãe”. 61 Verificamos que o programa narrativo deste conto pode ser representado como PN1 = F[S¹ → (S² U Ov)]. F = função → = transformação S1 = sujeito do fazer (filhas gêmeas) S2 = sujeito do estado (mulher-mãe) ∩ = conjunção U = disjunção Ov = objeto-valor (memória das filhas falecidas) Também encontramos no conto os seguintes enunciados de fazer e de estado: • Enunciados de estado: o sujeito “mulher” mantém relação de junção com os objetos “memórias das filhas primogênitas”. • Enunciados de fazer: os sujeitos “filhas gêmeas” tomam o lugar das primogênitas. • Enunciado de estado conjuntivo: S ∩ O S (mulher) ∩ O (memórias das filhas primogênitas) • Enunciado de estado disjuntivo: S U O S (mulher) U O (memórias das filhas primogênitas) Como vimos neste momento da análise à organização narrativa é temporalizada, espacializada e actorizada. Para simplificar, as ações e os estados narrativos são localizados e programados temporal e espacialmente. Os actantes narrativos são investidos por categorias de pessoa. No discurso, os valores do nível narrativo estão na forma de percursos temáticos que podem ser investidos e concretizados em figuras. O tempo, o espaço e as pessoas do discurso dependem de dispositivos de desembreagem que fazem com que o enunciador do texto produza os efeitos de sentido de aproximação e distanciamento. Por essa razão, a desembreagem pode ser enunciativa quando há o efeito de proximidade marcado pelo uso da primeira pessoa eu do tempo presente agora e do espaço aqui; ou enunciva quando o efeito 62 produzido é o de distanciamento que emprega a terceira pessoa ele, o tempo então e o espaço lá. O tempo utilizado no conto é o pretérito imperfeito do modo indicativo. Esse tempo é empregado para exprimir um fato anterior ao momento em que se fala, mas não o fato considerado concluído, acabado. Revela a ação em seu curso, em sua duração. A pessoa utilizada é a terceira do singular. Portanto, o conto em análise utiliza a desembreagem enunciva, pois o efeito que pretende mostrar é o de distanciamento, abordagem também utilizada por Guignard na tela “As gêmeas”. Assim, este conto pode ser considerado pluri-isotópico já que desenvolve várias leituras temático-figurativas. São elas: • Leitura da falta de perspectiva de melhora de vida; • Leitura do medo da mudança; • Leitura da insegurança pelo novo; • Leitura da infelicidade permanente; • Leitura da incompletude humana. 3.1 O DUPLO COMO ELEMENTO DE ANÁLISE COMPARATIVA O conto de Carpinejar narra à história de uma mãe que perde, ao mesmo tempo, duas filhas gêmeas afogadas em um açude. Inexplicavelmente, por muitas bênçãos ou zombarias do destino, essa mãe engravida novamente de gêmeas. Entretanto, essas crianças não têm os mesmos cuidados que as primeiras tinham. O que deveria ser a alegria da mulher torna-se um suplício, pois o fato de estarem ali remetem à lembrança das outras duas que se foram. Dessa forma, paradoxalmente vida e morte disputam a mesma atenção. A dualidade presente neste texto é representada por uma forma específica da manifestação dos dois actantes11 – irmãs vivas e irmãs falecidas – que operam com seu próprio conjunto de leis autorreferenciais: “A mãe chamava pela casa as quatro filhas, duas mortas e duas vivas, entre panelas fumegando e janelas cerradas. Qual das duas vivia no escuro?” (CARPINEJAR apud MOUTINHO, 2005, p.68). 11 Actante é uma entidade sintática da narrativa que se define como termo resultante da relação transitiva de junção ou de transformação (BARROS, 2002a, p.84). 63 O conceito de duplicidade é apresentado por meio da coexistência das quatro irmãs gêmeas, sendo que apenas duas delas estão vivas. O modo como a mãe reage à perda e ao mesmo tempo ao ganho de duas filhas mostra o abalo em sua vida que parecia estável até aquele momento. Seu luto permanente ofusca a vida das pobres meninas que nasceram posteriormente. As duas realidades que agem concomitantemente estão presentes nos elementos isotópicos das seguintes oposições semânticas: vida e morte, claro e escuro, tristeza e felicidade. Portanto, o paradoxo é expresso simultaneamente à própria narrativa. O sujeito “mãe” não sabe mais quem das quatro filhas está viva. Por vezes, ela manipula as vivas e em outros momentos é manipulada pelas filhas mortas. Também manipula a própria vida em função das mortas, o que negativamente acaba por manipular a vida das pobres irmãs vivas. O dualismo aqui se manifesta no fato de que duas tendências antitéticas disputam o mesmo segmento de tempo e espaço. É difícil afirmar quem das duas irmãs está realmente viva no espaço físico ou na lembrança da mãe. A coexistência de duas realidades presentes no texto só é possível por conta da perda das duas primeiras filhas; ou seja, a tragédia foi paradoxalmente a causadora do apagamento das duas filhas vivas. Greimas e Fontanille (1993, p. 30) afirmam que a instabilidade da cisão12 e a intercambialidade dos papéis de sujeito e de objeto observadas na manifestação discursiva fazem pensar que, no intervalo que separa o estado fusional do estado cindido, a aparição do “duplo” pode ser interpretada como prefiguração da intersubjetividade e como a relação sujeito-objeto. O objeto desejável pelo sujeito de estado “mãe” é um elemento impossível de se reaver e isso a torna impotente e desgostosa com os seus verdadeiros objetos de valor: as filhas vivas. Isso significa que o sujeito de estado “mãe” está em disjunção13 com o objeto-valor “filhas falecidas”. Enquanto os sujeitos “filhas vivas” estão em disjunção com o objeto-valor “mãe”. • S (MÃE) U OBJETO-VALOR (FILHAS FALECIDAS) • S (FILHAS GÊMEAS VIVAS) U OBJETO-VALOR (MÃE) 12 Ato ou efeito de cindir [separar (-se), dividir (-se)] (FERREIRA. 2000, p. 156). 13 Privação do objeto-valor. 64 Este conto caracteriza-se por não colocar em discussão a personalidade das duas irmãs vivas que sofrem a duplicação, e sim por abordar a maneira como a memória das irmãs mortas influencia na vivência das que nasceram posteriormente. Na prática, o duplo ou a lembrança das irmãs que se foram não só substitui, momentaneamente, as irmãs vivas, mas também aponta o modo como são esquecidas ao longo da história pela própria mãe. Assim, a semelhança física, os nomes e a condição de filhas servem também para usurpar a identidade das outras. Portanto, não ocorre a divisão interna de suas verdadeiras personalidades, ao contrário, as outras duas irmãs falecidas mantêm-se vivas pela vontade da mãe e, dessa forma, as irmãs que já não estão mais presentes fisicamente estão vivas na memória e na constante contemplação de sua mãe: Vestiam a mesma roupa. A roupa das irmãs gêmeas mortas. Jamela gostava de ser Janaína e Janaína gostava de ser Jamela, para enlouquecer a mãe. Mas Jamela se agravava em Janaína pela cova abaixo da boca e Janaína se fingia de Jamela emagrecendo (CARPINEJAR apud MOUTINHO, 2005, p. 68). A cisão do indivíduo, no caso do conto, das irmãs vivas em duas (quatro) partes de cada uma delas acaba por reforçar a ideia de que elas não são, nem nunca serão, únicas em suas vidas. Suas respectivas posições no texto ainda não são fixas, pois são actantes funcionais14 visto que por causa de sua imprecisão são intercambiáveis com o seu duplo, no caso, as outras irmãs falecidas. Suas duas meninas, santas criaturas, haviam morrido antes e se chamavam Jamela e Janaína. Morreram afogadas no açude. Não eram gêmeas. Nada no mundo é gêmeo: a alegria, a dor, a esperança, o rancor da alegre dor. Se havia alguma coisa alegre no mundo era a dor, isso Arlete conhecia (Ibidem, p. 67). Tudo é narrado como se a voz do enunciador se elevasse repentinamente para dizer sua própria verdade. Não parece mais a voz do narrador por ele autorizada a relatar os fatos do modo como estavam sendo narradas. A instabilidade da cisão e a intercambialidade dos papéis dos actantes funcionais “meninas” e do seu duplo “irmãs falecidas” são observadas na manifestação discursiva. Isso faz pensar que a vivificação do duplo pode ser 14 O actante funcional, por sua vez, caracteriza-se pelo conjunto variável dos papéis que assume em um percurso narrativo (BARROS, 2002a, p. 84). 65 interpretada na relação do sujeito “mãe” com o objeto-valor “filhas falecidas” e na disjunção dos actantes “irmãs vivas” com o objeto-valor “mãe”. O duplo assemelha- se às irmãs de modo tão reduplicado que assume suas identidades e conquista uma autonomia sem precedentes, na medida em que as protagonistas vivas se intimidam cada vez mais e se anulam como indivíduos. Portanto, a realidade causada pelo duplo na vida da mãe e, principalmente, das irmãs faz com que as meninas sejam incessantemente colocadas em um segundo plano, entregando assim seus lugares às irmãs que já se foram. A prancha de Alberto da Veiga Guignard (1896-1962) intitulada “As gêmeas” (1940) retrata duas irmãs gêmeas de nomes Léa e Maura. A tela mostra essas mulheres sentadas em um sofá, tendo ao fundo a paisagem de Laranjeiras, bairro do Rio de Janeiro. As semelhanças e as diferenças mais óbvias entre elas são um estímulo ao exercício de comparação, visto que são gêmeas e essa inevitabilidade acaba por apontar as estranhezas na composição das duas irmãs. O certo é que a semelhança física não é sinônima de comportamentos idênticos, pois elas até podem dividir afinidades, mas possuem personalidades, temperamentos e anseios distintos. O primeiro ponto a ser observado é o olhar que ambas mostram. A primeira delas, a da esquerda, passa um ar de quem está mais à vontade, mesmo esboçando um semissorriso. A segunda, ao contrário, mostra seriedade e deixa claro que por algum motivo não está com o mesmo ânimo. Apesar de estarem sentadas não estão relaxadas, pois mal se encostam no apoio do banco. Mas a primeira está mais apoiada, o que sugere que aceita melhor a situação. A posição das mãos de ambas, cruzadas sobre o ventre, mostra que querem se preservar. Mas até que ponto é possível perceber a identicidade dessas irmãs? A representação dos corpos em sua criação estética expressa seus desejos e suas paixões e se modula aos ritmos daquilo que desejam (ou não) apresentar. As sensações retratadas por meio da materialidade criada pelo artista são apenas algumas das muitas possíveis de se interpretar, pois as modelos podem querer transmitir outra imagem que não é a real. As posições observadas nas irmãs articulam-se de um modo fragmentado entre as duas. Assim, demonstram que a ideia de um duplo é representado ora em um corpo, ora em outro. A articulação do observador com a tela é o que conduz os detalhes de uma irmã para a outra, de maneira que certos pormenores podem ser anexados ou extraídos para completar- 66 lhes o sentido. Mesmo sendo gêmeas, as imagens transmitem uma leitura diferenciada, de forma que uma pode que ser/estar mais imponente ou mais fraca que a outra. O arquétipo nesta pintura conduz o leitor até a reflexão sobre a (in)completude do indivíduo, e sobre como a reprodução só existe em função do original, ou seja, a individualização só é possível pelo próprio desdobramento, e vice-versa. Nesse ponto de vista, o duplo é um processo que desdobra o indivíduo original e o apresenta como outro, ainda que só possa fazê-lo no ponto de vista estético, pois um sujeito não poderia pensar, agir, sentir e ver o mundo como o original mesmo se quisesse. Dessa forma, gera-se a partir de um para, imediatamente, dele se individualizar e adquirir existência própria. A sua coexistência como o “eu” do qual é originário, contudo, nem sempre é pacífica. No quadro das gêmeas, por exemplo, uma parece estar mais à vontade que a outra e isso é visto pelo olhar direcionado para o observador que a retratou, bem como pela posição em que está sentada. Percebemos que seu corpo está de frente para o artista, enquanto a irmã está voltada para outro lado, assim como seu olhar fortuito. Elas estão com vestidos iguais nas mesmas cores, o mesmo penteado e aparentemente a mesma maquiagem. São tão parecidas fisicamente, mas tão diferentes na personalidade. Nesta representação pictórica, ambas as irmãs partilham de uma relação de interação que, por mais que reforcem suas diferenças, acabam por reforçar suas individualidades: elas só podem ser gêmeas por causa da outra, uma só é diferente porque tem a outra para se comparar. É, portanto, na particularidade que se origina o indivíduo que, por ser único, não pode ser representado por um duplo. Estar ali postadas para a retratação reforça o individualismo das irmãs, pois enquanto a primeira parece divertir-se com a situação, a segunda demonstra seu pesar. Uma quer ser apreciada e a outra quer se esconder. O duplo, portanto, ressalta apenas semelhanças e diferenças físicas entre ambos os sujeitos. Como extensão do caráter individual, um jamais partilhará dos mesmos traços que exaltam o estatuto de outro dele mesmo. Estabelece-se, por isso, somente uma relação de cumplicidade estética entre esses sujeitos que ora completam, ora são completados. O que se vê em um, não se vê em outro. 67 CONSIDERAÇÕES FINAIS Para a comparação e o estudo dos elementos constitutivos de sentido entre os textos pictóricos e os textos verbais deste trabalho, foi utilizada a análise semiótica francesa e os apontamentos da intersemioticidade e da interdiscursividade abordados anteriormente. O termo intersemiose15 é apresentado aqui como o diálogo estabelecido entre os contos e suas respectivas pinturas, no caso, “Apenas eco” com a pintura “Moças” e o conto “Leite empedrado” com a prancha “As gêmeas”. A leitura dos contos que foram escritos a partir da interpretação das referidas pinturas é o ponto criador deste diálogo. Trata-se de uma linguagem que adapta para si os códigos da outra: a releitura escrita dos elementos encontrados na representação pictórica. Isso se deve ao fato de que a obra foi traduzida para a nova linguagem e não transposta. A tradução implica em uma deliberada escolha de elementos mais significativos da obra original que continuam sendo significativos na nova linguagem. Assim, todos os excessos que não funcionam são deixados de lado. Diante de uma obra de arte, o leitor faz a interpretação visual do conjunto que observa. Ele é capaz de se emocionar de modo livre e espontâneo, ou simplesmente não gostar daquilo que analisa. Bem diferente é o processo de tradução de uma obra para outra linguagem, visto que as características já estão solidificadas culturalmente. Essa é uma tendência contemporânea que utiliza o sincretismo para a divulgação dos mais variados meios de comunicação. É uma fusão entre dois meios de representação de um texto, ou seja, um processo que visa à explicação de uma obra pela outra. Por isso este trabalho destaca não só o diálogo existente entre os referidos contos e pranchas, mas também a correspondência entre os recursos de expressão utilizados em ambos que cria um eixo semântico. A junção mostrada no livro Contos sobre tela (2005) entre a arte pictórica e a arte escrita não é um processo recente, muito menos inovador, pois esse processo dialógico já foi abordado inúmeras vezes por outros autores. Podemos citar como exemplo a obra Arte para Crianças que mostra textos de Ana Maria Machado, Walmir Ayala, Ziraldo, Fernando Sabino, Luis Fernando Veríssimo ao lado de 15 Inter-relações entre textos verbais e filmes, pinturas e músicas; é o estudo interartes, transdisciplinar. 68 pinturas de Alfredo Volpi, Milton Dacosta, Tomie Ohtake, Lasar Segall, Carlos Scliar e Arcângelo Ianelli. Também há o livro História de quadros e leitores, organizado por Marisa Lajolo, em 2006. Os dez títulos da coleção Arte conta histórias, da Difusão Cultural do Livro (DCL), assinada pela crítica e ensaísta Kátia Canton, descrevem os bastidores de lendários contos de fadas de vários países ao lado de ilustrações e projetos gráficos especialmente criados por artistas nacionais contemporâneos, entre eles Pinky Wainer, Guto Lacaz, Leda Catunda e Luiz Paulo Baravelli. O que torna Contos sobre tela uma obra digna de análise é a construção de textos verbais a partir de pinturas consagradas em diferentes épocas e por diferentes artistas. A atemporalidade das pinturas foi o ponto de partida para a construção dos enunciados que brilhantemente destacam o mundo atual, sua tristeza e incompletude diante da vida. As construções textuais apresentadas em forma de contos são as superfícies verificatórias dessas representações pictóricas, por meio das quais o leitor pode pressupor as relações estabelecidas entre ambos e a intencionalidade do pintor e dos autores dos contos. É, por isso, que no instante de interpretação dos sentidos das narrativas já se percebe também a relação com a constituição das pranchas. O contexto social e histórico é outro, a situação de criação e a intencionalidade são diferentes, a materialidade de ambos é diferente, porém, certos aspectos são recorrentes. Para Fiorin (2006b, p. 24) o dialogismo apresenta que “todo enunciado constitui-se a partir de outro enunciado, é uma réplica a outro enunciado”. Na tela o pintor quer representar o que para ele é uma simulação da realidade. No texto verbal, o escritor faz uma releitura dessas imagens, faz uma interpretação de como aquelas imagens são representadas hoje em sua vivência pelo conteúdo da pintura. Percebemos que na constituição pela pintura ou pelos textos verbais só é possível apontar alguns elementos de recorrências, pois um texto só pode ser criado mediante uma realidade momentânea. A tentativa de materializar a significação da pintura só pode ser possível por meio da própria pintura, da mesma forma acontece com o texto verbal; ou seja, na medida em que é mantido nos contos o mesmo campo semântico observado na expressão pictórica, cria-se um elo de interdiscursividade. As análises semióticas desenvolvidas neste trabalho apontam as relações existentes primeiramente em uma construção intersemiótica já que expõe a tradução do texto pictórico a partir do texto verbal. Em um segundo momento, aborda as 69 relações de proximidade apreendidas na leitura dos dois textos apresentados, isto é, analisamos a construção e a significação de cada discurso. No decorrer deste trabalho foi mantido o elemento questionador sobre a existência de alguma relação entre os textos, ou ainda de que forma os resultados os aproximam caso haja diálogo. As indagações que até então direcionam os apontamentos deste estudo urgem por demonstrar como acontecem as intersecções dos elementos semânticos nos dois textos, o verbal e o visual, visto que suas constituições são singulares e forjadas em épocas e contextos culturais distintos. Os dois, portanto, nas suas trajetórias, carregam a intencionalidade cabível somente na sua arte e por isso só podem representar aquilo que lhes foi proposto. No capítulo introdutório analisamos a ligação semântica existente entre a produção verbal “Apenas eco”, de Flávio Izhaki, e a obra pictórica “Moças”, de Di Cavalcanti. Observamos aqui que o conto foi escrito a partir da interpretação que o contista fez da prancha de Di Cavalcanti, portanto, o escritor recorre ao conceito de intersemioticidade para apresentar o seu produto de interpretação. Em razão disso, a interdiscursividade também se faz operadora desta análise já que, com a tradução da pintura em conto, ambos os textos passam a compartilhar de discursos muito próximos apesar de exporem conteúdos diferentes. Na pintura “Moças”, Di Cavalcanti denuncia o modo como aquelas mulheres são tratadas e faz isso com cores fortes e linhas grossas para expor o ambiente obscuro e triste que não é visto pela sociedade. Alguns desses elementos podem ser observados no conto “Apenas eco”, de Flávio Izhaki, como a solidão, a busca por segurança e a infelicidade constante da protagonista. Os elementos intertextuais dialogam entre ambos os textos que influenciam e são influenciados no processo de interpretação e verificação das recorrências. No conto “Leite empedrado”, o autor aborda o duplo que se instaura na narrativa devido ao falecimento e nascimento de duas irmãs gêmeas. Situação que causa na mãe muita angústia e constante pesar, pois se sente culpada pela perda das primeiras filhas. O paradoxo apresentado pelas trocas de identidade entre as irmãs já que a mãe não as distinguia mais é observado também na constituição da prancha “As gêmeas”. É perceptível que mesmo sendo gêmeas são muito diferentes na forma como se expõem: uma parece gostar de estar ali posando e sendo apreciada e a outra deixa claro o seu descontentamento de estar ali na mesma situação. Essa relação de duplicidade é observada nos dois textos, o verbal e o 70 plástico-pictórico. Ambos abordam o tema das diferenças entre os iguais. Os dois autores conseguem mostrar, por meio de suas artes, o mesmo tema. Percebemos, portanto, que tanto no processo de produção dos contos quanto na produção das pinturas alguns elementos podem ser observados como recorrentes. Em sua interpretação, isso se dá pelo processo de retomada de alguns dos elementos constitutivos de significação de ambas as obras e, assim, servem de esteio para a interpretação dos textos. Aqui é importante marcar a primazia de Bakhtin em relação a esses estudos que postulam que “dialogismo são as relações de sentido que se estabelecem entre dois enunciados” (FIORIN, 2006b, p. 19) em que um se deixa atravessar pelo outro e aponta para outras formas de ver e de pensar o mundo. Dessa maneira, o que pode se concluir desse capítulo inicial é que a oposição semântica, a disjunção com os objetos de valor e a predominância da disforia são elementos que podem ser observados na representação pictórica e no conto. Isso quer dizer que o autor do texto verbal permanece fiel à leitura que fez da obra visual e que, por elementos recorrentes de sua constituição, recria todo o ambiente encontrado no prototexto. No primeiro conto, “Apenas eco”, a personagem está em disjunção com o objeto de valor “filho”. Ela tenta de todas as maneiras engravidar para que esse filho lhe traga a companhia tão almejada. Já no segundo texto, “Leite empedrado”, a mulher começa em disjunção pela morte das filhas gêmeas em um açude, mas é ironicamente agraciada logo em seguida com mais duas filhas, novamente gêmeas. No segundo conto, o paradoxo é exatamente pelo fato dessa mãe não ficar contente pela gravidez; ao contrário, ela se lamenta durante toda a narrativa pelo pesar das primeiras filhas. De certo modo isso pode ser comparado com a primeira personagem que não tinha o seu filho, ou seja, ambas estão em disjunção com os filhos: o objeto-valor. A mulher do primeiro texto busca conquistar de todas as maneiras um companheiro para compensar toda a situação de desprezo e humilhação que passou durante toda a vida. O sujeito “mulher” do segundo conto tem um marido, mas não um companheiro: “O pai Boécio andava de caminhão pelas estradas. Nunca vinha para jantar. Nunca vinha para almoçar” (CARPINEJAR apud MOUTINHO, 2005, p. 68). Essa mulher tem um marido e mais duas filhas, algo que possivelmente lhe faria feliz. Todavia, o luto que carrega pelas primeiras filhas e a dor que está presente em tudo o que faz deixa claro o mesmo vazio encontrado na 71 primeira personagem, o que mostra novamente a proximidade das situações vividas por essas duas mulheres. A disjunção aqui é com a companhia de alguém que cuide e se dedique à família. O objeto-valor para ambas as personagens é o mesmo, é o companheirismo que esperam de alguém. No primeiro conto a menina-mulher perde a mãe muito cedo e, por isso, é criada de forma rústica e ríspida pelo pai que a via apenas como um peso a ser carregado: Minha mãe tinha morrido e meu pai levou-me um dia ao médico, sem dizer palavra, esboçar carinho, pronunciar seu maior medo. Subiu no elevador comigo e disse que dali não passava, para eu pagar a consulta com o cartão do plano de saúde e voltar de ônibus. Achou que eu estava grávida (IZHAKI apud MOUTINHO, 2005, p. 70). Já a mulher do segundo conto perde suas primeiras filhas afogadas em um açude. Esse episódio marcou para sempre sua vida e nada de bom que lhe acontecia, como o nascimento de outras filhas, não compensava sua dor pelas primeiras. Por isso, ambas as mulheres estavam em conjunção com uma perda de algo importante para elas, novamente um valor disfórico. Na análise comparativa entre as duas mulheres, podemos citar ainda o subemprego a que elas se submetem para terem o seu sustento. No primeiro conto a mulher é contratada mesmo sem experiência para trabalhar em um escritório onde não fazia nada além de servir sexualmente a seu patrão: Primeiro dia de trabalho, secretária pessoal, todos me paparicaram, deram atenção, o chefe elogiou meu currículo em branco [...]. Sentei- me à minha mesa e não tinha nada para fazer. A secretária mais velha falou que eu era uma gracinha, perguntou como consegui aquele emprego sem experiência prévia. [...] Vem cá em minha sala mais tarde, tranca a porta (Ibidem, p. 71). Arlete, a mulher do segundo conto, trabalhava como faxineira em um hotel “Apagava a memória dos hóspedes, que encontravam o quarto ileso do primeiro dia” (CARPINEJAR apud MOUTINHO, 2005, p. 67). Elas se sujeitam a um emprego humilhante e enfadonho enquanto buscam aliviar suas tristezas da vida pessoal. A tristeza sempre presente na vida das duas mulheres retrata não só a infelicidade constante que aflige essas personagens, mas também mostra um elemento instaurado na sociedade contemporânea. A descrição da vida dessas 72 mulheres reflete algo em comum entre os escritores dos textos: a incompletude e a tristeza constante que acompanham o indivíduo nesta sociedade moderna. Tal recorrência percebida nos dois contos é o ponto de partida para a construção desses textos que retratam a mesma opinião de forma polêmica ou consensual. Não podem, então, ser compreendidos senão como eivados de ideologias que, presentes na produção desses enunciados, produzem também os mesmos discursos. Está aí a interdiscursividade recorrente nos dois enunciados. O resultado obtido pela análise dos dois contos e das respectivas pinturas mostra as incertezas e as incapacidades de uma vida estável e segura. Essa incompletude retratada por meio das personagens dos contos mostra como o homem não preencherá o seu vazio existencial na busca individual ou na tentativa de interação social. O homem busca em sua vivência realizar desejos impossíveis, expectativas e aspirações que não serão alcançadas porque sempre procura nos lugares errados. A ação do homem sobre o mundo marca o próprio homem e sua individualidade. Cada indivíduo tem um objeto-valor segundo a sua necessidade, de acordo com o que acredita ser o melhor para si. Mesmo assim, o destino de cada ser humano é a incompletude essencial. O indivíduo luta contra um vazio que ele mesmo cria cada vez que não consegue realizar os seus sonhos. O princípio fundador da vida é a interação que ocorre tanto no plano do particular sem a visibilidade do outro, como no plano do coletivo. Assim, percebemos o caráter de inconclusão que se materializa, pois o ser humano é egoísta e sua consciência individual depende da relação entre os sujeitos ao redor. Ao se presentificar o homem, revela-se a vida e a sua incompletude. Segundo Bakhtin: Todo sistema de normas sociais encontra-se numa posição análoga; somente existe relacionado à consciência subjetiva dos indivíduos que participam da coletividade regida por essas normas. São assim os sistemas de normas morais, jurídicas, estéticas (tais normas realmente existem), etc. Certamente, essas normas variam. Diferem pelo grau de coerção que exercem, pela extensão de sua escala social, pelo grau de significação social, que é função de sua relação mais ou menos próxima com a infra-estrutura, etc. (2006b, p. 94). É necessário afirmar que essas prévias conclusões são inconclusas do ponto de vista científico. Concluímos destacando que são apenas indícios e extratos dos estudos realizados neste trabalho de análise semiótica. 73 REFERÊNCIAS BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2006a. ______. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2006b. BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria semiótica do texto. São Paulo: Ática, 2002a. ______. Teoria do discurso: fundamentos semióticos. São Paulo: Humanitas, 2002b. BÍBLIA SAGRADA. São Paulo: Edições Paulinas, 1989. BRAIT, Beth. Bakhtin: conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2006. BRANDÃO, Helena H. M. Introdução à análise do discurso. Campinas: Editora da UNICAMP, 1991. CHABROL, Claude. Semiótica narrativa e textual. Trad. Leyla P. Moisés et al. São Paulo: Cultrix, 1977. COURTÉS, J. Introdução à semiótica narrativa e discursiva. Coimbra: Almedina, 1979. DI CAVALCANTI, E. Moças. 1968, óleo sobre tela, 81,5 cm x 117 cm. Coleção Aldo Franco. DUCROT, Oswald. O dizer e o dito. Campinas: Pontes, 1988. ______. 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Romper os limites negros da fronteira com o mundo, inundar de vermelho o branco enevoado da vida adulta. Lembro de uma ladeira. Devia ter treze, quatorze anos. O gosto daquele garoto de dezoito era amargo, cerveja e cachaça, e o nosso beijo baba espessa, salivosa, borbulhas brancas saindo pelo canto da boca, e, mesmo assim, era bom, me sentia adulta, mulher, beijando um desconhecido. Que abriu a bermuda, baixou a cueca e começou a roçar o pau meio duro entre as minhas coxas, e eu de novo menina, criança, oito, nove anos, que queria correr dali, com nojo, mas ele agarrou minha mão gelada, gelada e riu. Guarda isso, guarda. Mas eu não consegui dizer nada e o pau dele foi crescendo e caindo para o lado direito. Tive vontade de chorar, correr para minha cama e apertar meus ursinhos, cachorrinhos e gatinhos de pelúcia entre os seios e coxas. Voltei para casa pesando vergonha, vermelho manchando calcinha e sonhos. Sujeira que os banhos não tiram. Cedo, aprendi que era um erro crescer cedo demais. Cedo, percebi que era impossível não crescer. Restou-me esconder em minhas camisas largas e aparelho nos dentes, sábados desenhando felicidades e domingo assistindo a desenhos, até aparecer Alfredo e seu galanteio tradicional. Flores e bombons, sorrisos e mesuras, elogios e cartinhas, uma sessão de cinema com beijinhos no ouvido e um relaxa sussurrado como mantra. Cada cena diurna, luz amarelo-azulada que clareava a sala, era um susto; relaxa; cada dedo entrando uma dor desmedida; relaxa; um arrepio vinha acompanhado de culpa; relaxa. Na saída do cinema ele foi se afastando, afastando e por mais que eu procurasse suas mãos, que minutos antes estavam dentro do meu corpo, elas, arredias, eram ágeis para outras reentrâncias; o bolso do seu casaco, da calça, a mochila para pegar o relógio e dizer que estava tarde, muito tarde, precisava ir para casa e nunca mais me ver. Novamente voltei correndo chorando, a vergonha que carregava comigo era também de outro, irradiava contagiosa. Luz apagada, travesseiro entre as pernas e uma inadequação permanente: muito feia, muito baixa, seios pequenos, usada, suja. Minha mãe tinha morrido e meu pai levou-me um dia ao médico, sem dizer palavra, esboçar carinho, pronunciar seu maior medo. Subiu no elevador comigo e disse que dali não passava para eu pagar a consulta com o cartão do plano de saúde e voltar de ônibus. Achou que eu estava grávida. Doutor Carlos, ginecologista, alisou minhas coxas com dedos esguios, abriu minha identidade com precisão cirúrgica e disse que eu deveria começar a tomar pílulas, já estava na idade. Não dei ouvidos e no banheiro de casa refiz com as minhas mãos destreinadas a trajetória do doutor Carlos ensejou com aspereza. Vergonha é sentimento maior que palavra, não cabe em sílabas, ignora plural. As meninas falavam de namorados, namoricos, paixão, amor, todas falavam de amor com dezessete anos, e eu, afastada, falava de vergonha com aminha mudez. Cada voz renegada encarcera uma história, e eu tinha várias, e nenhuma poderia sair, ganhar o mundo, cair na boca de outras pessoas. As meninas da escola falavam de amor, cochichavam segredos e perguntavam para mim: - Nada? – E assim fui me escondendo, entre nada e silêncio, mentiras e omissões, vergonha. Primeiro dia de trabalho, secretária pessoal, todos me paparicavam, deram atenção, o chefe elogiou meu currículo em branco, disse que eu era uma jovem bem 79 preparada. Sentei à minha mesa e não tinha nada para fazer. A secretária mais velha falou que eu era uma gracinha, perguntou como consegui aquele emprego sem experiência prévia. O estagiário puxa ferro, cabelo de menina em boate, papo comigo, sorriso de deboche no rosto. E eu, sem nada para fazer no primeiro dia , segundo terceiro, e vê se chegou o fax do cliente; não; faz um clipping do que saiu na imprensa, atende meu telefone e anota o recado enquanto eu estiver em reunião. Vem cá me minha sala mais tarde, tranca a porta. Eu beijava Augusto todas as terças à noite, entre quatro paredes, vida em segredo, enquanto ele estava jogando futebol, tomando chope com os amigos, trabalhando até tarde. Era meu chefe, numa terça de março, quentura de cortinas fechadas de fim de verão, ele disse que iria se casar, e respondi que tudo bem, estava cansada de ser a outra, enjoada daquela opressão de quarto de motel barato, de sentir peso natimorto sobre mim, suas costas peludas, hálito azedo de língua amarelada. Ele batia na minha bunda e ordenava: rebola putinha, e eu, que nada sabia, sabia que depois viria um gozo rápido, mas apenas dele. Eu voltava pra casa, nem acendia a Liz da sala e ia direto para a janela, atrás da cortina. Olhava os vizinhos da frente durante a noite inteira, meu reality show particular, antes de qualquer Big Brother, e os vizinhos eram velhos, gordos, e se faziam carinhos e sorriam os vizinhos da frente tinham filhos, crianças, e a vizinha acordava mais cedo e fazia o café para o mais velho antes de acordá-lo de manhã para a escola. Despediam-se com beijo na bochecha, e depois ela virava para a minha janela com sorriso ainda grudado no rosto. Amor, acho. Eu sentia inveja, sentia inveja sozinha, porque inveja não bole com plural. Em maio a menstruação atrasou, e essa foi a melhor notícia. A minha vida seria ter aquele bebê; niná-lo, mimá-lo, escová-lo. O sentido era esse então, e não aquela mesquinharia de afeto. Esperei que minha gravidez me legasse um grande e orgulhoso barrigão, que desfilaria entre as vizinhas no elevador apertado, na calçada da praia, tomando água-de-coco, é pra início do ano que vem, sorriria. A menstruação veio um dia no metrô, ida para o trabalho. Eu sentada nos bancos reservados para grávidas e idosos e a vergonha pingando do teto, suando janelas de vermelho, ruborizando minhas bochechas, cheirando ao meu choro. Doutor Carlos estranhou: - Como assim grávida? – Não transava há dois meses, desde Augusto, mas, achei que podia, achei que gravidez demorava a começar, não era assim automático, parar de menstruar logo no mês seguinte. Doutor Carlos tinha envelhecido, quase sessenta anos, mas, os cabelos continuavam mais vistosos, vermelho-acaju, e deu uma boa notícia: você pode engravidar, mas para isso precisa... e trocou a toalha da mesa de exames e começou a me tatear, dedos longos, sem luvas. Cada rosto na rua um pai, beijo de língua sêmen, dia passado espera, mês menstruado não. Nessa altura já conversava com a minha barriga, sonhava com os olhos castanhos, ousava imaginar verdes, quem sabe. Esperava que ele berrasse minha presença em choro todas as noites e o apertaria junto ao peito e lhe daria de mamar coma certeza de que meu filho precisava de mim. De mim. Acordei uma noite encharcada. Sonho, pesadelo, suor no pescoço, axilas, entre as pernas, colo, uma filha. Filha não, filha não, e acendi duas velas, dessas de apagão mesmo, nunca fui religiosa, e pedi numa reza inventada, num, por favor, meu Senhor, meu Pai, filha não e te prometo isso, aquilo e tudo, mas, filha não, que filha a gente coloca no mundo e não volta, se perde, como eu, em ladeiras, cinemas e quarto fechados. 80 Fui esquecendo de mim, apagando-me aos poucos, perdendo espaço na própria vida, e o filho era a redenção, sentido. Troquei de emprego: atendente de maternidade. Os bebês sorrindo em bolhas de saliva, os olhos procurando o mundo, as mãos descobrindo a matéria e o vazio. O banheiro era sempre a desculpa para deixar meu lugar e correr para o berçário, a vontade de que aquele menino de olhos negros fosse meu filho, dar comida para o mais magrinho, apertar o carequinha até ele sentir meu coração. Batizei cada período fértil com um médico, residente. Não era mais segredo, mesmo os mais novos me procuravam calados, e eu só queria nos dias certos, senão era pecado, religiosa de ocasião, poderia acabar tendo uma filha. Num quarto com banheiro foi um pai, a mulher amamentando o bebê e eu ocupado por eles, esperançosa do sêmen premiado. A respiração ofegante no meu pescoço, o arfar molhando os cabelos, os olhos dele fechados e os meus abertos, envergonhada, porque mesmo a repetição do ato não o fazia natural. Quando tudo acabava, rápido, era sempre um abotoar, uma culpa pesada viscosa nas paredes, e eu abandonada com as saias levantadas, calcinha no chão e a esperança entre as pernas. Doutor Carlos perguntou: - Parceiro fixo? Não esqueça da camisinha. Minhas pequenas mortes eram apenas de outros, suicídio é palavra-frase, não espera para escutar o refrão do plural. Se me restasse voz própria seria a hora de pedir ajuda, talvez um abraço apertado, mudo, resolvesse. Mas só me abraçavam por trás, por cima, pelo lado, nunca pela frente, nunca com carinho. Pegar um recém-nascido foi fácil. O berçário silencioso, as enfermeiras sempre ausentes. Escolhi o menor, o mais mirradinho, calmo em seu sono de prematuro. Tê- lo em meus braços explicou tudo, muita coisa. O corredor vazio, a fuga certa e então o choro. Um choro fraquinho, fiapo de som esquecido, murmúrio de fome. Entrei num quarto vazio, abri meus botões e ofereci meus seios para ele. Meu corpo, que fora de tantos, por tanto tempo, era agora dele, pequeno, pequenino. O Bebê não conseguiu sugar meu leite e tentei ajudar, boca enfurnada nos mamilos, coração batendo descompassado; meu e dele, meu e dele, meu e dele, meu e dele, meu, meu, dele, meu, meu, meu, meu, meu. Devolvi o bebê para o berçário e saí correndo do hospital para nunca mais voltar. Numa tarde atemporal cheguei aqui. Pode ter sido ontem, há um mês, alguns anos, vida passada. Aqui o tempo não passa, a maquiagem segura, escuridão aplaca. Nesse ambiente de paredes vermelhas me aqueço nesta penumbra viscosa me escondo, cada vez que me levam morro mais um pouco, sem direito a renascer de olhos verdes ou perdão pelas escolhas que não fiz. Quando olho para trás e para o lado vejo outras que nem eu. Alguns clientes vêm toda semana e querem cada vez uma, mas somos a mesma. O meu cinema foi à feira agropecuária daquela de grená, o meu Augusto o Adilson de outra, a minha ladeira o beco daquela novinha de verde que chegou faz pouco tempo e ainda esconde as mãos entre as pernas. Os gritos nos quartos são apenas ecos, os gozos tremidos memória regurgitada entre lençóis. Deixei a fragilidade debaixo de outros corpos, a ingenuidade esvaiu-se em líquidos-espermas, sangue, saliva. Não procure em mim aquilo que um dia fui. Crescer tem essa vantagem, viver deixa essa condição, olhos negros de desafio, rímel à prova de choro, pose de quem sabe tudo e nada sofreu. Mas é apenas isso, pose, mentira, mãos enlaçando joelhos, autoproteção. 81 Com o tempo o seu rosto não é mais seu, mas, do passado, e se este rosto espelhar um passado que não seu melhor. O espelho guarda para si aquilo que já não é, cabe acreditar ou não, contestar ou manter a maquiagem alinhada, o sorriso montado, o vestido vermelho passado e a sobrancelha em desalinho proposital. 82 ANEXO B: “LEITE EMPEDRADO”, DE FABRÍCIO CARPINEJAR Elas não eram gêmeas. Deus não repete a mesma letra. Deus se nega. Nega ter escrito alguma coisa. Deus é um ator inédito. Janaína e Jamela nasceram do mesmo ventre, uma dois minutos depois da outra. Parto normal, como se fosse normal ao homem. A mãe Arlete trabalhava como faxineira de hotel. Apagava a memória dos hóspedes, que encontravam o quarto ileso do primeiro dia. Não prestou atenção em quem veio primeiro. Janaína ou Jamela? Dois minutos é pouco para uma vida, muito para uma morte. Não pensou nos nomes. Já estavam prontos, com roupas e sapatos. Suas duas meninas, santas criaturas, haviam morrido antes e se chamavam Jamela e Janaína. Morreram afogadas no açude. Não eram gêmeas. Nada no mundo é gêmeo: a alegria, a dor, a esperança, o rancor da alegre dor. Se havia alguma coisa alegre no mundo era a dor, isso Arlete conhecia. Rezava o terço gritando. Janaína e Jamela nasceram no dia de finados. Provocação? Acreditou que Jamela e Janaína eram a Jamela e Janaína afogadas. O leite empedrou como se fosse lápide o mamilo rosado. Rosa cheirosa de lápide, sem vala de pétala para sair o cheiro, sem velas de abelhas para mudar o lugar. O seio preso é pior do que dor de dente. O seio preso é um dente sufocando a língua. Cheiro trancado é fedor. A fé fede. Janaína e Jamela fermentaram aos bocados, aos bordados, trancadas em casa. Idade não havia. A única certeza é que uma nasceu dois minutos depois da outra. Qual? Arlete não controlou, gritando de dor. O grito é uma forma de rir. Vestiam a mesma roupa. A roupa das irmãs gêmeas mortas. Jamela gostava de ser Janaína e Janaína gostava de ser Jamela, para enlouquecer a mãe. Mas jamela se agravava em Janaína pela cova abaixo da boca e Janaína se fingia de Jamela emagrecendo. O pai Boécio andava de caminhão pelas estradas. Nunca vinha para jantar. Nunca vinha para almoçar. A mãe chamava pela casa as quatro filhas, duas mortas e duas vivas, entre panelas fumegando e janelas cerradas. Qual das duas vivia no escuro? Deus não explica o que escreveu. Festa de aniversário não havia. Janaína e Jamela visitavam o cemitério. Ficavam o dia inteirinho diante da cruz das irmãs mortas. Seus nomes antecipados na pedra, falecidos antes de nascerem. A morte é bem mais durável, não discorda, não quebra, não amolece. A mãe rezava um terço de trás para diante, revezando as novenas com Jamela e Janaína. Quem reza um terço se acostuma a algemar as mãos. Esquerda sentada na direita. Filhas perfeitas são as que morreram. Cidade pequena é assim: tudo termina cedo para começar mais tarde. Jamela e Janaína são tão fortes que cresceram sem existir. Só Arlete as viu, preocupada em apagar os dois minutos de diferença entre uma e outra.